Apesar de já ter tido uma das malhas mais extensas do planeta, o Brasil ficou algumas décadas parado no tempo quando o assunto é transporte ferroviário.
Conforme a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o País possui uma malha ferroviária operacional concedida de 32.984 km de trilhos implementados no País. Dessa extensão, o presidente do Conselho de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Heitor Studart estima que apenas cerca de 10% está em pleno funcionamento.
Na análise de Studart, isso deixa escapar a oportunidade de produtores agropecuários, industriais e varejistas economizarem de 30% a 40% com frete, quando comparada aos custos do transporte rodoviário.
O principal motivo da subutilização das linhas já existentes é a defasagem da estrutura, implementadas mais fortemente até a década de 1950, quando o modal passou a concorrer com a forte política de incentivos automobilísticos.
Apesar dos custos mais baixos em relação ao rodoviário, o modal ferroviário é o menos utilizado para transporte de cargas no Brasil devido à menor capilaridade oferecida. No Ceará, o meio é utilizado por apenas 7,3% dos produtores industriais, de acordo com o Panorama Logístico de 2021 da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec).
A última reportagem da série “Rotas do Crescimento” segue os trilhos dos poucos produtos que são escoados via modal ferroviário no Ceará e discute sobre o potencial desse meio de transporte para o desenvolvimento econômico do estado.
Produtos escoados
Na década de 1950, o Brasil tinha um sistema ferroviário adequado para o transporte de pessoas e cargas, chegando a ter uma das maiores linhas férreas do mundo à época. No mesmo período, foi iniciada uma política de estímulo ao setor automobilístico, o que levou a uma priorização das rodovias em favor do desenvolvimento industrial do país.
Naquela época, o transporte ferroviário era utilizado para qualquer tipo de produto. Hoje, segundo o professor do departamento de engenharia de transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), Bruno Bertoncini, o modal se limita a alguns segmentos.
“No Brasil, criou-se uma cultura muito forte, até pela forma como as ferrovias estão dispostas, que se transporta neste modo produtos de origem agrícola, como granéis, produtos de origem mineral e combustível”, cita.
Ele afirma que o modal é ideal para o transporte de cargas que são despachadas em grande volume e não requerem prazos urgentes de entrega.
Não temos uma proposta de sistema em formato de malha, que possibilitaria, por exemplo, o fluxo de mercadorias internamente, como ocorre em outras nações, como os Estados Unidos, por exemplo. Então, nossas ferrovias, embora tecnologicamente pudessem ser multiprodutos, estão, em sua maioria, dedicadas ao transporte de commodities".
No Ceará, o modal se limita aos 502 km de linha operante da Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), que liga os portos de Itaqui (São Luis/ MA), Pecém (São Gonçalo do Amarante/ CE) e Mucuripe (Fortaleza/ CE). Ao todo, a FTL tem 1.237 km nos três estados.
De acordo com a concessionária, os trilhos do estado movimentam cimento ensacado, clínquer, coque de petróleo, escória, calcário, produtos siderúrgicos (bobinas de aço, vergalhões, fio máquina, tarugos, etc) e contêineres de 20 e 40 polegadas.
Para o presidente do Conselho de Infraestrutura da Fiec, Heitor Studart, contudo, essa operação poderia ser muito mais ampla, incluindo líquidos como combustíveis e mesmo cargas perecíveis, acomodadas em containers refrigerados.
Transporte de cimento no estado
De segunda a sexta, todos os dias um trem carregado de cimento parte da fábrica da Apodi, nas proximidades do Porto do Pecém, rumo a São Luís e Teresina. A empresa realizou um investimento de cerca de R$ 10 milhões em valores atuais para utilizar a estrutura da FTL para escoamento de cargas.
A linha férrea está instalada dentro da própria fábrica e o ramal é coberto para evitar que o cimento eventualmente se molhe. Antes de embarcar, as cargas passam por um processo de filmagem e paletização para evitar o desgaste do produto até o destino final.
