A caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro, como uma extensão e transformação do cerrado, abriga uma variedade de espécies vegetais que só podem ser encontradas no Brasil. O nome caatinga vem do tupi e significa mata branca, dada a aparência esbranquiçada que a vegetação adquire no período de estiagem, quando as árvores perdem as folhas e os troncos e galhos secam. Ela ocupa uma área superior a 844 mil quilômetros quadrados, cerca de 11% do território nacional e se estende do norte do estado de Minas Gerais às margens do rio Parnaíba, no estado do Piauí.
Embora esteja associada ao sertão nordestino, ela também se faz presente na área do agreste, zona intermediária entre o sertão e a zona da mata. Ela é classificada, por vezes, por causa de sua vegetação, marcada pela presença de espécies espinhosas, como sendo uma savana-estépica, mas possui centenas de espécies vegetais que não se encontram em nenhuma outra savana ou estepe do mundo.
A caatinga é um dos biomas mais degradados e ameaçados do país. Calcula-se que cerca de 46% das espécies, que são exclusividade desse bioma, estejam ameaçadas de extinção. Mesmo sendo um bioma único, a caatinga foi e ainda é muito desvalorizada, quase sempre reduzida à condição de mato ou capoeira que se deve desmatar, que só atrapalha, que tem pouco valor e deve ser derrubada. Desde os relatos dos cronistas coloniais, passando pelos diários de viagens de cientistas estrangeiros, que a caatinga é descrita enfatizando o seu caráter agressivo, inóspito, sua hostilidade em relação ao corpo humano. A caatinga foi sendo descrita como um obstáculo a ocupação humana, como uma inimiga dos pés e das pernas daqueles que buscavam palmilhar o sertão.
Somente com a chegada de Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente, no ano de 2003, quando do primeiro mandato do presidente Lula, que o bioma caatinga foi incluído entre aqueles que deveriam merecer ações no sentido da preservação e conservação de sua biodiversidade. Ameaçado por avançados processos de desertificação, em algumas de suas áreas, o bioma caatinga padece de uma imagem negativa que foi sendo construída, notadamente por sua associação com o fenômeno das secas e suas consequências sociais e econômicas.
Quando o clássico da literatura brasileira, Os Sertões, escrito por Euclides da Cunha (1903) nomeou o sertão de terra ignota, ou seja, terra desconhecida, terra ignorada, ele pretendia que seu relato fosse tomado como aquele que iria apresentar essa paisagem desconhecida para o restante do país. A primeira parte do livro intitulada “A terra” fará uma descrição da caatinga que, por sua riqueza imagética, por sua grandiloquência e por manejar o que seriam os conhecimentos científicos de época, se tornará uma referência para todo o campo literário a partir daí. Mas, a caatinga já vinha sendo descrita desde o final do século XIX, pela chamada literatura das secas, um conjunto de obras escritas por autores cearenses, em que ela serve de paisagem e ambientação para o drama das retiradas, para as tragédias causadas pela ocorrência das secas.
Nessa literatura, o sertão e, por extensão, a caatinga são, muitas vezes, assemelhados a um deserto. Tendo como inspiração a narrativa bíblica do êxodo dos hebreus do Egito, a travessia do deserto em busca da terra prometida pelo Deus hebraico, as narrativas literárias de obras como: A Fome, de Rodolfo Teófilo, Luzia Homem de Domingos Olímpio, Aves de Arribação de Antônio Sales, vão assemelhar a caatinga a uma paisagem desértica, como se ali houvesse apenas areia, sem nenhuma formação vegetal. A famosa imagem da terra gretada, da terra calcinada pelo calor, vai construir uma imagem pouco lisonjeira desse bioma no imaginário nacional.
O discurso da seca, que passa a ser utilizado pelas elites políticas do Norte e, depois do Nordeste, para reivindicarem recursos, obras, cargos públicos ao governo federal, vai reforçando esse imaginário pejorativo em relação ao bioma caatinga. Tanto no discurso literário, quanto nos discursos políticos a caatinga é associada a pobreza, a penúria, a miséria, a carência. A ideia de que a caatinga é um bioma pobre, que carece de importância e de biodiversidade, está muito associada as imagens de devastação e de calamidade que foram normalmente apresentadas como sendo a realidade desse espaço.
As próprias ações predatórias em relação ao meio ambiente são apoiadas nesse imaginário que faz da caatinga uma vegetação sem valor, apenas garranchos e espinhos a atrapalhar a vida humana e animal. Ele é um dos biomas mais ameaçados, justamente, porque aí se concentra uma parcela considerável da população brasileira que vive na pobreza e que, muitas vezes, faz da exploração inadequada dos recursos naturais sua única forma de sobrevivência (a produção do carvão vegetal, com a queima indiscriminada de suas espécies, como alternativa econômica durante as secas, é um exemplo).
