Jovens deixam unidades de acolhimento aos 18 anos sem adoção e sob conflitos familiares em Fortaleza

Maioridade chega com o desafio de ter renda e moradia de forma autônoma após trajetória sem a presença dos pais

Pedro Silva* tinha 9 anos quando deixou a casa da família, onde precisava ir às ruas para vender água e limpar carros em busca de sustento, e foi recebido em uma unidade de acolhimento em Fortaleza - espaços conhecidos como abrigos. Os anos seguintes não trouxeram um lar para o menino, mas com a maioridade foi imposta a necessidade de renda e de moradia.

“Eu fui pensando em seguir minha vida, terminar meus estudos, arrumar um emprego e morar sozinho”, lembra sobre o momento em que se preparava para deixar o lugar em que cresceu.

Na mesma realidade, pelo menos 17 jovens precisaram sair das unidades de acolhimento porque completaram a maioridade em Fortaleza, entre 1º de outubro de 2019 e 5 de maio deste ano, conforme o registro do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE).

Os dados antes desse período não estão disponíveis devido à migração da plataforma utilizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No período, foi implementado o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

Os registros também mostram que não foi emitida nenhuma autorização judicial para a permanência desses jovens - uma possibilidade para dar mais tempo de adaptação - no intervalo analisado.

Na Capital, existem 22 espaços de cuidados para quem saiu do núcleo familiar com cerca de 385 crianças e adolescentes acolhidos até 18 anos, como registra o Núcleo de Atendimento da Infância e da Juventude (Nadij) da Defensoria Pública do Estado (DPCE).

“Esses jovens entram nas unidades de acolhimento a partir de uma situação de risco e de extrema vulnerabilidade na família de origem”, observa Julliana Andrade, defensora pública e supervisora do Nadij.

A pobreza e a violência se instalam nos lares e tornam o ambiente impróprio para a formação adequada de crianças e adolescentes. Quando os pequenos chegam nesses espaços, existe uma articulação com as famílias para o retorno à casa.

“Eles vão para uma unidade de acolhimento, mas eles podem ficar a vida toda lá. Então é feito o trabalho de fortalecer o vínculo, se não tiver como ser com o pai ou mãe, procurar a família extensa, como avós e tios”, explica.

Quando estão perto dos 18 anos já precisam fazer um outro tipo de trabalho, que é o de buscar a autonomia desses jovens, encaminhar para primeiro emprego, para cursos técnicos e profissionalizantes
Julliana Andrade
Defensora pública

Mas como esses adolescentes passam tanto tempo em unidades de acolhimento e não são adotados? Em geral, os pequenos chegam nesses espaços fora do que é considerado como a janela de adoção: maiores de 8 anos. 

Além disso, o histórico de problemas familiares, a vivência nas ruas e mesmo a cor das crianças - a maioria negra ou parda - são fatores considerados por quem busca um filho adotivo, como avalia o assistente social Antônio Carlos da Silva.

“A gente tem um trabalho muito forte de reinserção familiar, justamente pensando que a possibilidade de adoção será muito difícil, quase remota. Em 28 anos do Pequeno Nazareno, só aconteceu uma adoção”, destaca.

Observando a situação há 16 anos dedicados ao trabalho na instituição, Antônio viu crianças se tornarem adultas sob a incerteza quanto ao futuro.

A intervenção vem com a oferta de cursos na área administrativa e de comércio, inserção no mercado de trabalho, doação de equipamentos e um auxílio de R$ 1000 durante um ano para quem deixa a unidade por ter atingido a maioridade.

“A gente acaba assumindo uma responsabilidade com esses jovens, porque seria desumano e de uma grande crueldade lançar um jovem para que ele viva de forma autônoma sem esse suporte”

Saudade da família

Foi com esse suporte que Pedro conseguiu alugar uma casa e manter as contas cotidianas com o emprego de carregador em um supermercado depois de sair do Pequeno Nazareno em 2020.

“Hoje em dia eu moro longe da minha família, estou aqui há quase um ano, e de vez em quando eu vejo minha mãe. Ela não quis conversar comigo, porque me ligou para pedir ajuda, mas eu não tinha condições. Ela ficou chateada”, confessa.

A relação conturbada vem desde a infância. Essas memórias apertam o peito e, por vezes, fazem chorar. “Eu fui explorado, fiquei na rua vendendo água, biscoito e limpando carros. Eu passei por vários abrigos, como o Renascer, Santa Maria, só que eu não me adaptei e saí”, lembra.

O menino voltou para casa quando a mãe conseguiu retomar a guarda, mas o contexto pouco tinha mudado. Num telefone público, Pedro conseguiu pedir para voltar ao Pequeno Nazareno.

“Liguei de um orelhão eles passaram lá em casa para pegar minhas coisas. Eu não estava me dando bem com minha mãe, porque ela queria que eu fosse para a rua de novo. Estava desempregada, passava necessidade e as contas estavam atrasadas”, recorda.

