Estádio mais utilizado para jogos no Brasil em 2022, a Arena Castelão foi notícia em todo o país após cenas de violência na arquibancada e no campo ao longo do último ano. Ao todo, 252 pessoas foram autuadas por crimes em jogos de futebol na praça esportiva naquele ano. Dessas, 177 foram penalizadas, mais 56 denunciadas e outras 18 diretamente banidas de frequentar o local. Outros tipos de penas aplicadas são: a torcida única ou portões fechados - esta última atingindo diretamente os clubes.
Em quatro reportagens, a Série Segurança no Castelão mostrará parte do que é feito em relação à segurança do torcedor e de quem atua nos jogos de futebol. Torcedores, poder público, especialistas e clubes destacam melhorias e apontam questões em busca de evolução.
Impunidade
Mesmo com o árduo trabalho dos órgãos de segurança, o sentimento de impunidade aos infratores é evidente. Em 2022, 18 pessoas foram banidas dos estádios no Ceará, ou seja, proibidas de acessar qualquer praça esportiva para ver um jogo.
No perfil dos infratores todos são homens. Dentre as punições, estão 15 acusações por “promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores”. Outras duas por porte ou uso de drogas, além de uma por desacato. Cinco ainda seguem proibidos de acessar o local até dezembro de 2023.
Porém, o que observa na prática é a falta de fiscalização para averiguar se as punições são realmente obedecidas. Os crimes são referentes ao Código Penal ou ao Estatuto do Torcedor. Os dados do Ministério Público (CE) compõem o levantamento feito pela reportagem. Entre as outras punições, 173 se referem a pagamento de multa, com valores entre R$50,00 a um salário mínimo (R$ 1.212,00) na época. Além disso, quatro advertências e 56 denúncias.
“O torcedor ou mesmo as TOs (torcidas organizadas), dentro do estádio, têm um clima de animosidade causada pela competição, pela rivalidade, pela bebida alcoólica, que a gente tentou derrubar mas não conseguiu. O clima é naturalmente tenso. É muita gente aglomerada e pode causar tumulto”, disse Edvando França, coordenador do Núcleo do Desporto e Defesa do Torcedor (Nudtor) - MP/CE.
Sequência de violência
As partidas Fortaleza x Botafogo e Ceará x Cuiabá, válidas pelo Brasileirão, ficaram marcadas por conflitos nas arquibancadas e invasão de campo. As cenas repercutiram nacionalmente. Os dois maiores clubes do estado repudiaram o ocorrido. O Tricolor expulsou os envolvidos do quadro de sócios. Já o Alvinegro foi punido com 8 jogos de portões fechados.
No segundo Clássico-Rei do ano, realizado no dia 5 de março deste ano, um novo confronto ocorreu. Agora, entre os próprios torcedores do Leão. O clube condenou os atos de vandalismo e tem colaborado para encontrar os envolvidos.
“Um clássico com duas TOs grandes rivais, a segurança consegue ser elaborada, a movimentação da torcida pode ser mais óbvia, a via de acesso delimitada. O problema é nas milhares de vias de acesso ao estádio. Uma Região Metropolitana como a de Fortaleza, que é imensa, para um único destino que é o estádio, vai ter encontro entre torcedores em grupo ou individualmente. Não tem como pensar em segurança sem torcidas”, disse Irlan Simões, jornalista e pesquisador do futebol.
O que dizem TUF e Cearamor sobre as brigas
Cearamor e TUF (Torcida Uniformizada do Fortaleza), maiores torcidas organizadas dos clubes, ressaltam o trabalho preventivo em colaboração com os organismos de segurança.
“As TOs não podem ter responsabilidade sobre uma pessoa que já sai de casa com a intenção de brigar com outra. Mas o trabalho preventivo está sendo feito”, disse Jeysivan Santos, presidente da Cearamor, maior organizada do Alvinegro.
“Há tentativas de interlocução entre o poder público e as organizadas mas, em resumo, o que acontece são acordos tácitos que visam a solução rápida de um problema complexo, muitas vezes indicando às próprias organizações torcedoras a obrigatoriedade de impedir as brigas, o que foge da responsabilidade da entidade”, explicou Raoni Marques, da TUF.
