Aos 15 anos, João (nome fictício) buscou ajuda profissional para tratar uma dependência comportamental. Ele conheceu os sites de apostas esportivas — as chamadas bets — por meio de um amigo da escola e só conseguia pensar nisso. Com bons resultados no início, passou a se dedicar ao estudo da performance dos jogadores e de times. Mas depois ele começou a perder.
Desesperado e sem coragem de contar à mãe e ao padrasto o que estava acontecendo, o menino ficou cada vez mais obcecado para recuperar o dinheiro perdido. Foi então que ele soube de um receptador e roubou as joias da mãe e da avó para tentar pagar as dívidas.
As bets — do inglês, “apostar” — dizem respeito a apostas esportivas em que se tenta adivinhar o placar ou alguma condição de uma partida. Essa modalidade é denominada “aposta de quota fixa” e conta com um fator de multiplicação que define o valor a ser recebido caso o palpite esteja correto. É possível apostar em tempo real em lances que vão acontecer nos minutos seguintes, encurtando o tempo de resposta do resultado.
Entre os casos relacionados ao vício de jovens em bets, o de João foi o mais grave que já chegou ao consultório da psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora da clínica de prevenção, diagnóstico e tratamento em psiquiatria e dependências Espaço Clif, do Rio de Janeiro. Especialista em Dependência Química e mestre em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela acredita que esse é “o público do futuro”.
A psicóloga compartilhou o caso clínico, preservando a identidade do paciente, no congresso Cérebro, Comportamento e Emoções 2024, que ocorreu em junho na capital fluminense.
Na mesa-redonda “As novas faces do transtorno do jogo: velhas ideias, novos disfarces”, Elizabeth falou sobre como estão sendo feitos movimentos para suavizar a percepção de risco associada às apostas esportivas. Posteriormente, em entrevista coletiva concedida a jornalistas, ela aprofundou a discussão sobre o tema.
LEGALIZAÇÃO DAS BETS
Nos últimos dias de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei nº 14.790/23, que dispõe sobre as apostas de quota fixa. O texto tributa empresas e apostadores, define regras para a exploração do serviço e determina a partilha dos recursos entre seguridade social, educação, saúde, turismo, segurança pública e esporte. A projeção do Ministério da Fazenda é de arrecadar até R$ 12 bilhões “em um mercado totalmente regulado, sedimentado e em pleno faturamento”.
“Tudo é vendido como um grande ganho para a nossa sociedade”, aponta a psicóloga, ao criticar a regulamentação e destacar a falta de discussão sobre o adoecimento provável de grande percentual dos usuários. Nesse contexto, ela destaca que o sistema de saúde não conseguirá se preparar a tempo para atender toda a demanda.
Entre os desafios está o próprio interesse por parte dos profissionais, de acharem que esse é um assunto relevante. “Ninguém pergunta ‘faz uma fézinha?’ em uma entrevista clínica. Mas os médicos não perguntam se você bebe, se você fuma?”, questiona.
Com a possibilidade de apostas em qualquer lugar, em diferentes plataformas e em diversas modalidades esportivas, o perfil das pessoas viciadas tem mudado: elas são cada vez mais novas. A psicóloga destaca a parcela de adultos jovens, devido à maior autonomia financeira, e aponta o perfil “meninos fãs de esporte” como “uma presa fácil”.
As motivações para apostar são diversas, como busca por ascensão social ou procura por algum grau de autonomia. A psicóloga aponta basicamente dois tipos de jogador: o buscador de emoções, que procura a sustentação da excitação fisiológica, e o que foge dos problemas.
O que acontecia nos bingos, por exemplo: existe um perfil que ia lá e botava uma grana de uma vez. E existe aquela pessoa que levou um dinheirinho e passa um dia todo ali dentro do cassino ou do bingo. Quanto mais ela ficar afastada dos problemas dela, ela tá satisfeita.
UMA QUESTÃO DE ESCOLHA?
Elizabeth Carneiro faz um paralelo entre o atual contexto das bets com o histórico da luta contra o tabaco, em que também foi necessário enfrentar questões relacionadas a políticas públicas e estratégias da indústria. “Em 1996, nós abrimos o primeiro programa de tabagismo no Brasil, na Santa Casa (de Misericórdia do Rio de Janeiro). Eu estou me sentindo recomeçando”, diz.
A especialista destaca há “um projeto coletivo de marketing” voltado para as bets, com patrocínio de times de futebol e endosso por parte de celebridades, investindo na ideia de que apostar ou não é uma questão de escolha individual. Além disso, ela afirma que o marketing de indução — com oferecimento de promoções e cashback — fortalece uma “fantasia de que tudo é feito para ele não perder”.
Todo esse contexto, segundo a psicóloga, faz parte de um movimento para normalizar as apostas esportivas na vida cotidiana. “Existe um estudo em inglês que diz que ¼ das crianças selecionou uma marca de jogo de aposta como sua marca favorita — isso, entre sorvete, boneca, carrinho. Ou seja, a criança já está conectada com a marca”, afirmou, na palestra.
Outro fator envolvido nessas apostas é uma ilusão de que, caso a pessoa estude e se prepare, consegue conhecer todas as variáveis que podem acontecer ao longo de uma partida. “(São) inúmeras distorções cognitivas que falam a favor de um pensamento mágico, de que algum atributo pessoal dele vai dar conta de que tudo dê certo e a vida dele dê uma grande virada”, diz.
VULNERABILIDADES
Nem todas as pessoas que realizam apostas esportivas vão desenvolver dependência. Um “ponto de corte” para detectar se há um adoecimento, segundo Carneiro, é quando a pessoa joga para recuperar o que perdeu.
Ela explica que há uma junção de aspectos biológicos e psicológicos que podem favorecer o desenvolvimento de uma relação patológica. Pessoas com depressão, ansiedade ou transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), por exemplo, são grupos vulneráveis.
Questões familiares e emocionais também podem ter impacto — como ocorreu no caso de João, o paciente de 15 anos, que passou por um abandono paterno na infância. “Era uma família cheia de segredo, que ninguém podia falar completamente o que aconteceu com o pai. No trabalho terapêutico familiar, estimulamos que a mãe contasse tudo”, afirma.
Além disso, as bets estão inseridas em um contexto de dependência de internet e têm acesso facilitado pelo celular, com estímulos constantes. “Quando a possibilidade de apostar entra em um guarda-chuva de pessoas que já estão completamente adictas, a possibilidade do engajamento no jogo e de descontrole é muito maior”, explica.
Nos diferentes tipos de vício, a rapidez do reforço determina o potencial de dependência da substância ou da prática. As máquinas caça-níquel, por exemplo, são tão adictivas devido ao reforço imediato. E as plataformas das bets, segundo a psicóloga, são como um “caça-níquel ambulante”. “Se não está rolando o jogo de futebol, está rolando o de vôlei. Você pode jogar o dia todo”, comenta.
* A repórter viajou a convite do evento