Viral de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas' evidencia literatura e tradução brasileiras no exterior

Tradutoras de Machado de Assis e Stênio Gardel refletem sobre a importância e os desafios de transpor as regionalidades históricas e orais para outros idiomas

O debate sobre a internacionalização da literatura brasileira ganhou fôlego — quiçá inédito — na última semana, quando uma escritora dos Estados Unidos viralizou com um vídeo no qual elogia “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, tradução para o inglês do clássico brasileiro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.

A partir da repercussão, o Verso conversou com as tradutoras Flora Thomson-DeVeaux — responsável pela elogiada tradução da obra de Machado — e Bruna Dantas Lobato — premiada em 2023 por verter o romance cearense “A palavra que resta”, de Stênio Gardel, ao inglês — e com a professora da Universidade Federal do Ceará Luana Ferreira de Freitas sobre a inserção da produção literária nacional no exterior.

No TikTok, a escritora norte-americana Courtney Henning Novak definiu “Memórias Póstumas” como “o melhor livro já escrito” e fez menção direta ao trabalho de Flora, o que abriu o que a tradutora definiu nas redes sociais como uma “onda de notoriedade tradutória” — coisa “raríssima”, ainda segundo ela. 

Nascida nos Estados Unidos, Flora — que hoje vive no Rio de Janeiro — conta ao Verso que começou a aprender português em 2009 como “exercício linguístico”. “Conforme fui me aprofundando na história, na literatura, e na música do Brasil, virou uma paixão”, lembra.

Ainda no início do aprendizado da língua, começou a fazer trabalhos vertendo português para inglês, incluindo livros acadêmicos, ensaios e até legendas de filmes. “Adorei a sensação de estar fazendo um quebra-cabeça infinito, testando e tentando até chegar na palavra certa, na frase certa”, metaforiza

O primeiro contato com a obra de Machado de Assis veio no segundo ano de graduação, quando leu “Memórias Póstumas” pela primeira vez, em português: “Foi arrebatador”. Já no doutorado, Flora se dedicou a retraduzir o clássico brasileiro para o inglês. 

A versão assinada por ela foi lançada em 2020 pela Penguin Classics. Após o sucesso do vídeo de Courtney, postado no sábado (18), o livro chegou ao 1º lugar de vendas na categoria Literatura Latino-Americana e Caribenha na Amazon dos EUA nesta semana.

“Quando assisti ao vídeo, em primeiro lugar, fiquei muito contente de perceber o entusiasmo genuíno dela pela obra. Esse é o sonho de qualquer tradutor, de que o texto que a gente ame também consiga arrebatar leitores na nossa versão”, celebra Flora.

“Foi uma gratíssima surpresa quando ela elogiou especificamente a tradução (até resenhas em publicações prestigiosas muitas vezes ‘esquecem’ de mencionar tradutores) e se deu ao trabalho de citar meu nome”
Flora Thomson-DeVeaux
tradutora

Machado de Assis pelo mundo

“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, lançado em 1881, foi o quinto romance da carreira de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Ainda que tenha sido um “meteoro na cena literária” da época, como define a tradutora Flora Thomson-DeVeaux, o autor demorou décadas para ter a obra internacionalizada.

A primeira tradução de um livro do carioca foi de “Memórias Póstumas”, para o espanhol e veio em 1902, como ensina a professora Luana Ferreira de Freitas, membro permanente da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal do Ceará. 

Já a primeira versão em inglês do livro, segundo Flora, foi lançada somente em 1952. “Historicamente, o problema do Machado nos Estados Unidos foi chegar tarde”, aponta a tradutora. Até a versão traduzida por ela alcançar o topo de vendas da Amazon, foram 72 anos.

Luana destaca que Machado é “bastante traduzido” e admirado por intelectuais e acadêmicos pelo mundo, como Anatole France, Susan Sontag, August Willemsen, Salman Rushdie, Harold Bloom, e os pesquisadores “machadianos” John Gledson e Helen Caldwell.

