As redes sociais trabalham com o instante, o segundo, presente imediato. O historiador trabalha com os processos, com certo distanciamento. Por muito tempo, gostamos de achar que estávamos fora dos eventos, julgando, definindo o certo e errado. Afinal, sempre diziam que é a História quem julga no final. Assim acompanho o debate sobre o processo de demolição do Edifício São Pedro, lendo e analisando os comentários e posições, e acredito que não havia nada a ser feito pelo Edifício São Pedro de Fortaleza. Não mais. Não em março 2024. Prédio abatido, página virada.
Mas não, não estamos de fora, a história é viva, vive cada evento de seu tempo e sofre com o início da queda do grandioso espaço. Entre muitos gritos e intensas mobilizações virtuais – que gastaram apenas digitais e planos de dados –, fica uma narrativa em concreto e escombro de como se constrói uma cidade.
Entre muitos comentários digitais, li uma postagem que colocava São Pedro como o Castelo do Plácido dessa geração de fortalezenses. Já escrevi sobre a estonteante obra de amor de Plácido de Carvalho e sua Pierina.
Mas tivemos a sorte, no caso deste espaço, de ainda ser útil à coletividade na Praça Luiza Távora. Está vivo e ainda mantêm, de forma indireta, as memórias de seu passado urbanístico. Não temos ideia do que esperar no caso do São Pedro, além de megaedifícios, tão futurísticos quanto apocalípticos.
Quando o governador Elmano de Freitas revogou a desapropriação provisória do imóvel e a família proprietária demonstrou as dificuldades com o espaço, ficou claro o destino do prédio. Esperava-se o inevitável: o prédio iria ao chão por tragédia humanitária ou histórica, acabou sendo a última.
A trajetória histórica do Hotel São Pedro e da Beira-Mar de Fortaleza
Até os anos de 1940 do século 20, a orla fortalezense era um espaço periférico, utilitário. Pescadores, mulheres socialmente desprestigiadas, prostituídas ou não, a marginália da cidade, buscavam o mar como refúgio e suprimento. Quando a elite ocidental, principalmente dos Estados Unidos, descobriu o valor especulativo do mar, Fortaleza apenas seguiu o padrão.
No final desta década, o empresário sobralense Pedro Philomeno Gomes se inspirou nos modelos de negócios e estrutura arquitetônica da orla hoteleira de Miami Beach, na Flórida. Surgia assim, em 1951, o Iracema Plaza Hotel, inaugurando a vocação turística da loira banhada do sol. O empreendimento foi o primeiro prédio com mais de três pavimentos na orla: hotel nos andares inferiores, residencial nos andares superiores.
Considerado o “Copacabana Palace cearense”, sede da culinária requintada do restaurante Panela, criou o hábito de comer fora de casa entre os cearenses. Os inúmeros serviços que oferecia em seu térreo antecipou os shoppings. Iria ter sete andares, um monumento em concreto armado, mas um sonho teria alertado que, ao terminar o prédio, Philomeno Gomes morreria. Assim, o edifício ficou permanentemente inconcluso.
Lendas, memórias e sonhos sempre preenchem lugares, assim com mais que tijolos e lajes. Há um saudosismo elitista sobre uma “época de ouro”, mas há também um reconhecimento da cidade que se vê em espaços, frequentando-os ou não, mas orientando-se a partir deles. São marcos, referências. São questões como estas que tornariam espaços como este “históricos”, afinal, memórias de uma forma de existir no tempo e no espaço se desenham em torno de seus muros.
O prédio iniciou a trajetória receptiva da Praia de Iracema a partir de 1951, e na década seguinte, anos 60, o entorno do prédio, a Jacarecanga, que concentrava a elite tradicional, e o centro histórico e comercial começam a morrer ante uma cidade que se espraiava. No final dos anos 1970, passou a ser de uso exclusivamente residencial. Alguns de seus frequentadores viraram seus inquilinos, em nome de suas saudades, e foi quando o espaço foi rebatizado de "Edifício São Pedro".
O São Pedro ainda passou décadas sendo sinal de luxo e glamour, mas o gigante que lembrava o navio afundou em meio à cidade que queria se modernizar rapidamente. Em seu último cruzeiro, o São Pedro acena em despedida a uma cidade que cresce em desigualdade e número de moradores de rua – seus últimos inquilinos. Pessoas em busca de abrigo no que já foi um dos mais luxuosos espaços da cidade e agora é um castelo de poeira, um amontoado de escombros memoriais de uma Fortaleza que não existe mais.
O 'antitombamento' do São Pedro
A decisão de não tombamento foi assinada pelo prefeito José Sarto em agosto de 2021, devido à condição estrutural do prédio. A gestão alegou que a manutenção da estrutura seria inviável. Mas o prédio não morreu nesse dia, nem morreu agora quando suas paredes começaram a ser derrubadas. Seu morrer foi lento, sua agonia foi longa e assistida, sabíamos seu destino, muitos de nós queríamos seu último suspiro. Lamentar agora é vazio e, em boa proporção, hipócrita.
Quando a notícia de que o local seria um equipamento cultural, um "Distrito Criativo" que abrigaria espaços de artesanato, artes visuais, gastronomia regional, literatura, formação e ação colaborativa e cultura popular, tive tolas e polianescas esperanças, admirei o projeto. Agora ele se desfaz nos mesmos escombros que soterram as memórias dos antigos.
Tivemos tempo de reagir socialmente e pensar opções, não fizemos – somos tão cúmplices da morte do São Pedro quanto somos das favelas sem saneamento.
Nossa inação alimenta nossos antitombamentos e nossas desurbanidades. O São Pedro é símbolo da Fortaleza que estamos criando a cada dia. Ser cidade é uma escolha diária, ser político e estar na pólis, mesmo que apoliticamente.
Já tivemos vitórias coletivas, salvamos o cine São Luiz, salvamos a Pharmacia Oswaldo Cruz, salvamos partes do Cocó e do Passeio Público. Por mais que você não estivesse nessas lutas e em outras da mesma estirpe, elas foram vitórias suas, da sua cidade. São vitórias do seu existir urbano, ganhamos mais espaços de memórias, perdemos estacionamentos e mercados.
Perdemos o Castelo do Plácido, o palacete azul, a chácara Flora, o cine Fortaleza, os muitos casarões da Santos Dumont, Jacarecanga, o Pirambu antigo, enfim. Faltaria espaço para relatar os espaços históricos, arquitetônicos, culturais, sentimentais, que demolidos viraram apenas espaços. Vazios de uma cidade que cresce especulativa e especulada, gentrificada, vendida em suas esquinas e calçadas.
A Fortaleza-mercado agradece o sumiço daquele trambolho que enfeiava e desvalorizava a Beira-Mar. A Fortaleza-miséria precisava agora de um novo castelo para reinar. A Fortaleza-Digital já mudou de assunto e não lembra mais o que foi o São Pedro, essa derrota colossal para Fortaleza-memória, mas que é apenas mais um passo no longo caminhar da Fortaleza-urbanidade. Qual Fortaleza você é? Qual lhe representa? Qual Fortaleza você quer?
O São Pedro caiu, imploda-se o São Pedro! O que cabe a ele agora é ser símbolo do que fomos e somos, de como tratamos ou ignoramos o passado, enfrentamos ou cedemos no presente e do quanto planejamos ou abandonamos o futuro da nossa cidade. Qual será o próximo?