O vício em jogos online, como bets e cassinos virtuais, é uma dependência que pode atingir a todos. A chamada ludomania é considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2018. O transtorno é diagnosticado quando o jogo domina a vida da pessoa e a faz perder compromissos sociais, profissionais, familiares. Os sintomas podem incluir problemas físicos, como desidratação e subnutrição, e psíquicos, como depressão, ansiedade e tendências suicidas.
A série de reportagens "O vício no jogo" visa entender quem são as pessoas com compulsividade em relação a jogos de azar, apostas esportivas e cassinos onlines, além de indicar os sintomas do transtorno e como buscar ajuda. Este é o terceiro dos quatro conteúdos.
⚠️ Atenção! O texto a seguir pode conter gatilhos emocionais. Pessoas com problemas de dependência ou vício em jogos podem recorrer a atendimento psicológico e psiquiátrico. Se, aliado a isso, você tem pensamentos suicidas, busque ajuda. O Centro de Valorização da Vida (CVV), por exemplo, oferece apoio por chat na internet ou pelo telefone 188.
Beatriz Austregésilo, pós-graduada em Dependência Química e atuante em uma clínica de tratamento de transtornos psíquicos e vícios em Fortaleza, diz que o diagnóstico de dependência em jogos como doença é importante, inicialmente, porque concede voz ao paciente e a quem está perto dele. Isso porque a compulsão ainda é vista na sociedade como uma escolha.
Assim, ela reflete, consegue-se perceber que o processo do dependente "não é algo de um mau-caratismo, não é algo de uma [falta de] força de vontade", mas uma "doença multifatorial".
Para identificar se há uma dependência em relação ao jogo, a especialista utiliza os sete critérios de Edwards, também utilizados para o abuso de álcool. Os principais são: estreitamento do repertório, desenvolvimento da tolerância, saliência do comportamento de busca, sensação subjetiva da necessidade, sintomas repetidos de abstinência, síndrome de abstinência e reinstalação da síndrome de dependência.
Como a dependência no jogo atua no corpo
A especialista explica que, por ser um estimulante, no corpo, a dependência é semelhante ao que acontece em outras adicções químicas, como álcool e narcóticos.
"[O jogo] atua no sistema de recompensa nas vias dopaminérgicas que é semelhante ao que acontece na dependência química. Por isso que, quanto mais rápido for esse jogo e essa recompensa, mais a possibilidade de ocorrer a dependência", diz.
Para Juliana Fernandes, psicóloga e PhD em dependências, os jogos online dão uma sensação rápida de prosperidade aos olhos dos dependentes.
"Eles [dependentes de jogos] estão ali recebendo uma série de descarga de dopamina, que vem a ser uma substância de liberação de prazer. O que acontece é outras atividades serem menos interessantes. Então, eles pensam: '[como] eu vou trabalhar 30 dias para ter um salário que só cai no dia 5, se eu posso jogar e meia hora depois ter essa quantidade de dinheiro que eu nunca imaginei na vida?'", exemplifica.
A especialista alerta que o vício pode se tornar letal quando o paciente está no ápice da doença. "De início, ela traz a perspectiva de que 'eu quero, eu ganho, eu posso ganhar rapidamente', mas isso gera um desespero que problematiza toda a vida e o funcionamento daquela pessoa. Problemas financeiros reverberam nas relações conjugais, amorosas, familiares e nas relações de trabalho, afetando a conexão com o passado e o futuro. Assim, ela pode rapidamente engatilhar ideações e atitudes suicidas".
Hoje a gente tem uma vida que é uma 'onlife', nem é mais apenas online. O que significa que por mais que você não esteja com seu celular na mão, a internet vai chegar e a tecnologia vai chegar até você, seja para se informar, seja por outro motivo. Ela vai chegar até você por mais que você não queira se conectar
A psicóloga também afirma que os dependentes começam a avaliar o que é prioridade, produtivo e próspero para a vida. "Isso potencializa uma série de situações que vão reverberar em comportamentos. Então, tem-se uma situação de descontrole emocional e comportamental porque o jogo não traz só o ganho. Na verdade, a casa nunca perde. É provável que essa pessoa perca mais com o passar do tempo do que lucre com o jogo", continua.
Por que bets e jogos de azar são tão viciantes?
Juliana Fernandes descreve que o vício em jogos, muitas vezes, também está atrelado à dinâmica de vencer proporcionada pelas plataformas.
"A intensidade dele torna-se problemática. Precisamos entender que existem certas situações psico-orgânicas a partir do momento em que você entra nesse ritmo. A euforia de 'eu vou brincar, vou ganhar pontos, vou ganhar estrelinhas e vou ganhar dinheiro' gera um efeito psicológico, emocional e comportamental que altera a forma como você percebe a vida", diz.