Durante as estiagens muitas de suas espécies mais nobres são abatidas para a venda da madeira e as cactáceas, espécies que particularizam esse bioma, são cortadas para a alimentação de animais e, em tempos passados, até para a alimentação e fornecimento de água para os humanos.
A caatinga, que parece passar por uma transformação milagrosa quando caem as primeiras chuvas, mostrando o seu poder de resiliência, sua perfeita adaptação ao clima em que se formou, é muitas vezes assemelhada a uma paisagem comburida, martirizada, uma paisagem quase infernal. Euclides da Cunha vai chamar atenção para o que seria o caráter torturado da vegetação da caatinga, suas espécies seriam contorcidas, tortas, como se tivessem passado por grandes sofrimentos físicos, como se tivessem sentido muitas dores ao serem queimadas, ao serem abrasadas por um sol inclemente. A caatinga seria uma paisagem que encarnaria o próprio sofrimento dos que ali viviam.
Essa imagem de plantas contorcendo-se, estirando seus galhos tortos, como se fossem braços e mãos a suplicar clemência aos céus, como se estivessem sofrendo de insuportáveis dores, vai contribuir para a construção desse imaginário que faz da caatinga cenário de padecimento, que atribui a esse bioma a responsabilidade pelo que seria um verdadeiro martírio de seus moradores. Para muitos, livrar-se da caatinga, cortá-la, desmatá-la, é sinônimo de progresso, quando não do avanço da civilização. Ela é apenas mato e o que se busca é terra limpa para plantar e para viver. Sair do mato tem inclusive um sentido positivo na região, limpar mato é uma atividade que permite muita gente ganhar a vida. Curiosamente, derrubar a caatinga não seria desmatar, pois essa palavra seria adequada para se referir a derrubada de florestas, de vegetações que teriam valor e importância.
Embora, desde os estudos feitos por técnicos do Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS), no início do século XX, haja a associação entre desmatamento e aridez maior do clima, entre secas e desmatamento, muitos desses estudos também serviram para atestar o que seria a inferioridade do bioma caatinga, sua pobreza quando comparado a outros biomas brasileiros. A contraposição entre a caatinga e a Mata Atlântica, presente na zona da mata do Nordeste, sempre serviu para reforçar uma imagem inferiorizada e negativa da caatinga, sem que se ressaltasse a sua originalidade e singularidade enquanto bioma.
A caatinga vem sendo degradada desde o período colonial, é, junto com a Mata Atlântica, o bioma que sofreu pioneiramente o impacto da chegada dos europeus ao continente americano. Desde o princípio foi ocupado com atividades econômicas pouco adaptadas as suas condições naturais, como a agricultura de subsistência, e a pecuária que, além de tudo, foi e, continua sendo, motivo de degradação ambiental.
Quando hoje se defende que se adote formas vida e produção que permitam a convivência com o semiárido, parte-se do reconhecimento de que essa área não foi ocupada da maneira adequada e que se hoje áreas importantes estão em processo de desertificação isso se deve a maneira como a caatinga foi ocupada e explorada, com atividades totalmente inadequadas como a fabricação de cerâmica, as fábricas de telhas e tijolos, que raspam a fina camada de solo fértil que caracteriza esse ambiente, utiliza as escassas fontes de água e, sobretudo, utiliza como lenha para abastecer seus fornos a vegetação da caatinga.
É preciso que se modifique a forma de ver esse bioma, para aqueles que nele vivem, que fazem dele o manejo e a exploração possam ter uma outra imagem. É preciso que incentive a criação de reservas de caatinga, que se convença os donos de terras de que preservar parte da caatinga é um ganho ambiental e econômico a longo prazo. Não é apenas a preservação da Amazônia que vai nos salvar do aquecimento global.
O próprio aquecimento do clima no Nordeste pode ser amenizado se mais reservas de caatinga forem criadas, se plantarmos mais árvores, se arborizarmos, inclusive nossas cidades, com espécies da caatinga ameaçadas de extinção. Por que importarmos espécies exóticas, algumas completamente estranhas e até ameaçadoras para a nossa biodiversidade (como foi o caso da algaroba, planta que resseca o solo a medida que suas raízes profundas sugam toda a umidade, matando toda a vegetação a seu redor), se podemos nos utilizar das espécies originárias da caatinga para reflorestar, arborizar e decorar campos e cidades.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.