Os 2,4 milhões de habitantes de Fortaleza não ocupam a cidade de forma igualitária. Em um processo influenciado por diferentes fatores históricos e culturais, são os bairros menos desenvolvidos da capital cearense que têm as maiores proporções de residentes que se declararam pretos no último Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por outro lado, os bairros mais ricos — como Meireles e Aldeota — são majoritariamente compostos por pessoas brancas.
A maior proporção de residentes pretos é encontrada no Pirambu, um dos 87 bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) considerado “muito baixo”. Com 14,1 mil habitantes, 1.415 pessoas autodeclararam-se pretas ao IBGE, o equivalente a 10% da população residente.
O quesito cor ou raça é pesquisado pelo Instituto a partir da autodeclaração dos entrevistados. Ao ser questionada sobre esse aspecto, a pessoa pode se declarar como preta, parda, branca, amarela ou indígena. Entre os Censos Demográficos de 2010 e 2022, as populações pretas e pardas tiveram aumento no Ceará e na Capital. Em ambas as edições, movimentos negros realizaram campanhas para conscientizar sobre a importância da autodeclaração para as políticas públicas.
Ao todo, os dez bairros de Fortaleza com maiores proporções de habitantes pretos são:
- Pirambu (10%)
- Granja Portugal (9,9%)
- Praia do Futuro II (9,6%)
- São Bento (9,6%)
- Conjunto Palmeiras (9,4%)
- Granja Lisboa (9,4%)
- Canindezinho (9,2%)
- Serrinha (9%)
- Novo Mondubim (8,9%)
- Sabiaguaba (8,9%)
Todos esses bairros têm a mesma classificação: IDH “muito baixo”. A exceção é o Novo Mondubim, cuja criação foi oficializada em 2019, cinco anos após a divulgação da pesquisa da Prefeitura de Fortaleza sobre o índice de desenvolvimento humano por bairro. O mesmo ocorreu com o bairro Aracapé, e ambos não têm classificação.
Já entre os bairros com o IDH “muito alto”, a proporção de moradores autodeclarados pretos não passa de 3%. São eles: Meireles (2,4%), Dionísio Torres (2,8%) e Aldeota (3,1%). Por outro lado, mais de 59% dos residentes de cada um deles declara-se branco.
O que diz o IDH?
Desenvolvido com base no Censo Demográfico de 2010, o IDH dos bairros foi divulgado pela gestão municipal em 2014 e analisa indicadores como renda, educação e longevidade das pessoas, permitindo uma visão geral da cidade para o direcionamento de políticas públicas. Ele varia de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, melhor o nível de desenvolvimento humano; quanto mais próximo de 0, pior.
O professor e pesquisador Arilson dos Santos Gomes, docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e integrante do Programa Cientista-Chefe da Cultura (CCCult) do Estado do Ceará, destaca a relação do IDH com a qualidade de vida da população.
“Se formos analisar o IDH dos bairros e pensarmos no desenvolvimento das populações em relação ao recorte racial, vamos ali vislumbrar que, da mesma maneira que essas populações (pretas e pardas) não se encontram nos melhores territórios, elas estão no maior grau de exclusão em relação à qualidade de vida, à educação, à cultura, ao saneamento, à segurança, à longevidade”, afirma.
Para esta análise, a reportagem do Diário do Nordeste calculou a proporção de pessoas pretas, brancas e pardas em relação à totalidade dos habitantes para os 121 bairros de Fortaleza, a partir dos dados de cor e raça divulgados pelo IBGE em novembro. Em seguida, essas informações foram cruzadas com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de cada bairro.
Por divergências entre as bases do IBGE e da Prefeitura de Fortaleza, cinco bairros não têm classificação de IDH e não aparecem neste levantamento: Olavo Oliveira, Boa Vista / Castelão e Parque Santa Maria, além de Novo Mondubim e Aracapé, mencionados acima.
No gráfico abaixo é possível perceber a relação entre o IDH e a proporção da população preta residente. Cada círculo corresponde a um bairro de Fortaleza e a cor refere-se à classificação por IDH. Quanto mais para cima do gráfico o círculo estiver, maior o IDH; quanto mais à direita, maior o percentual de habitantes autodeclarados pretos.
Neste caso, é possível perceber que, à medida que a proporção de pessoas pretas aumenta, menor é o IDH dos bairros. Na população parda, os dados mostram essa mesma tendência.
Por outro lado, quando se observa o mesmo gráfico em relação à população branca, ocorre o inverso. É possível perceber, abaixo, que a proporção de moradores brancos tende a aumentar à medida que o IDH do bairro também cresce.
