O câncer é uma preocupação global. Avançando em todas as camadas da população, a doença não escolhe idade ou condição socioeconômica. Não à toa, ela já representa a principal causa de morte em 821 cidades brasileiras, conforme levantamento do Instituto Lado a Lado pela Vida, organização social dedicada às duas principais causas da mortalidade brasileira.
O termo abrange mais de 100 enfermidades que têm em comum o crescimento desordenado de células, provocado por mutações que alteram sua estrutura genética, segundo o Ministério da Saúde. Elas formam tumores capazes de invadir tecidos, órgãos vizinhos e até distantes da origem - levanto à metástase.
Conhecer as causas dos câncer é um dos principais desafios da comunidade científica, que investiga fatores internos e externos. No primeiro caso, estão incluídos problemas geneticamente pré-determinados e a capacidade do organismo de se defender. No segundo, são avaliadas interações com o meio ambiente, hábitos e qualidade de vida da população.
Pensando nisso, as perspectivas para o enfrentamento do câncer foram debatidas no Global Forum Fronteiras da Saúde 2024, em Brasília, no fim de novembro. O evento reuniu especialistas para discutir soluções para o diagnóstico e tratamento, políticas públicas de saúde, financiamento e impacto dos determinantes sociais na saúde pública.
O oncologista Roberto Gil, diretor-geral do Instituto Nacional de Câncer (INCA), foi claro: o câncer está invertendo um ranking histórico e superando as doenças cardiovasculares como a primeira causa de morte em diversas localidades do país.
“No Amazonas, há um paradoxo: um Estado que tem uma incidência menor e já tem a principal causa de mortalidade mostra que, provavelmente, você está tendo poucas curas. Isso traz pra gente a responsabilidade de olhar toda a linha de cuidado”, observa.
Por isso, destaca o médico, é imprescindível que as gestões de saúde abordem a prevenção da doença, cujos principais determinantes são:
Tabagismo
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabagismo é fator de risco para o desenvolvimento de vários tipos de câncer, incluindo pulmão, boca, esôfago, faringe e laringe.
Eloá Brabo, oncologista clínica e gerente da Unidade de Oncologia do Complexo Hospitalar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que a prevalência de câncer de pulmão tem aumentado entre mulheres e pessoas não fumantes.
“O segundo principal carcinógeno depois do tabaco é a fumaça que o fumante exala quando sopra do cigarro. Por isso, a gente não pode fumar em lugar fechado. Você consegue detectar metabólitos dessa fumaça na urina de quem está ao lado”, afirma.
Além do cigarro comum, a especialista se preocupa com o aumento do consumo de vape, que “tem uma quantidade altíssima de nicotina”.
Obesidade
O diretor do Inca lembra que a alimentação de má qualidade e a obesidade, no Brasil, estão relacionadas a mais de 20 tipos de câncer, como mama, rim, fígado e tireoide.
Alcoolismo
Estudos mostram que o consumo de bebidas alcoólicas aumenta o risco de desenvolver diferentes tipos de câncer como boca, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, intestino (cólon e reto) e mama.
Roberto Gil reitera que, para a prevenção de câncer, não existem limites seguros de ingestão. “A gente está num esforço de definir, talvez, a dose padrão de álcool para ter estudos melhor determinados”, observa.
Vacinação
Parte dos cânceres humanos é provocada pelo papilomavírus humano (HPV), envolvido em casos de câncer de colo de útero, anal, de vulva, de vagina, de pênis e de orofaringe. A vacinação é a única forma de prevenir essas doenças.
“Nós temos uma taxa de cobertura hoje de 81% das meninas, mas só de 56% dos meninos”, lamenta o médico. “Nós precisamos melhorar isso”.
Saneamento e agronegócio
Ainda segundo Gil, é preciso melhorar as condições de saneamento em relação à bactéria H. pylori, relacionada ao câncer de estômago, e reavaliar o uso de determinados agrotóxicos já descritos como determinantes de neoplasias. “A gente precisa adaptar o agronegócio, que pra gente tem um valor importante”, destaca.
Poluição
Outro fator em estudos é a poluição ambiental sobre o câncer de pulmão, conforme a oncologista Eloá Brabo. Primeiro, pela circulação de carros com motor a diesel, cuja fumaça já é comprovadamente cancerígena.
Depois, pelo monitoramento do gás radônio, um subproduto do urânio que está nas partes profundas do solo. “Ele não tem cheiro e não tem cor. A gente não conhece quanto tem de radônio no nosso meio, e precisamos começar a nos preocupar com isso”.
Segundo a especialista, isso reforça a importância de se ampliarem áreas verdes nos centros urbanos, para que os moradores possam passar algum tempo em locais não tão poluídos.
Melhorar a assistência
O diretor-geral do Inca enfatiza a responsabilidade da gestão pública em viabilizar a detecção precoce do câncer e melhorar o padrão de tratamento no Brasil, dadas as desigualdades regionais de acesso, a existência de vazios assistenciais e o sucateamento de alguns serviços.
“Precisamos diminuir a navegação errática dos pacientes na busca do diagnóstico. Temos mais ou menos 40% das mulheres brasileiras chegando em fases avançadas de doença, quando é muito mais difícil de tratar. A gente precisa modificar esse perfil e trazer as mulheres pro diagnóstico numa fase precoce”, descreve.
Para Marlene Oliveira, fundadora e presidente do Instituto Lado a Lado Pela Vida, a regulação - conjunto de ações para garantir o cuidado adequado em tempo oportuno - é atualmente o principal gargalo dos pacientes diagnosticados com câncer no país.
“É nela que você enxerga todo o caminho da linha de cuidado do paciente, onde ele vai entrar e onde vai percorrer”, explica. “Hoje, ele demora pra agendar consulta, pra fazer biópsia e cirurgia. Muitos nem estão chegando, estão morrendo antes. Outros vão navegando, trocando de especialista, e quando tem o diagnóstico assertivo, já está numa fase avançada da doença”.
Em dezembro de 2023, o Governo Federal sancionou a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), justamente para garantir o acesso adequado ao cuidado integral, passando por prevenção, diagnóstico precoce, tratamento e a reabilitação. Porém, a presidente considera sua efetivação “complexa e difícil”.
Não podemos ter paciente chegando no sistema com uma fase avançada da doença, sendo que, enquanto país, temos a responsabilidade de atuar antes. Não podemos perder tanta gente como estamos perdendo.
Na leitura dela, é urgente estabelecer um modelo nacional e transparente de regulação, com critérios que levem em conta o tipo e o estágio de cada câncer, porque “hoje cada um [cada rede de saúde] regula do seu jeito”. Atualmente, essa discussão está a cargo da Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi), do Ministério da Saúde. A área quer unificar dados fragmentados para diminuir a fila do tratamento de câncer.
*O repórter viajou a Brasília a convite do Instituto Lado a Lado pela Vida.