Segundo o diretor de Supply Chain da Apodi, Karley Sobreira, o ferroviário corresponde a algo em torno de 7% do transporte de cargas. O principal modal utilizado ainda é o rodoviário, sobretudo em razão da baixa disponibilidade de estações que possibilite uma maior capilaridade.
Ainda assim, o meio de transporte é estratégico para a empresa.
A ferrovia nos traz uma competitividade em relação ao modal rodoviário porque eu consigo transportar um grande volume e vender fracionado em torno do CD (centro de distribuição). É estratégico porque nos faz chegar a um grupo de clientes que não conseguiríamos vender por rodoviário. Se tivesse que contratar caminhões pequenos para vender para eles, seria um custo".
Karley explica que o modal ferroviário é entre 5% e 10% mais barato do que o rodoviário. Apesar disso, há uma desvantagem clara de tempo de percurso em relação às estradas.
Ele conta que um vagão demora cerca de 10 dias para chegar a São Luís, no Maranhão. Para Teresina, no Piauí, o trajeto dura entre 5 e 6 dias.
“O tempo do rodoviário para Teresina dá um dia e meio a dois dias, e para São Luís dá em torno de 3 dias no máximo. A ferrovia tem limitação em relação a caminhão, não é exatamente reta, tem que desviar das serras, dos aclives e declives, tem todo um contorno que precisa ser feito”, diz.
Para além da simples questão geográfica, as condições atuais em que se encontra a malha ferroviária atrasam e muito o tempo e transporte.
Lentidão e menor capilaridade
Uma das características que denunciam a falta de renovação da malha ferroviária no Brasil é a velocidade de algumas linhas.
A FLT transportou 2,9 milhões de toneladas durante o ano de 2021. Mas, o tempo de viagem desses itens através da linha é um dos alvos de reinvindicações pelas empresas que ainda optam por utilizar o modal.
Para 92,3% dos produtores industriais do estado, há necessidade de melhorias nas ferrovias, segundo dados do Panorama Logístico de 2021 da Fiec. Entre as reclamações, é apontada a necessidade de renovação da frota de vagões e da estrutura física das linhas férreas, além de melhorias no projeto geométrico.
A lentidão do modal é explicada em parte pela largura das bitolas. Grande parte da linha férrea brasileira tem distância de 1 metro entre os trilhos, adaptada para trens antigos.
Conforme Heitor Studart, a renovação da linha para bitolas largas, com distância de 1,60 metro, poderia aumentar a velocidade média dos trens de 10 km/h para até 40 km/h.
A subutilização desses trechos é causada muito por bitolas médias, antigas, a bitola larga praticamente dobra [a velocidade]. Segundo, [é necessária] a substituição de todos os vagões por vagões modernos. Também é necessária a atualização do planejamento geométrico, evitando curvas bruscas e rampas".
Outro entrave é a menor capilaridade do modal. Por necessitar de uma estrutura robusta para rodar, com estações e trilhos, os trens não conseguem chegar a todos os lugares que um caminhão consegue, por exemplo.
O acesso a lugares mais remotos do país esbarra na necessidade de investimentos para possibilitar a construção de estações e ferrovias.
Necessidade de investimentos
O transporte ferroviário é o segundo que mais recebeu investimentos públicos federais nos últimos 20 anos, atrás apenas do rodoviário.
Dados de estudo de 2021 da Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostram que foram investidos R$ 31,77 bilhões na construção, manutenção, melhoria ou adequação de infraestrutura existente de ferrovias entre 2001 e 2021.
Mesmo assim, muito ainda precisa ser feito. O problema é que os investimentos em ferrovias são caros e mostram resultados apenas em médio prazo, em pelo menos 5 anos.
seria o custo para adequar 500 km de rodovia
“Os valores são altos, mas como é por trechos, por estado, por município, não seria o valor total de uma vez. Seria a medida da demanda de adequação. Só para você ter a ideia, 500 km hoje seria quase R$ 1 bilhão. Mas tem fundos de investimentos ávidos para investir nisso, porque é um investimento seguro com recursos a longo prazo”, exemplifica Heitor.