Quando firmou espaço na instituição onde ficou até os 18 anos, Pedro encontrou onde estudar e planejar o futuro sem o suporte dos pais. “Consegui uma vaga numa empresa e fui crescendo, passando os anos, e agora tenho três cursos”, destaca.

Além da formação, o apoio para a compra dos móveis e pagamento das despesas foi decisivo para a transição. “Às vezes eu sinto saudade, já me acostumei (com a mudança), mas sinto falta, porque eles são como uma família”, comenta sobre os companheiros.

O esforço de Pedro acontece para suprir ausências. Uma delas, no entanto, é ainda mais difícil: quando questionado sobre o que gostaria de acrescentar sobre a sua história, ele transmite o que gostaria de falar para a mãe

Eu gostaria de mandar um abraço para a minha família, passou o dia das mães e eu nem vi a minha. Meu coração é na rua, mas espero que Deus toque no coração dela. Às vezes eu choro, eu lembro de alguns momentos, mas isso já passou e mãe é mãe. Rancor eu não guardo não
Pedro Silva
Carregador

Volta às unidades de acolhimento

Da casa da avó, José Ribeiro* entrou em uma unidade de acolhimento após vivenciar várias brigas familiares e com a falta de quem pudesse cuidar do menino na época com 10 anos.

“Eu fui para casa com 12 anos, morar com o meu pai, mas vieram aquelas coisas do passado e não deu muito certo eu ficar lá também. Ele não era uma pessoa bem de saúde mental e muito estressado”, busca explicar sobre a trajetória.

Um ano nessa convivência e José pediu ajuda da professora na escola para retornar ao lugar onde tinha ficado com outras crianças. Pouco depois, conseguiu transferência para o Pequeno Nazareno.

“Com 16 anos eu consegui uma vaga de emprego na Caixa Econômica e passei dois anos no contrato. Isso estudando e trabalhando. Com 17 anos, a minha irmã quis me receber para morar com ela e eu fui”, lembra.

José Ribeiro agora se divide entre os estudos para participar de concurso público para se tornar policial militar, o trabalho em uma empresa onde presta serviço e a venda de perfumes. 

Eu falo pouco com minha mãe por conta do passado, é algo tóxico. Com meu pai eu falo um pouco melhor, mas também é difícil. Tenho memórias de brigas e isso fica na cabeça, é algo difícil de sair (da mente)
José Ribeiro
Comerciante

No espaço, José encontrou aqueles a quem toma como referência. “Fui bem acolhido, tem muitos que mantenho o contato e vou lá quase todo mês. Pode-se dizer, nesse caso, que é uma família, porque eu passei bastante tempo com eles”, define.

Assistência para os jovens

O assistente social Antônio Carlos destaca a parceria com empresas da Capital para oportunizar vagas de emprego para os adolescentes do Pequeno Nazareno, mas ele frisa a necessidade de ampliação de políticas públicas para apoiar a transição de quem deixa a unidade.

Além da moradia e renda, o assistente social frisa a relevância de manter esses jovens na comunidade onde cresceram. “Estar próximo às pessoas de referência afetiva, um lugar onde tenha identificação com o espaço é muito importante”.

A defensora pública Julliana Andrade lembra que o contexto familiar comum de dependência química, falta de moradia e de sustento deve ser considerado para uma intervenção efetiva.

“Infelizmente as famílias poderiam ser mais assistidas pelo Poder Público para que ter condições de receber os filhos de volta, porque muitas vezes são encaminhados para adoção, mas muitos gostariam de criá-los”, observa.

República de acolhimento

Fortaleza dispõe de três repúblicas para abrigar os adultos vindos de unidades de acolhimento desde agosto de 2019.

Desde então, 18 pessoas foram recebidas com três abandonos por não adaptação à rotina, conforme a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS).

Também houve uma transferência para o município de origem e quatro desligamentos por descumprimento das regras de convivência. Outros cinco jovens agora moram de forma autônoma e trabalham de carteira assinada.

Todos recebem orientações e atendimentos da equipe multidisciplinar composta por psicólogo e assistente social, além de participarem de oficinas básicas de preparação para o mercado de trabalho com o preparador laboral.

Seis pessoas residem na república no momento. Cinco estão no Ensino Médio, sendo que três também fazem parte do Programa Jovem Aprendiz para inserção no mercado de trabalho, e uma pessoa está no Ensino Fundamental. 

Entre as pessoas que vivem na república, duas recebem o Auxílio Brasil, de R$ 400, mais a bolsa do Jovem Aprendiz, de R$ 500). Um recebe apenas a bolsa do Jovem Aprendiz e um recebe apenas o Auxílio Brasil.

Outros dois não recebem o Auxílio Brasil, mas já estão inscritos no CadÚnico. Eles possuem renda informal média de R$ 300 por mês.

“Todos os jovens acolhidos recebem alimentação e moradia subsidiada e Bilhete Único para deslocamento para escola, entrevistas de emprego e médicos. Ao entrarem na República, recebem um kit de cama e banho e roupas básicas”, como detalhou a SDHDS.

*Os nomes dos jovens entrevistados nessa reportagem foram alterados para preservação da identidade.