Despedida e acolhimento aliviam dor causada pela morte: “O luto de alguém que a gente ama não acaba”

Reação à perda de amigos, familiares e amores é particular, mas todos carregam a necessidade de expressar o sofrimento para conseguir avançar nas trajetórias cotidianas mesmo com ausências

Pouco importa se a perda de alguém amado acontece repentinamente ou não, os rituais de despedida, como velório e enterro, são valiosos para expressão do sofrimento e percepção do afeto entre familiares e amigos diante da morte. Os processos de luto se tornaram mais evidentes durante a pandemia da Covid-19, porém com a impossibilidade de encontros em períodos críticos.

As visitas aos túmulos neste Dia de Finados - data com maior circulação de pessoas nos cemitérios - acontece em cenário diferente do último ano, que foi de baixa movimentação por causa das restrições do coronavírus. Homenagens são parte do processo de despedida e elaboração do luto.

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laços entre cearenses foram desfeitos pelo coronavírus desde o começo da pandemia, conforme dados da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa)

Entre os vínculos quebrados, o da neta que perdeu o avô Paulo, de 80 anos, mas que não aparentava ter a idade pela aparência jovial e disposição para a vida. “Foi muito importante ver e estar perto do corpo do meu avô para mim, que já estava acompanhando e, principalmente, para os meus familiares. Foi fundamental para a elaboração do luto”, descreve Priscilla Faheina, de 24 anos.

O idoso foi contaminado pelo coronavírus e internado, em março deste ano, com sintomas leves. Logo o quadro de saúde agravou e, em cerca de 25 dias, Priscilla viu o avô ativo envelhecer no hospital. “Eu acompanhei todo o processo, como a família não podia estar presente no hospital, eu e meu irmão alternávamos os dias e a gente tinha que passar as informações para o resto da família”, lembra.

As videochamadas e ligações, alternativas de contato durante a hospitalização, foram encerradas e o encontro presencial para a despedida reuniu apenas os familiares mais próximos. “A gente conseguiu o enterro normalmente com o caixão aberto, porque ele estava há muito tempo na UTI e não tinha mais o vírus”.

O luto foi dividido em alguns momentos e em alguns sentimentos, de vez em quando oscilo, porque considero que esse processo é contínuo, o luto de alguém que a gente ama não acaba. A gente vai só se adaptando
Priscilla Faheina

Mesmo constante, a dor causada pela morte de alguém próximo muda de intensidade com o tempo, como explica a psicóloga hospitalar, Vanilla Oliveira. “A ausência da pessoa que morreu vai continuar a existir. O que acontece é que essa relação vai ser ressignificada e, com o tempo, esse processo de luto, através da elaboração, vai ser menos doloroso”.

Velórios

Nos momentos iniciais, as homenagens e troca de afetos são relevantes para se começar a entender tal ausência. “Os velórios são espaços seguros para os familiares, que perderam um amor, possam expressar o sofrimento, ver o corpo pela última vez e se despedir”, observa.

Os abreviamentos da vida, por causa da pandemia, também acontecem no período em que a crise é econômica e social, o que agrava o sofrimento. “A forma como a morte chegou na pandemia foi muito brusca, uma ruptura muito intensa, somada a ausência dos rituais de despedidas”, acrescenta a especialista.

No caso da Priscilla, a dor foi agravada por acompanhar a demora para a disponibilidade de vacinas à população mais vulnerável, como o avô. “Meu processo de luto foi com sentimento de raiva, indignação e muita tristeza, porque a doença poderia ter sido evitada. Meu avô tinha tomado só a 1ª dose e, se o processo da vacinação tivesse sido acelerado, talvez ele ainda estivesse vivo”.

Os dias no hospital acompanhando o “segundo pai” tiveram o suporte da equipe de psicólogos. “Como a família não pode estar reunida no hospital, quem estava carregava essa dupla função: de amparar o parente e de repassar as informações. Isso era muito pesado e ter alguém para orientar foi muito importante”, frisa.