Devido aos custos, grandes obras costumam demorar para saírem do papel, como ressalta Bruno Bertoncini.
“Embora urgente, não é o que vemos na prática, pois projetos já aprovados ainda tem sua implantação feita de forma muito lenta, vide o caso da Norte-Sul e da Transnordestina, que ainda não estão em operação de forma plena. São projetos, no caso do primeiro, que já possui décadas de implantação”, pontua.
Transnordestina
A promessa da Transnordestina começou na década de 1990, mas o início da implantação se deu apenas em 2006. Com 1.753 km de extensão, a ferrovia vai ligar os estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, sendo um projeto estratégico por conectar os portos do Pecém e de Suape.
Em 2022, de acordo com Heitor Studart, as obras estão 50% prontas e ele projeta que a conclusão deve ocorrer em 2025. Ele calcula que ferrovia trará mais 500 navios anualmente ao porto do Pecém.
Bruno Bertoncini analisa que a presença da ferrovia terá papel muito importante para o país como mais um eixo de exportação de grãos, particularmente os produzidos no Piauí, parte do Tocantins, Mato Grosso, ajudando no escoamento dessa produção.
“Mesmo que no início a ferrovia não seja responsável por transportar cargas originadas no Ceará, só a passagem e o escoamento via Pecém poderá trazer uma dinâmica muito favorável para o Estado e, em médio prazo, deverá ajudar a fixar ao longo da via novos polos, quem sabe novos projetos”, avalia.
Em nota, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), responsável pela Transnordestina Logística (TLSA), afirmou que as obras estão sendo realizadas no estado do Piauí no momento, no município de Paulistana, com previsão de execução de 165 km de superestrutura (trilhos, dormentes, brita) até o fim de 2022.
No estado do Ceará, há obras de infraestrutura e construção de pontes, viadutos e sistemas de drenagem em três lotes, totalizando 150 km de extensão, entre os municípios de Iguatu e Aurora; a montagem de superestrutura deve ser iniciada no estado do Ceará ainda o segundo semestre, com previsão de conclusão de 50 km até o final de 2022".
Conforme a CSN, as obras geram cerca de 1,5 mil empregos diretos e aproximadamente 2 mil indiretos e envolvem cerca de 500 equipamentos. O projeto alcançou 650 km de ferrovia já plenamente implementada e obras avançadas de infraestrutura em outros 600 km.
“Este é um dos principais projetos nacionais para o desenvolvimento do Nordeste, que gera empregos e oportunidades de desenvolvimento econômico na sua região de influência”, destaca.
Potencial econômico
Para especialistas, apesar do investimento inicial para a construção e revitalização de ferrovias ser alto, há um importante potencial de crescimento da economia a médio e longo prazo com as melhorias.
“Todo investimento ferroviário não é rápido, mas depois o retorno econômico é muito maior, tanto de competitividade como de produtividade”, destaca Heitor Studart.
Ele calcula que cada vagão de ferrovia equivale a 3,5 caminhões em termos de carga, de modo que um trem de 80 vagões poderia tirar 280 caminhões das estradas, diminuindo problemas com acidentes e engarrafamentos, além dos custos de frete.
“Qualquer país do mundo hoje mais desenvolvido mais de 50% da carga logística é ferroviária, nós que viemos de uma cultura rodoviária e agora estamos pagando o preço com a alta do petróleo”, defende.
Bertoncini acrescenta que a evolução do modal ferroviário facilitaria uma integração entre meios de transporte, visando maior eficiência e redução de custos tanto para o setor produtivo como para o consumidor.
“Ter uma oferta maior de ferrovias, especialmente conectando zonas industriais a áreas de consumo, particularmente para mercado interno, parece uma estratégia adequada em um país com dimensões continentais e com diversidade cultural e econômica que dispomos”, coloca.
Mesmo com as altas cifras envolvidas, Heitor é otimista com relação à renovação do sistema férreo brasileiro nos próximos 5 a 10 anos, com envolvimento de parcerias público privadas.