A mestiçagem como desafio às cotas raciais

A interpretação do projeto de colonização do Brasil, sob a lente dos colonizadores, considerou positiva a contribuição portuguesa na formação da nacionalidade. Ao tempo que silenciou o papel dos povos originários, tidos como bárbaros e selvagens, e dos negros escravizados como desterrados e degenerados, na constituição da identidade nacional.

Com a colonização se deu o encontro de três povos de culturas radicalmente distintas, não sem conflitos. Os grupos raciais diferentes refizeram valores, recriaram códigos de comportamentos e sistemas de crenças, responsáveis pela miscigenação (Vainfas, 1999).

A mestiçagem no Brasil se configurou como problema, e historicamente gerou disputa de narrativas. Em determinados momentos foi lida como responsável pela degenerescência das raças e fracasso da nação e em outros, validada como mola propulsora de desenvolvimento com melhoramento da raça, pela via do branqueamento. A política de incentivo à imigração europeia branca foi um reforço desse ideal.

Como dispositivo de poder, a mestiçagem, por meio de instituições e legislações, organizou a sociabilidade brasileira, gestando o mito da democracia racial e a pardalização da população.

Esses discursos e práticas contribuíram com o processo de branqueamento e a negação do racismo, retirando o foco da discussão racial.

A partir do século XX, ganha importância o mestiço, como símbolo de nacionalidade que passou a ter status privilegiado como entidade hibrida em essência, descrito como tipo ideal que conseguiu ascender e superar sua condição de origem vinculada aos descendentes de África.

Os mestiços se transmutam para os pardos. Os classificados como pardos conformam o amalgamado de não branco, categoria ampla que cabe muitos tons de pele.

Pardo é um coringa da classificação racial com capacidade de negociação em muita direção. A categoria pardo tornou-se, no contexto de implementação das políticas de ação afirmativa, modalidade cotas raciais, um dilema político para o Estado brasileiro, com a proliferação de fraudes.

Muitas são as críticas as essas políticas e as bancas de heteroidentificação. Argumentam que desde o início da colonização, com a mestiçagem, inexiste o racismo e vigora a harmonia entre as raças. Afirmam uma dificuldade de saber quem é ou não negro/a, se todos os brasileiros são misturados.

Essa acusação de indefinição racial ganha força por desconsiderar o racismo de marca, em que a cor é elemento de discriminação nas relações de trabalho, justiça e polícia.

É obrigação do Estado criar mecanismos com segurança jurídica para que os sujeitos que se autodeclaram negros realmente pertençam ao grupo beneficiário das cotas, cumprindo os objetivos das ações afirmativas. Cabe empreender esforço para desmantelar o racismo estrutural, causa primeira desses dilemas.

* Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.