Frutos do racismo anti-negro
O professor e pesquisador Arilson dos Santos Gomes aponta que essa maior presença de pessoas pretas em bairros de menor desenvolvimento não aparece por acaso. Há a influência do período colonial e da escravidão, fruto de um racismo anti-negro. É nos lugares tidos como “perigosos”, “informais” e “periféricos” — ou os “não-lugares” — que a população “majoritariamente de pele mais escura” vai sendo colocada, diz o professor.
“Muitas vezes, quando estão nos espaços próximos, por exemplo, de onde poderia se desenvolver estruturas, conforme vai passando o tempo e vão se dando esses processos históricos, essas populações vão sendo desterritorializadas e cada vez mais distanciadas dos lugares onde a estrutura vai ser melhor, a infraestrutura, o saneamento”, afirma.
Essa influência relacionada à escravidão, a esses processos, ao eurocentrismo, à ideia de branqueamento das populações e da própria mestiçagem — em relação ao mestiço mais claro e o mestiço mais escuro —, tudo isso em grande medida está relacionado a essa discussão territorial. Não é um acaso.
O pesquisador também destaca que, no Ceará, foi construída uma história oficial de que não havia negros no Estado ou que eles seriam poucos — semelhante ao que ocorreu com os povos indígenas. “Isso tudo vai colocando a ideologia, em alguma medida, a serviço também da prática de exclusão”, avalia.
Visões antigas
Morador da Comunidade Rosalina, no bairro Parque Dois Irmãos, durante a maior parte da vida, o historiador e doutorando Tiago Souza de Jesus dedica-se, desde 2017, a pesquisar sobre bairros negros a partir daquele território. Um dos achados de seus estudos é que os moradores, apesar das adversidades, não querem sair de lá. “As pessoas querem que o bairro melhore, que as condições de vida melhorem naquele lugar que elas estão vivendo”, defende.
Entre as constatações ao longo da pesquisa, Tiago aponta que o poder público e parte da sociedade veem as comunidades “como algo que mancha a cidade”. Para ele, os dados levantados pelo Diário do Nordeste evidenciam essas percepções em relação às comunidades negras. “É uma visão de ‘deixar se acabar’”, aponta, destacando que esse pensamento não é novo.
“Isso é uma visão do final do século XIX, quando, no governo de Dom Pedro II, tinha-se a ideia de que a população negra não ia conseguir se sustentar, ela ia se acabar por ela mesma. (…) ‘Deixa no canto que elas vão desaparecer sozinhas. Ou as crianças nascem quase mortas, ou os adultos vão se matando ao longo do tempo, então vai deixando’. Vejo que esse tipo de pensamento atravessou os séculos e permanece, ainda hoje, na visão de muitos políticos”, afirma.
Para driblar a realidade, repleta de adversidades impostas, é preciso criar vínculos, viver no coletivo, pensar no todo. “Nessas comunidades, a gente só consegue viver se a gente se associa”, afirma.
Políticas públicas diversas e integradas
Para mudar essa realidade, o professor Arilson dos Santos Gomes destaca a importância de que as políticas públicas sejam racializadas. Para ele, atualmente, o principal desafio das grandes cidades, como Fortaleza, é pensar iniciativas que estejam atentas aos variados recortes na sociedade — racial, étnico e de gênero, por exemplo — e atendam às diferentes demandas.
“Se não tiver isso, vai ser ‘naturalizado’ que a questão é econômica, quando, na realidade, é muito mais profunda. (…) Senão, a gente sempre vai achar que é normal na periferia ter pessoas pretas, a gente sempre vai achar que é normal ou natural que nos espaços de maior prestígio estejam eminentemente populações brancas. E a gente continua mantendo um fosso de desigualdade social e de injustiças”, defende.
Gestores e políticos, segundo o professor, devem estar atentos para que realizar as transformações no cotidiano e reduzir essas desigualdades. “Levar canalização, levar segurança para um bairro também é possível, desde que se priorize políticas públicas”, aponta.
Além disso, há a urgência pela criação de políticas públicas integradas, conforme acrescenta o pesquisador Tiago Souza de Jesus. “Não é necessariamente apenas criar a escola Rosalina (…), é preciso ter condições básicas de vida, aí entra a questão do saneamento básico, do acesso à cultura, do acesso à segurança pública, da iluminação pública”, exemplifica.
Além de os órgãos conversarem mais entre si, o pesquisador destaca a necessidade de o poder público entender as necessidades das pessoas que vivem nas comunidades. “É extremamente complicado a gente tentar resolver um problema que não sabe qual é a raiz e qual a dimensão do problema”, afirma.