Acordei num sobressalto nesta quarta-feira, um ano depois de saber que o coração de meu primeiro filho, Francisco, havia parado na barriga. Levantei com Bento remexendo dentro de mim, chutando minha bexiga para contar duas coisas: que segue na sua posição de Buda, sentadinho, e que está vivo.
Todo dia vivemos juntos a agonia e a gratidão que é a jornada de mãe e filho arco-íris. Estamos atravessando uma tempestade violenta juntos, na esperança de vermos cores no final. Tudo com uma pequena dose de culpa e dor pelas cores que Francisco nunca viu.
Não houve sinais claros de que meu primogênito havia morrido. Acordei para nadar e a vida desmoronou com um fio de sangue muito discreto que sequer manchou minha roupa. Corre pro hospital, por desencargo de consciência, que não é nada. Várias mulheres sangram na gestação e fica tudo bem.
Tudo escuro e surge a cara do médico, incrédula: De quanto tempo mesmo você está grávida? Ele parou com oito semanas. Não tem batimento nem tem mais vesícula vitelínica. Aborto retido? Iniciemos a saga da indução para parir um filho morto.
Recebi Francisco num potinho preto e ouvi o tempo todo para não ficar triste nem chorar porque logo teria outro filho. Engoli seco, mas não escutei. Sempre soube que Francisco era insubstituível, que existiu e que me fez mãe. Sou grata por tê-lo em minha vida, ainda que só espiritualmente. Francisco me fez desejar ser mãe e hoje é uma estrelinha que simbolicamente colocamos no topo de nossa árvore a cada Natal.
Foi aí que a vida nos surpreendeu e nos trouxe Bento, que hoje cresce sentado na minha barriga. Disseram que ele seria meu arco-íris depois da tempestade, mas honestamente não sei quando essas cores todas vão aparecer. Nossa jornada juntos não tem aquela alegria inocente da gestação de Francisco, quando sequer imaginávamos que algo poderia dar errado no meio do percurso.
Com Bento, vamos um dia de cada vez, uma semana de cada vez. Sabemos que saltamos num abismo sem ter a menor ideia do que há lá embaixo, mas com toda a fé de que, nove meses depois, um lago cheio de água vai nos amparar. Até lá, vivemos nosso caos particular.
Foi assim por 18 semanas, até que Bentinho se animou com o clima de Copa do Mundo e decidiu chutar minhas entranhas. É uma agonia misturada com respiro. A cada chute no pé da barriga, o Budinha diz: "mamãe, tô vivo". Os dias mais calmos então viram uma pequena tormenta. Mexe, filhinho. Conta pra mamãe que tá tudo bem aí dentro.
Nada? Será que ele está com algum problema porque dormi com a barriga pra cima? Preciso aprender a levantar de lado pra não correr o risco de estimular contrações antes do tempo. Vira, Bentinho, que sentado é ruim pra nascer. Ao menos parei de checar se há sangramento de hora em hora.
Será que vai ser assim até o fim? Francisco, me ajuda, meu filho. Cuida do seu irmão aí de cima. Sei que também vou te ver pelos olhos dele. Bentinho, você vai saber que teve um irmão que morreu na barriga da mamãe. Vocês têm a mesma dinda, o mesmo pai, o mesmo amor.
Hoje faz um ano que soubemos que seu irmão partiu. Sonhei que paria você, prematuro, e tentava empurrá-lo de volta para dentro do meu ventre. Cada vez que fazia isso, seu coração voltava a bater, mas você já não cabia ali. Que desespero! Acordei num pulo e levei as mãos à barriga, já robusta. Você chutou forte: “mamãe, tô bem. Estamos juntos nessa”.
Hoje também completamos 21 semanas juntos. Um dia de cada vez e vamos sonhando que você chegará logo mais a 500 gramas, o peso da minha esperança. Dizem que com meio quilo já há chances de sobreviver fora da barriga. Peixinho, vamos em frente. Um mar de cada vez. Continue a nadar, continue a nadar. Francisco estará com a gente no final desta jornada. Seguimos pouco a pouco, que o nosso arco-íris vai chegar. Acalma a cabeça e o coração. Você vai nascer, meu filho.