O papel da imprensa nas discussões sobre violência e futebol é determinante, ressalta Irlan Simões. Para ele, é preciso mais cautela ao tratar o tema. O pesquisador lembrou o caso entre PSV x Sevilla, na Liga Europa, quando um torcedor da equipe holandesa agrediu o goleiro Marko Dmitrovic. Na ocasião, a emissora responsável pela transmissão não mostrou a imagem do momento para evitar dar visibilidade à agressão.
“Acho até que a imprensa esportiva é muito esportiva e pouco política, tem dificuldade em entender esse fenômeno. É simples falar da rodada e o que vem na cabeça. A violência sempre dá audiência, além de ser maltratada, acaba estimulando. A consequência dessa cobertura culmina no aprofundamento de políticas inúteis que não resolvem o problema e não são discutidas como deveriam. E não dar visibilidade diminui o estímulo”, avaliou.
TORCIDA ÚNICA E OUTRAS MEDIDAS
O MP-CE chegou a solicitar que o primeiro Clássico-Rei de 2023 do Cearense tivesse apenas uma torcida. No entanto, a Federação Cearense de Futebol (FCF) decidiu manter alvinegros e tricolores nas arquibancadas. O comunicado ocorreu após reunião com os clubes e demais órgãos responsáveis pela segurança do jogo, que foi realizado no Estádio Presidente Vargas.
“Apresentar TU como solução para a violência é o pensamento errôneo de achar que a violência nasce na arquibancada. O conflito não existe apenas entre torcidas de clubes diferentes. Grupos de torcedores do mesmo clube também têm algum grau de rivalidade entre si”, explicou Phelipe Caldas, doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador das formas de torcer.
O entorno da Arena é outro ponto abordado pelo MP em busca de reduzir a violência. Os ambulantes foram cadastrados e organizados em um espaço atrás do estádio, e a venda de bebida em garrafa de vidro foi proibida. Junto com a AMC (Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania) e a Guarda Municipal, há um planejamento para a dispersão dos torcedores.
“Não funciona em outros estados e aqui não será diferente. Quem realmente quer “brigar” com uma torcida rival, não necessariamente precisa ir ao estádio para que isso aconteça. Indo ou não, o confronto irá acontecer”, avaliou o presidente da Cearamor.
“Eu me pergunto: o que será diferente em Fortaleza? Tem brigas internas das torcidas, tem conflitos entre os torcedores comuns, tem briga na central, na premium…”, lembrou Raoni.
BRIGAS ROTINEIRAS EM CLÁSSICOS
Raoni Marques e Jeysivan Santos explicam que a mediação de conflitos é algo rotineiro na TUF e na Cearamor. Torcedores e lideranças participam ativamente nesse aspecto. No entanto, os componentes das organizadas reforçam:
“O esforço para mediar um conflito desta dimensão deve contar com organizações de Mediação, justiça restaurativa, direitos humanos e assistência social, utilizando da estrutura ramificada das torcidas para acolher e depois guiar para relações cada vez menos violentas. Precisamos de um fórum permanente de mediação de conflitos e cultura de paz nos estádios, que agregue as torcidas como agentes pacificadores”, ressaltou o tricolor.
“Nossos associados são cadastrados e é óbvio que debatemos sobre isso. Todos estão cientes que, aqueles que forem flagrados em ações como as do no último domingo, serão responsabilizados e dependendo do acontecido, podem ser até expulsos da torcida”, destacou o alvinegro.
As medidas tomadas pelos órgãos são previstas no Código Penal e no Estatuto do Torcedor. Quando um torcedor é autuado, há audiência com presença de juiz, promotor e defensor público. Além de multa e banimento, o acusado também pode prestar serviço à comunidade. As pessoas banidas devem se apresentar, no dia e na hora do jogo, a uma delegacia. Também é possível recorrer das denúncias.
“Na realidade brasileira, há torcidas inteiras sendo punidas sem ninguém ser punido de fato. Tirar a torcida do estádio vai resolver? Não vai. Não vejo essas punições como produtoras de resultados. Uma das penalidades mais inteligentes é a punição individual, que o cara perde o jogo. Do ponto de vista do futebol, tirá-lo do estádio parece ser uma das melhores coisas que temos em mãos”, concluiu Simões.