O amor de duas mulheres abriu as porteiras para a diversidade em uma pequena cidade do sertão cearense. Era 2020. Foi preciso mergulhar em uma verdadeira saga para conseguir escrever a união de Gracyanne Cavalcante e Elisângela Lopes na lei dos homens, em Cedro.
É que, apesar de o Brasil já reconhecer o casamento gay há anos, quando elas decidiram usufruir do direito conquistado, se depararam com toda a burocracia do mundo naquela cidadezinha predominantemente conservadora, onde quase 25.000 habitantes vivem basicamente de comércio e serviços. Elas só queriam poder caminhar de mãos dadas na Praça da Matriz, casadas. Mas quase não conseguiam alguém disposto a efetivar o matrimônio.
A história de Gracyanne e Elisângela começou na internet. Depois de algumas interações nos comentários de um vídeo no Youtube, elas resolveram trocar números de Whatsapp e começaram a se corresponder. Acabaram se apaixonando, mas não era fácil assumir o sentimento para o mundo.
Elisângela estava casada há mais de uma década e tinha dois filhos. Adotada por uma família evangélica, ela abraçou o casamento hétero sob pressão. “Casei para não sujar o nome da família”, conta ela, que sempre se sentiu atraída por mulheres. Mas um dia, com o álcool lhe ajudando a tomar coragem, resolveu mandar mensagem a Gracyanne e se declarar. Explicou que o casamento estava em crise e que estava apaixonada.
Gracyanne, que morava em Maceió, retribuiu o sentimento. Mas algo só podia acontecer entre as duas com o divórcio devidamente consolidado. “Contei para as pessoas mais importantes da minha vida. Minha filha (que tinha 11 anos) foi a primeira. Ela simplesmente olhou pra mim e disse: mãe, se a senhora está feliz então está bom demais”, lembra Elisângela.
Foi um ano e cinco meses alimentando um amor à distância, até que Elisângela estava livre para viver o relacionamento. Só depois Gracyanne desembarcou na rodoviária de Juazeiro do Norte. “Foi nosso primeiro encontro. Trouxe ela e apresentei aos meus filhos”, conta Elisângela. No primeiro momento, os pais evangélicos não aceitaram bem, mas logo a convivência os fez acolher bem Gracyanne.
A algumas centenas de quilômetros dali, a família de Gracyanne acreditava que ela havia se mudado para viver com o namorado. “O Erick”, conta ela, rindo. “Eu que inventei o nome”. Foi o jeito usar até a inteligência artificial para sustentar a história. “Eu tive que baixar um aplicativo que deixasse com a voz masculina para ser Erick”, diz Elisângela. Tanto esforço se dissipou quando elas decidiram assumir a verdade e receberam o apoio dos pais de Gracyanne.
Quando as duas mulheres decidiram casar, já viviam juntas. Na época, o mundo tentava readequar a vida para se proteger em plena pandemia do novo coronavírus. Elas tinham que aproveitar as brechas das aberturas de quarentena. Visitaram o cartório, pegaram todas as informações, juntaram os documentos. Mas não conseguiam marcar nunca a data para casar.
“Acho que o juiz não quis”, diz Elisângela. Ela conta que ouviu que houve um problema e que não havia casamento naquela data, mas logo viam um casamento hétero acontecer. Também diz que houve gente do próprio cartório alertando que aquele seria o primeiro casamento gay da cidade. “Eu disse: olha, eu acho que isso aí é preconceito”, recorda ela.
Foi tanta burocracia para conseguir casar que elas não conseguiram realizar o matrimônio civil no dia da festa. Celebraram primeiro, no dia 16 de outubro de 2020, com poucos amigos, mas com vestido de noiva e terninho, brigadeiros embalados com fitinhas das cores do orgulho e alguns amigos. O casamento mesmo só foi efetivado quatro dias depois, por um senhor da cidade também habilitado a casar, mas que não era juiz de paz.
A saga caiu nas redes sociais. “A gente ficou conhecida aqui na cidade”, conta Gracyanne, que é natural de Maceió. “Teve muita gente me parando na rua para dar os parabéns e desejar felicidade. Pessoas que eu nunca tinha visto”, conta ela. As portas para a diversidade estavam abertas naquela cidadezinha do sertão, mais um passo rumo à igualdade dado a milhares de quilômetros de Nova Iorque, onde ataques homofóbicos num bar tornou o dia 28 de junho um marco de luta.
“Hoje a gente tem a liberdade de viver, de sermos nós mesmas sem ter que se esconder”, celebra Elisângela. Hoje elas podem andar na Praça da Matriz dia de domingo de mãos dadas e se abraçar sem medo de estar faltando com o respeito. “E abrimos as portas para quem quiser casar”, emenda.