Dos 166 alunos que iniciaram 2023 matriculados nas turmas de 3º ano da Escola de Educação Profissional Marta Maria Giffoni de Sousa, em Acaraú, litoral Oeste do Ceará, 164 fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Uma primeira vitória para a escola pública de tempo integral foi a participação massiva na prova que abre portas para a universidade. Mas, os planos eram mais ousados e o trabalho da comunidade escolar resultou em outro êxito coletivo: 129 alunos, ou seja, 78% atingiram 900 pontos ou mais na redação. Destes, 15 chegaram muito perto da nota máxima, com 980 pontos.
Localizada a cerca de 240 km de Fortaleza, a EEEP Marta Giffoni foi entregue em 2011 pelo Governo do Estado e, desde então, oferta o ensino médio integral conectado à educação profissionalizante. Na unidade há 4 cursos técnicos: Administração, Massoterapia, Eletromecânica e Aquicultura.
No Enem 2023, a participação não chegou a 100% dos alunos do 3º ano, pois um jovem faleceu no decorrer do ano letivo e outro, por decisão própria, apesar dos estímulos da escola, optou por não fazer a prova pois já está no mercado de trabalho e, no momento, não tem a aspiração de ingressar no ensino superior.
Na redação do Enem 2023, o desempenho expressivo dos alunos foi o seguinte:
- 15 alunos - 980 pontos
- 33 alunos - 960 pontos
- 39 alunos - 940 pontos
- 30 alunos - 920 pontos
- 12 alunos - 900 pontos
- 27 alunos - entre 800 e 899 pontos
- 8 alunos - abaixo de 800 pontos
A marca é considerada bastante positiva pela gestão da unidade e, segundo a coordenadora pedagógica, Rosilane Costa, demonstra que não falta capacidade dos alunos da rede pública para atingir “a nota máxima”. “A nota mil não veio agora, mas pelo nosso trabalho, a expectativa é que virá em breve”, acrescenta.
O que faz uma escola da rede pública do Ceará ter resultados coletivos tão desejáveis na redação do Enem e quais iniciativas foram adotadas para alcançar, de forma homogênea entre os estudantes, esta marca? O Diário do Nordeste aponta algumas dimensões avaliadas pela própria comunidade escolar que podem justificar o expressivo desempenho.
Conforme avaliação dos integrantes da EEEP Marta Giffoni, um conjunto de ações, realizadas nos últimos anos, têm alavancado o desempenho na prova que possui parte relevante na composição da nota final do Enem, dentre eles:
- O desenvolvimento de laboratórios de redação que englobam os alunos desde o 1º ano, com focos distintos de competências e habilidades em cada série;
- Estímulo à leitura com oficinas de redação;
- Uso de plataformas para treinamento de redação, com feedbacks para os alunos sobre a escrita e participação em concursos de redação;
- Integração da base comum com a base técnica, onde a produção de redação é estimulada tanto nas disciplinas gerais, quanto naquelas voltadas especificamente para o campo profissional;
- Aulas dialogadas com temáticas emergentes.
Democratizar os bons resultados
“Quem acompanhou o trabalho sabe. Os alunos se superaram e é muito gratificante. Temos um projeto chamado RedLab que quando começou em 2018 era uma turma que levava esse resultado. Hoje, o resultado é para todos. Não apenas uma turma específica”, destaca a coordenadora pedagógica, Rosilane Costa.
De acordo com ela, o Redação em Laboratório (RedLab) é um projeto com três vertentes: leitura, escrita e oralidade.
No 1º ano, explica, é trabalhada a fluência leitora dos alunos em conexão com as competências 1 e 2 exigidas na redação do Enem, que são, respectivamente, o domínio da escrita formal da língua portuguesa e a compreensão do tema e a não fuga do que é proposto. Projetos como o Litera Giffoni e Círculo de Leitura também fazem parte do cotidiano dos estudantes nesse período, “é a etapa da construção da criticidade, uma leitura mais filosófica, crítica”, completa.
Já no 2º ano, diz ela, quando já se tem a noção de leitura e escrita, há uma apresentação das redações nota 1.000 e os caminhos para chegar a essas produções.
Oficinas de redação ocorrem uma vez por semana. As outras competências, 3, 4 e 5, explica a coordenadora, que são, respectivamente, a seleção, organização e interpretação de informações, fatos e argumentos em defesa de um ponto de vista; o conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação e a elaboração de proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos, também são trabalhadas.
No 3º ano, afirma, há uma “imersão em redação ao longo ano letivo e vai construindo todas as competências. Um mês para cada competência e com isso vamos consolidando as habilidades”.
Outro fator que ajuda no processo, avalia a coordenadora, é a integração da base comum e da base técnica. Nesse sentido, as atividades avaliativas da disciplinas voltadas à formação profissionalizante também exercitam textos dissertativos-argumentativos.
