Na coluna da semana passada falamos sobre os fantasmas que assombram o passado recente do Brasil: desaparecimentos, execuções e ações arbitrárias, golpismos realizados em nome da “defesa” do Estado. Questões que ainda perturbam nossa jovem democracia. Falamos sobre os 44 anos da lei de Anistia e de como este arranjo legal permitiu que as fraturas desse Brasil ditatorial se mantivessem ensangues.
Eis que após a publicação do texto fomos surpreendidos pela decisão do governador Elmano de Freitas em uma cerimônia que, no aniversário da lei de Anistia, homenageou os nomes de 35 cearenses “que lutaram pela garantia da democracia durante a Ditadura Militar” de transformar o imponente Mausoléu Castelo Branco, prédio anexo ao palácio do governo, em memorial aos abolicionistas cearenses, retirando do espaço a homenagem ao primeiro presidente da ditadura militar, o cearense Humberto de Alencar Castelo Branco.
Convenhamos que um memorial aos grandes nomes da luta antiescravagista terá uma relação mais pertinente na integração com o Palácio da Abolição e com o Ceará que se orgulha de ser a “terra da luz” do que o túmulo do primeiro comandante de nossa mais recente ditadura.
“MEUS HERÓIS NÃO VIRARAM ESTÁTUA”
O Mausoléu Castelo Branco passa despercebido por muitos fortalezenses apesar de sua imponência arquitetônica, questionando meus alunos sobre o espaço a imensa maioria o desconhecia.
A estrutura foi construída logo após a morte do Marechal Humberto Castelo Branco, que havia chefiado a ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1967. O então governador Plácido Aderaldo Castelo, interventor dos militares, anunciou a construção do prédio anexo ao Palácio da Abolição como uma cripta para os restos mortais do militar e sua esposa. Castelo foi um dos principais idealizadores e executores do golpe civil-militar de 31 de março de 1964. Mesmo defendendo a devolução do poder aos civis, foi em seu governo que se implementou o aparato repressor dos “anos de chumbo”.
O debate sobre a manutenção ou não de homenagens aos atores desse período é uma oportunidade pedagógica, uma chance de provocar a reflexão em jovens e antigos sobre tirania, tolerância e democracia. Evitar o debate em nome de pretensas pacificações só amplia o acirramento subterrâneo entre os grupos sociais, memórias não questionadas se tornam feridas não cicatrizadas fáceis de serem reabertas.
Ouvi questionamentos como – pra que mexer em vespeiro? Por que uma decisão dessa em um momento desse? Penso, qual o momento então? Essa ação do governo é civilizatória e demonstra o quanto o debate, mesmo silenciado, interessa a sociedade.
Muitas entidades civis ligadas a luta pelos direitos humanos apoiaram a decisão. No último manifesto mais de 46 entidades e personalidades cearenses mostraram apoio ao governo. A nota afirma que Castelo Branco “Derrubou um governo constitucional eleito, fechou o congresso, cassou parlamentares e lideranças sindicais, acabou com as eleições diretas, baixou vários atos institucionais, impôs uma constituição autoritária para o país, instalou a censura, prendeu, torturou e matou os que lhes fizeram oposição”.
Também nos posicionamos a favor da medida. Uma vez que buscamos semana a semana refletir a(s) história(s) que não estão nos livros escolares, perspectivas diferentes das tradições historiográficas e histórias dos silenciados e vencidos, acreditamos que homenagear os abolicionistas é uma escolha bem-vinda. Como escreveu o historiador e diretor de cinema Luis Bolognesi “meus heróis não viraram estátua, morreram lutando contra os que viraram”.
O MAUSOLÉU E A COMEMORAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA
As questões levantadas aqui incendiaram as redes sociais, o debate cearense se nacionalizou e ganhou força nos debates sobre a participação popular neste 7 de Setembro de 2023. A comemoração de nossa independência virou, nos últimos anos, um momento de convergência de tensões, polêmicas e disputas em torno dos símbolos e referências da nossa nacionalidade: a famosa polêmica sobre o que é ser patriota. O debate sobre o mausoléu materializa essa problemáticas.
Mas precisamos lembrar que o 7 de setembro não é uma data militar, é uma celebração anticolonial. Apesar de ter virado sinônimo de desfiles em marcha e ordem unida, o militarismo é um elemento inserido na data, seu principal papel é educacional. Em todos os estados colonizados o dia da independência é um chamado à reflexão sobre liberdades e identidades.
Monumentos e datas nacionais mantem viva a memória de períodos importantes da história, mas não precisam enaltecer o passado e sim refleti-lo, provocar as futuras gerações na crítica sobre os caminhos que nos construíram como país, devem auxiliar a formação de consciência histórica ao problematizar a relação entre presente e passado, individual e coletivo.
Para avançar como sociedade e construir uma democracia forte e inclusiva, é crucial repensar a legitimidade de nossos marcos. Não é apagar a história, mas promover os valores democráticos, pensar nas injustiças cometidas e lutar para que os horrores do passado não se repitam. A história e o patrimônio são lembretes do que fomos e questionamentos sobre o que queremos ser.
A decisão do governo cearense já tem uma vitória, nos fazer parar e refletir nossa arquitetura patrimonial, nossa relação com monumentos e memórias materiais coletivas, enfim, nossa identidade construída.