“A questão era que Machado, apesar das traduções e dos depoimentos dos famosos admiradores, não era conhecido nem lido pelo público leitor, não convencia o mercado”, contrapõe a professora. “O vídeo que viralizou da famosa influenciadora parece ter surtido efeito no cenário da tradução da obra machadiana”, aponta.

Literatura brasileira pelo mundo

A professora e pesquisadora lembra que, no mercado literário mundial, o “controle quase absoluto que os Estados Unidos têm” é “incontornável”. “Tanto que a ‘existência literária’ parece só acontecer a partir do crivo norte-americano das traduções literárias para o inglês. A recepção destas traduções parece ser determinante para que outras culturas traduzam tal literatura”, avalia Luana.

Pesquisadora de literatura brasileira traduzida no exterior, a especialista reconhece um “percurso bastante errático” da produção nacional no mercado mundial. “Em primeiro lugar por ser incluída por estrangeiros em um bloco chamado literatura latino-americana, que compreenderia os países hispano-americanos e o Brasil, ignorando a autonomia da literatura brasileira em relação aos países hispano-americanos”, inicia.

“Em segundo lugar por ser considerada uma literatura periférica pelo mercado literário mundial, ou seja, pelo centro literário, quem manda, quem domina o tal mercado”, segue. A professora destaca, porém, uma virada a partir dos anos 2010.

“Com a tradução da obra completa de Clarice Lispector para o inglês, seguida da tradução de seus romances e contos para, por exemplo, o coreano, o chinês, o árabe, o polonês, o finlandês, o húngaro, o cenário foi mudando aos poucos no exterior e a literatura brasileira foi tendo cada vez mais visibilidade
Luana Ferreira de Freitas
professora e membro permanente da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFC

“Essa visibilidade não se limita apenas aos clássicos, mas chega até a literatura contemporânea”, destaca Luana.

Oralidade nordestina e marcas do tempo desafiam tradutoras

 Em 2023, a tradutora potiguar Bruna Dantas Lobato e o escritor cearense Stênio Gardel foram vencedores do National Book Award na categoria Literatura Traduzida pela tradução para o inglês do romance “A palavra que resta”.

Nascida no Rio Grande do Norte, Bruna enveredou na área após se mudar para os EUA e começar a estudar escrita. Na época, enquanto inclusive escrevia o primeiro livro da carreira em inglês, encontrou na tradução uma forma de “continuar conectada ao português e também de compartilhar um pouco de casa na língua inglesa”.

A escrita de Stênio na obra é marcadamente oral, cearense e interiorana, um desafio para efetivar a tradução. “Essa oralidade é uma das minhas coisas favoritas, principalmente como nordestina também. Trabalhei muito na questão falada no inglês, para que o texto tivesse o senso de humor, informalidade e energia que via no português”, afirma.

“Já vi outras traduções de livros nordestinos que fazem o texto soar regional demais, exageradamente caipira, o que achata e empalidece o texto para mim”, opina Bruna. A busca da tradutora foi por “entender o que tem de inovador e poético na linguagem deles e tentar recriar essa poesia e inovação no inglês”.

“Foi um processo muito divertido, lendo tudo em voz alta para ouvir se a história soava certa de forma oral. Ser nordestina e entender o nosso jeito de falar como expressão genuína, sem preconceitos, foi fundamental. Não teria como tratar a nossa linguagem com o respeito que merece se não chego a entender a humanidade do povo que os fala”
Bruna Dantas Lobato
tradutora

Além de “A palavra que resta”, Bruna também verteu outras obras brasileiras contemporâneas ao inglês, além de também assinar traduções de Caio Fernando Abreu para o idioma. Independente de tempo, gênero e formato, ela compartilha que trata o texto, inicialmente, como leitora.

“Começo lendo o texto que quero traduzir com cuidado e anotando minhas impressões como leitora. Isso vai me servir como um guia do que pretendo captar na tradução, o estilo, tom, ritmo, senso de humor, técnicas da narrativa”, explica.

“Tanto com literatura contemporânea quanto com os clássicos, sempre foco muito na linguagem e no lado emocional — como os personagens falam, o que os preocupa, como veem o mundo. As respostas a essas questões podem ser diferentes, mas — talvez por não morar no Brasil e sentir essa distância — meu interesse em entendê-los é o mesmo”, considera.

