O Ceará deveria ter recebido nesta quarta-feira (28) 183 mil doses da vacina russa Sputnik V contra a Covid-19. As doses viriam num lote de 1,1 milhão, negociado diretamente entre os estados que compõem o Consórcio Nordeste e a Rússia.
As vacinas não chegaram porque o governo russo suspendeu o envio tanto devido à não liberação de licenças excepcionais de importação quanto porque o ministro da saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, chegou a afirmar publicamente que o País não precisaria do imunizante para compor o Plano Nacional de Imunização (PNI).
Em entrevista coletiva, o ministro disse que as vacinas compradas pelo Governo Federal até o momento são suficientes para vacinar toda a população adulta em duas doses e que, por isso, não precisaria nem da Sputnik V nem da indiana Covaxin — cuja compra pelo governo Bolsonaro está sendo investigada para apurar irregularidades.
Não temos a necessidade de doses adicionais desses imunizantes que obtiveram licença de importação”.
Para tentar reverter a crise diplomática e burocrática e liberar as doses, representantes do Consórcio Nordeste se reuniram nesta quarta-feira com o governo russo. O Governo do Ceará ainda não se manifestou a respeito.
Entraves
Os principais entraves para a vinda da Sputnik V ao Brasil são políticos e burocráticos.
A vacina começou a ser negociada ano passado diretamente entre o Consórcio Nordeste e o Fundo Soberano Russo por meio do governador baiano Rui Costa, que, à época, presidia o consórcio.
Neste ano, foi feito pedido ainda em janeiro para uso emergencial da Sputnik V no País. No entanto, devido a uma série de situações como falta de documentos comprobatórios de segurança, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi relutante à autorização, que só veio depois de os estados nordestinos recorrerem ao Supremo Tribunal Federal (STF) para intervir judicialmente.
Prejuízos à imunização
Quanto maior a demora na chegada de novas doses de vacinas ao Ceará, menos fôlego o Estado tem na corrida contra a Covid-19 e mais pessoas ficam sujeitas a adoecer de forma grave e morrer, especialmente quando a variante Delta já foi detectada em cearenses.
Segundo especialistas consultados pelo Diário do Nordeste, a tecnologia aplicada na Sputnik V é semelhante à da vacina AstraZeneca, já aplicada massivamente no Brasil e com eficácia comprovada contra a Delta. Dessa forma, embarreirar a inserção do imunizante na campanha pode custar alto à saúde pública.
"Nós estamos precisando de rapidez. Principalmente, considerando a emergência dessa variante Delta", alerta o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações no Ceará (SBIm-CE), Robério Leite. Além da notícia da suspensão do envio das doses da Sputnik V nesta semana, ele lamenta a Anvisa ter reduzido de 5,8 milhões para 183 mil o número de doses possíveis de serem compradas diretamente pelo Ceará no contrato com a Rússia.
No entanto, o diretor, que também é professor-adjunto de Pediatria na Universidade Federal do Ceará (UFC), acredita que o experimento da vacinação com a Sputnik V pode, futuramente, favorecer uma autorização permanente de uso pela Anvisa.
Quando desabastece [de vacinas], interrompe, leva desconfiança à população, desânimo, e vai criando uma indisposição que é muito ruim".
Consultor da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), o médico infectologista Keny Colares acrescenta que todas as informações disponíveis atualmente sobre a vacina russa são favoráveis ao uso dela e que, principalmente devido à escassez de doses, à baixa cobertura vacinal no País e à ameaça da Delta, contar com vacinas por compra direta seria fundamental para prevenir cenários piores da pandemia.
Dentro desse contexto, essa notícia [da suspensão do envio das doses] é ruim. Espero que estejam sendo adotadas medidas para contornar essa dificuldade e a gente receba essas vacinas e outras, dentro daquele princípio de que, independentemente da vacina, por mais que haja diferença entre uma e outra, o mais importante é ter gente vacinada".
Linha do tempo
Confira em ordem cronológica os principais fatos sobre a importação da Sputnik V para o Brasil e entenda o que dificulta a chegada das doses.
15 de janeiro – A empresa farmacêutica União Química protocola pedido de autorização de uso emergencial da Sputnik V na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
2 de fevereiro – O Instituto Gamaleya, da Rússia, divulga resultados preliminares da Sputnik V apontando taxa de eficácia de 91,6%.
12 de março - Governadores do Consórcio Nordeste apresentam proposta para a compra de 39,6 milhões de doses da Sputnik V.
19 de março - Em meio ao lockdown provocado pela segunda onda da Covid-19, o Governo do Ceará, que compõe o Consórcio Nordeste, assina contrato com o Instituto Gamaleya para a compra direta de 5,8 milhões de doses da Sputnik V.
13 de abril - Atendendo a uma solicitação do Governo do Maranhão, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determina que a Anvisa tem até o fim do mês para decidir sobre a autorização da importação da Sputnik V pelos estados nordestinos.
26 de abril – A Anvisa nega a autorização ao Nordeste para a compra direta da Sputnik V alegando falta de documentações comprobatórias da segurança da vacina e possibilidade de falhas na fabricação.
5 de maio – Alvo de ataques por supostamente dificultar a importação da Sputnik V, a Anvisa se manifesta em nota afirmando serem “inadmissíveis os ataques à autoridade sanitária do Brasil e aos seus servidores públicos, que vêm atuando conforme a missão de servir ao Estado brasileiro e de promover a proteção da saúde da população”. A agência reforçou que o principal motivo para não autorizar a importação era a falta de informações sobre a segurança, a qualidade e a eficácia do imunizante.
4 de junho – A Anvisa aprova a importação excepcional e temporária tanto da Sputnik V quanto da vacina indiana Covaxin. No entanto, limita a aplicação de doses a somente 1% da população (adulta e saudável). Pela nova regra, o Ceará passa a poder concluir a compra direta apenas de 183 mil doses e não mais de 5,8 milhões.
8 de julho – O Ceará se organiza para a distribuição e a aplicação da Sputnik V. Limoeiro do Norte é a primeira cidade anunciada pelo Estado a receber doses. A ideia era que cinco municípios, no total, aplicassem a vacina russa na população adulta até os 18 anos de idade.
19 de julho – Governadores do Nordeste assinam ofício reagindo a uma declaração do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que afirmou que o Brasil não contaria nem com a Sputnik V nem com a Covaxin no Plano Nacional de Imunização (PNI).
20 de julho – O dia 28 de julho é cravado como o dia em que as 183 mil doses da Sputnik chegariam ao Ceará. Pela logística, os imunizantes desembarcariam primeiro em Recife, Pernambuco.
28 de julho – Após o ministro da saúde brasileiro dizer publicamente que o PNI não precisaria da Sputnik V, o governo russo suspende o envio do lote com 1,1 milhão de doses da vacina negociado pelo Consórcio Nordeste.
29 de julho – Em entrevista ao G1 do Piauí, o governador piauiense e atual presidente do Consórcio Nordeste, Wellington Dias, relata, após reunião com a Rússia, que as doses não puderam ser enviadas dentro do cronograma previsto porque não foram autorizadas pela Anvisa as licenças excepcionais de importação necessárias.