Filha de zeladora da UFC, jovem da periferia de Fortaleza é aprovada em Medicina; ‘tento desde 2015’

Sem estrutura nem materiais, Laianne estudava pelo celular e por meio de apostilas doadas

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Laianne foi aprovada em Medicina na UFC após 8 tentativas
Foto: Arquivo pessoal

“Não acreditei que seria possível. Pensava ‘não dá, não vou passar’.” A fala de Laianne Plácido Lima, 25, pode parecer pessimista, mas é quase regra para quem cresce sob os efeitos da desigualdade que assola a periferia de Fortaleza. A aprovação em Medicina é para ela, então, um divisor de águas.

Nesta terça-feira (28), com a divulgação dos resultados do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) após “9 dias de ansiedade e de pânico”, Laianne se conectou à plataforma e leu: “Parabéns! Você foi selecionada na chamada regular”. 

Legenda: Tela com resultado da primeira chamada para o curso de Medicina da UFC em Fortaleza
Foto: Reprodução/Sisu

Agora, ela vivencia, ao mesmo tempo, um fim e um começo.

Termina a série de tentativas de ser aprovada no curso dos sonhos, iniciada em 2015, quando fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pela primeira vez. E inicia a expectativa para entrar na sala de aula da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (Famed/UFC).

Quando fui dizer pra minha mãe, nem ela acreditou. Tô tentando passar desde 2015, há 8 anos faço essa prova. Acho que ela só acreditou quando chegou no trabalho, mostrou o resultado pros professores e todo mundo começou a chorar.
Laianne Plácido Lima
25 anos

Laianne é filha de Maria Célia, 56, zeladora de um dos campi da UFC em Fortaleza há 11 anos e maior apoiadora das metas e sonhos da jovem. Não concluiu os próprios estudos, como relata a filha, mas construiu para a menina um destino distinto.

“Pra me manter no cursinho, eu tinha ajuda dela somente. Muita gente desistiu porque não tinha apoio. Eu, sem o apoio dela, não passaria. Ela acreditou em mim”, emociona-se.

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Extasiada pela conquista da filha, Célia relembra as dificuldades que ambas precisaram enfrentar.

"Tô muito feliz, graças a Deus a minha filha ter alcançado esse objetivo. Porque é muito difícil um filho de um pobre alcançar o que ela alcançou. Foi muita luta. Ano passado, ela passou na Universidade da Bahia, mas como não tive condição de manter ela lá, ela ficou aqui, continuou a estudar", relata a mãe.

“Eu não tinha sequer um livro”

Foto: Arquivo pessoal

Alcançar uma nota suficiente para estudar Medicina talvez nem tenha sido o maior desafio para a estudante – mas sim trilhar um caminho de “nãos”. Não tinha livros, apostilas, computador ou uma mesa para estudar. Não tinha tutor, professor, “alguém que dissesse que ia dar certo”. Não tinha referências. 

“Aqui onde eu vivo, quando você olha pro lado, dificilmente vê exemplos de pessoas que conseguiram entrar numa universidade e se formar. Era uma realidade distante da minha, porque eu não tinha exemplos concretos. As pessoas diziam que era improvável”, lembra.

É uma coisa que você pensa ‘por que ainda tô tentando? Isso não faz parte da minha realidade’. Você acaba se autossabotando. Na minha escola, nunca se conversava sobre sonhos, sobre passar numa universidade. Isso também contribuiu.

Sob a exaustiva exigência de fazer um esforço sempre maior para chegar à meta, Laianne se matriculou no Curso Pré-Vestibular XII de Maio, o cursinho da Famed/UFC. Na biblioteca do campus, encontrou o ambiente de que precisava: chegava pela manhã e saía só às 22h.

“Em casa, eu estudava me balançando na rede, porque não tinha mesa. Pegava o celular, ficava na rede e muitas vezes, quando eu via o pessoal com livros, apostilas e estrutura, pensava ‘meu Deus, nunca vou conseguir’”, relembra a jovem.

Minha preparação mental foi ver a minha realidade e perceber que eu poderia ser o exemplo pra alguma pessoa. Sempre pesquisava sobre doações de materiais, e passei a estudar através desse material doado.

“Quero crescer muito”

No dia 13 de março, quando o semestre letivo da UFC inicia, Laianne sairá da casa que divide com outras 7 pessoas, no bairro Pirambu, rumo ao Campus do Porangabuçu, que sedia a Faculdade de Medicina. 

O complexo que ela vai frequentar pelos próximos anos, aliás, lembra o pai. Foi no Hospital Universitário Walter Cantídio onde ele tratou o câncer que o tirou a vida, nos anos 2000. A memória, porém, permanece, se eterniza nos planos da filha.

Meu sonho é ser oncologista. Espero poder aprender muito, absorver muito conhecimento pra, futuramente, me tornar uma excelente profissional, ajudar as pessoas, acolher meus futuros pacientes. Quero crescer muito como pessoa. 

Se nas últimas semanas a ansiedade a torturou, agora estimula. “Nem acredito que as aulas já estão tão perto de começar”, se empolga Laianne, sem esquecer de citar um último agradecimento.

“Acredito que sem a Lei de Cotas eu não teria entrado de forma nenhuma. Foi a Lei de Cotas que me abriu a porta e a possibilidade de eu entrar na Faculdade de Medicina.”

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