Para Flora, os desafios estavam não somente na forma, mas no próprio conteúdo, inclusive histórico, de “Memórias Póstumas”. “A parte difícil não é a ironia em si, é o contexto com o qual Machado está jogando. Ele deixa piscadelas o tempo todo que remetem a um cenário sócio-político que já está distante da memória, até para leitores brasileiros contemporâneos”, aponta, ressaltando ser “partidária” de edições anotadas.

“Quando Brás Cubas passa ‘por aquele Valongo afora’, aquela palavra insuspeita, ‘aquele’, já contém um mundo inteiro: é um lugar de terrível memória, que simbolizou tanto o tráfico escravo quanto a violação sistemática das proibições a ele, e no entanto Machado não frisa nada disso”
Flora Thomson-DeVeaux
tradutora

“A dificuldade é fazer com que o leitor norte-americano, por exemplo, possa perceber o peso dessas referências sem estragar a leveza da prosa”, elabora Flora. Mais recentemente, a tradutora também verteu ao inglês "O turista aprendiz" (1929), de Mário de Andrade.

Reconhecimentos 

Para além do recente momento de repercussão da tradução de “Memórias Póstumas”, Flora acessa a recepção ao próprio trabalho, em especial, no contexto acadêmico.

“Fico sabendo da recepção à tradução sobretudo no contexto de sala de aula, na verdade, porque tenho mais contato com o meio acadêmico norte-americano. O romance tem entrado em muitos currículos; e vários professores já me falaram que, na hora de escrever o trabalho final, a maior parte dos alunos deles escolhia escrever sobre ‘Memórias Póstumas’’, compartilha.

Já para Bruna, o prêmio recebido no ano passado foi um dos retornos do trabalho com o livro cearense. “Não sabia o que esperar da recepção à ‘A palavra que resta’ em inglês, como livro brasileiro e nordestino, sobre um universo bem distante das grandes editoras em Nova York. Mas tem sido lindo”, destaca.

“Estou muito feliz que tenha encontrado tanto reconhecimento e que tantos leitores possam ter encontrado um pouco da beleza da língua portuguesa através da minha tradução”, celebra.

Processo para um livro ser traduzido inclui políticas públicas

A professora e pesquisadora Luana Ferreira de Freitas explica que, para uma obra brasileira se internacionalizar, é geralmente preciso que autor e editora brasileira interessados contactem uma editora estrangeira via mediação de agente literária.

“Feiras internacionais do livro são ambientes perfeitos para essa negociação. Mas, em alguns casos, a negociação é feita pela própria editora. Cabe lembrar que há uma infinidade de pequenas editoras interessadas em literaturas estrangeiras tanto nos Estados Unidos quanto em países da Europa”, destaca.

Após as negociações, a tradução é concretizada e editada; e o livro, preparado e publicado. Em relação ao passo final, a professora destaca “políticas relevantes para a internacionalização da literatura brasileira” feitas pelo Governo Federal.

A Fundação Biblioteca Nacional tem duas iniciativas-chave nesse processo:

  • a revista Machado de Assis Magazine: Brazilian Literature in Translation, que segundo ela “divulga textos literários traduzidos de autores brasileiros no mercado editorial estrangeiro”;
  • e os editais anuais do programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, que prevê “ajuda financeira para editoras estrangeiras para a tradução e publicação de obras literárias brasileiras”. “Clarice é a autora campeã de solicitações, seguida de Machado”, compartilha Luana.

Já o Instituto Guimarães Rosa, ligado ao Ministério das Relações Exteriores, cujo principal papel é promover a cultura brasileira no exterior, compõe a comissão avaliadora e contribui financeiramente no programa da Fundação Biblioteca Nacional.

Finalmente, Luana cita a iniciativa de promoção da literatura brasileira no exterior Brazilian Publishers, parceria entre a ApexBrasil, do Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviço, e a Câmara Brasileira do Livro. No fomento à exportação de produção editorial do País, o projeto dá assistência na venda de direitos autorais, além de incentivar participações em feiras internacionais.