Rodrigo Bravim, especialista em medicina do esporte e professor de psicologia, explica que a compulsão é ligada diretamente à esperança de vencer, que por vezes, é equivocada.
"Essa esperança gerada dentro desse sujeito, que é como um ratinho correndo na rodinha de hamster, o faz ficar ali, a cada momento, se exigindo mais e querendo jogar mais. Toda vez que ele joga, assim como um usuário de droga, ele tem um pico de dopamina. Esse pico de dopamina é alimentado toda vez que ele joga ou que um usuário de droga se utiliza de substâncias. E essa retroalimentação continua até que o sujeito perca tudo", detalha Bravim.
Para identificar o problema, o psicólogo diz que é importante fazer questionamentos pessoais e se perguntar sobre o tempo investido em jogos online.
"Quanto do seu tempo e dinheiro está dedicado a isso? E não é o tempo efetivo jogando, mas quanto tempo você está pensando em maneiras de fazer aquilo acontecer. Porque, por muitas vezes, o viciado não possui o dinheiro ou acabou e ele está pensando maneiras de pedir um empréstimo, um favor. O sujeito ele deixa de ser funcional e a vida dele gira em torno do vício", diz.
Propagandas de bets e jogos de azar podem influenciar o vício
Juliana Fernandes explica também que o vício está atrelado às divulgações em campanhas publicitárias de casas de bets e jogos esportivos. A psicóloga faz um paralelo com as propagandas de tabagismo, proibidas no Brasil desde 2000, pela Lei nº 9.294.
"É uma questão de saúde pública [o vício em jogos], mas ela não é reconhecida aqui no Brasil. Antigamente, os atores e atrizes de Hollywood, por exemplo, promoviam cigarro, sendo vistos como heróis e cowboys, dirigindo carros velozes, o que gerava desejo. Vivemos essa realidade aqui no Brasil em relação às bets, com artistas promovendo essas apostas. Você tem, inclusive, figuras de confiança comprometidas em fazer propagandas sobre bets", comenta.
A profissional ainda se questiona o que poderá ocorrer após a regulamentação das casas de apostas, que deverá ser votada no Senado. "Surgem novas questões, como o aumento das apostas, que muitas vezes ocorrem até mais rapidamente do que o próprio cigarro e a nicotina. A ideia é legalizar e oficializar isso. É uma questão histórica, pois o jogo e a aposta, especialmente como dependências acessíveis a qualquer pessoa, são algo que chegou para a vida", frisa.
Veja sintomas da dependência de jogos:
- Problemas musculares
- Problemas ósseos
- Alteração na visão
- Alteração na escuta
- Desidratação
- Subnutrição
- Obesidade
- Desnutrição
- Comprometimento na atenção
- Perda de memória
- Perda de inteligência
- Perda de afetividade
- Comportamentos alterados
Tratamento
O tratamento deve ser focado e personalizado. Segundo a psicóloga Juliana Fernandes, o percurso para a recuperação pode envolver diversos profissionais, como psicólogos, psiquiatras, grupo de acolhimento e rede de apoio. "O tratamento deve ser sempre personalizado. Vai depender de cada estilo de jogo. Procure ajuda. Peça ajuda, não fique com isso guardado no seu coração", alerta.
Rodrigo Bravim ressalta a importância de um tratamento multidisciplinar na hora de buscar ajuda. "O grupo de apoio é muito importante, a família também é muito importante que ela esteja ciente e participando ativamente do tratamento do paciente. Ele [o paciente] precisa estar num processo terapêutico, fazer terapia e ter acompanhamento e, muitas vezes, um processo psiquiátrico também", descreve.
Beatriz Austregésilo também reforça a importância de um acompanhamento multidisciplinar, com "médico de referência, um tratamento psicológico individual e um tratamento em grupo". E orienta: "Aqui, em Fortaleza, a gente tem opções que seguem a mesma lógica do AA e do NA que é os Jogadores Anônimos. Eu diria que o tratamento mais adequado seria esse acompanhamento interdisciplinar e o acompanhamento em grupo, principalmente pela questão da identificação, com os pares".
Onde buscar ajuda
O grupo Jogadores Anônimos (JA) reúne e acolhe quem precisa de ajuda para deixar o vício. A iniciativa segue os mesmos princípios dos Alcoólicos Anônimos (AA), como informou uma representante ao Diário do Nordeste. No Ceará, são realizadas três reuniões semanais, sendo às segundas, quintas e sábados.
O JA disponibiliza uma linha de ajuda online, aberta, por meio da qual interessados podem se informar sobre os encontros presenciais e virtuais, no WhatsApp: (85) 98929-5529.