A jovem é psicóloga e o conhecimento é como base para compreensão do luto vivido. "Mas isso não me impediu de sofrer. O fato de eu ser uma profissional da saúde não me imunizou do luto e da dor que vem junto”, reflete.

Quando os corredores dos centros de emergência começaram a agitar por causa da pandemia, Vanilla Oliveira se dedicou a cuidar dos familiares e demais profissionais da saúde atuantes.

“Eu vivi a pandemia com o público da pediatria. Então, eu comunicava para os pais e mães que os filhos tinham morrido, o que foi muito difícil. Se é difícil para a gente, profissional da saúde, comunicar uma perda por Covid, imagina para a família”.

Suporte coletivo

Entender e assimilar a ausência, algumas vezes, carece do acompanhamento de quem passa pela mesma situação, como acontece no Grupo Terapêutico de Apoio ao Luto, iniciativa da Universidade Federal do Ceará (UFC).

“O luto tem uma relação direta com o significado do que aquela pessoa era para quem vai ficar. Aquelas pessoas que se foram vão ter um parâmetro de significado que, quanto maior a intensidade do amor, maior vai ser o luto”, observa Ângela Souza, coordenadora do grupo realizado no Departamento de Enfermagem da UFC, onde também leciona.

Os encontros acontecem virtualmente por causa da pandemia e reúnem pessoas enlutadas devido à Covid-19 ou demais causas de mortes. O objetivo é evitar distúrbios emocionais, como depressão, e a necessidade de uso de medicamentos motivados pelo sofrimento do luto.

Um irmão, uma mãe ou a pessoa com quem a vida foi compartilhada geram representações de afeto. “São os papéis que as pessoas mantêm na nossa vida que tornam essa saudade, essa ausência, de um significado muito maior. Tem pessoas que chegam à depressão porque a pessoa tem um significado tão forte que quem ficou não consegue elaborar a perda”, detalha.

 As pessoas acabaram perdendo essa experiência da despedida real (na pandemia), fica uma ausência física, mas uma presença psíquica. É como se a pessoa tivesse saído, mas ainda fosse voltar para casa
Ângela Souza
Coordenadora do Grupo Terapêutico de Apoio ao Luto

Pensar nas possibilidade de perder os pais sempre causou dor, como lembra a autônoma Milda Mendes, de 44 anos, participante do grupo terapêutico. “Ganhei acolhimento, cada um com uma situação, mas ouvindo todos”, resume sobre o momento em que a perda do pai de 89 anos, em 2018.

As memórias do Raimundo alegre, que gostava de contar piadas, são visitadas com tranquilidade hoje. “Sempre busco aquela certeza de saber que eu fiz o que pude. Como que eu vou passar por essa situação, como eu estou me preparando?”, lembra sobre o acompanhamento do pai que teve problemas pulmonares.

Com meu pai, eu comecei a fazer isso tratando da doença dele, eu pensava que estava fazendo o melhor que eu podia, mas se não fosse (o suficiente) que eu soubesse entregar
Milda Mendes

A coordenadora do grupo, Ângela Souza, define o luto como uma ferida que precisa de atenção e acolhimento para ser curada.

Abordagem sensível

Nos espaços de despedida e realização de homenagens, os profissionais que lidam com famílias enlutadas devem ter sensibilidade para oferecer conforto emocional, como analisa Adriano Bitu, diretor geral do Cemitério Jardim do Éden.

"Parte muito do momento em que as pessoas demandam: às vezes é um pouco mais de atenção, alguns demandam escuta ou um momento de reflexão, porque o luto é muito pessoal e do que a pessoa está vivendo”, destaca.

As visitas acontecem normalmente durante o Dia de Finados, com a realização de uma missa e um culto evangélico. “Entendemos que há uma redução dos riscos, mas a pandemia ainda não acabou, então temos de manter o distanciamento e a obrigatoriedade do uso de máscaras dentro das dependências do cemitério”, frisa sobre os protocolos de contenção da doença.