“É uma escola profissionalizante, mas essa integração faz com que os meninos estejam preparados para o mundo. Tanto para o mercado de trabalho, como para a universidade. E essa escolha vai depender do projeto de vida dele”.
De acordo com ela, a EEEP abriga “alunos de todas as classes sociais”. “Tem estudantes que são filhos de médicos, como também tem estudantes filhos de agricultores. E antes, esse acesso ao conhecimento não era voltado para a equidade. Mas, entendemos que a escola como tem essa função social transformadora, ela precisa gerar oportunidade para que todos aprendam na mesma proporção”, por isso, argumenta, os resultados têm sido tão equilibrados.
Comemorar as conquistas
O estudante Jancarlos Wendell do Nascimento, 18 anos, foi um dos 15 alunos da escola que alcançou 980 pontos na redação. Morador do município de Jijoca de Jericoacoara, vizinho a Acaraú, ele relata que para chegar na escola, onde durante os 3 anos estudou em tempo integral, utilizava 2 transportes escolar e saía de casa às 5h40.
O desempenho na redação foi "por um esforço próprio, devido à intenção de alcançar os próprios sonhos como ao preparo da escola”, avalia. Sobre o tema - “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” - ele conta que ficou surpreso, mas após o impacto inicial “foi conseguindo desenvolver”.
“Quando fiz o meu texto, a estruturação, quando passei a limpo, vi que o tema não era complicado. O tema já vinha com o problema explícito. Achei mais difícil porque tinham muitas minúcias. Fiquei com receio de abordar só uma parte do problema. Fiquei refletindo sobre o tema e é um tema que está no dia a dia. Interagimos todos os dias com esse tema, mas a gente não percebe. É um tema de redação para a gente se tocar do que está vivendo”.
Entusiasmado com o resultado, ele defende que ter segurança de ter trabalhado todas as habilidades necessárias contribuiu na produção da escrita. Agora, o momento é de tentar ingressar via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em universidades públicas em Fortaleza, Sobral ou Parnaíba (PI) ou em instituições particulares por meio do Prouni. O desejo é cursar Psicologia ou Publicidade e Propaganda.
Acompanhamento individual
A professora de Língua Portuguesa e Redação, Josiane Costa, reforça que além das estratégias já mencionadas, o acompanhamento individual é um fator que contribui. “Dentro das oficinas a gente abre espaço para orientações, produções, escrita, devolutiva e reescrita. A gente trabalha de uma maneira muito forte com os feedbacks para que o aluno saiba onde ele está errando, como pode progredir e a gente possa vê-lo de forma individual e ele consiga crescer”.
Outro ponto são as atividades de produção textual incluírem os alunos desde o 1º ano. “Esse trabalho não acontece só no 3º ano. Ele é processual. Nós temos um trabalho alinhado entre as professoras da 1, 2 e 3ª série”.
Ela também destaca que a integração da área técnica com a base comum.
“Existe um apoio muito grande entre os professores. Embora sejamos de áreas distintas, trabalhamos em prol de um propósito comum muito grande. A construção de aluno escritor pode levá-lo à universidade. Temos muita integração. Todos os anos temos formação com todos os professores da base técnica e da base comum. Ela unifica o nosso trabalho".
Essa formação, defende Josiane, “unifica a vivência e extrapola o teor pedagógico” , alcançando inclusive fatores socioemocionais. “Apoio, incentivos, conversas, conselhos. Às vezes, receber orientação de alguém que você admira, de um bom profissional, na prática, tem gerado frutos. Essa integração é pedagógica e é socioemocional com certeza”, destaca.
Como é calculada a nota da redação do Enem
A redação é uma das 5 provas do Enem. Nessa avaliação é possível alcançar a pontuação máxima, diferentemente das outras áreas — Ciências da Natureza, Linguagens, Ciências Humanas e Matemática — com provas objetivas cuja metodologia de correção utilizada é a chamada Teoria de Resposta ao Item (TRI).
No geral, as redações são corrigidas por dois avaliadores graduados em Letras ou Linguística, de forma independente, sem que um conheça a nota atribuída pelo outro. Eles levam em conta 5 fatores ou competências para atribuir uma nota:
- Competência I: Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa;
- Competência II: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de
- conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa;
- Competência III: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e
- argumentos em defesa de um ponto de vista;
- Competência IV: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação;
- Competência V: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.
Cada avaliador atribui uma nota entre 0 e 200 pontos para cada uma das cinco competências. A soma dos pontos compõe a nota total de cada avaliador, que pode chegar a 1.000 pontos. A nota final é média aritmética das notas totais atribuídas pelos dois avaliadores.