A reforma do Imposto de Renda (IR) proposta pelo Governo Federal e já enviada à Câmara pode impactar fortemente na condução das atividades da Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet), principal mecanismo de financiamento para projetos do setor no Brasil.
Estima-se que, de R$ 1,59 bilhão previsto inicialmente, apenas R$ 266 milhões sejam destinados a essa política pública, o que implica uma redução de 83%.
O dado está presente em um estudo realizado pelo pesquisador Thiago Alvim e publicado na plataforma Nexo Investimento Social, da qual ele é fundador. Ao Verso, o pesquisador situa que vem acompanhando o debate sobre uma eventual reforma do Imposto de Renda há tempos e sempre suspeitou que a proposta do Governo provocaria redução em incentivos fiscais.
“Era esperado, pelo discurso recorrente do Ministério da Economia, que os incentivos para projetos sociais também entrassem no corte. Por isso não surpreendeu quando a proposta do Governo veio cortando de 15% para 10% a alíquota básica do Imposto de Renda. É justamente essa alíquota a base de cálculo para os incentivos destinados aos projetos sociais”, dimensiona.
Desta feita, assim que a proposta foi publicada, Thiago foi conferir se, de fato, o que estava posto impactava os incentivos fiscais para a área social. Segundo ele, o cálculo para mensurar o efeito gerado foi simples. Bastou ver a previsão oficial de renúncia da Lei Rouanet para o ano de 2022 – enviada no âmbito da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) – e considerar inicialmente a redução de 1/3 proposta pelo Governo, bem como a redução de 83% proposta pelo relator do texto, o deputado Celso Sabino (PSDB-PA).
“A LDO considera a regra atual e a reforma reduz o potencial de doação de cada empresa. Então a conta é bem simples”, explica. “R$ 531 milhões é a redução proposta pelo Governo e essa redução seria dividida em dois anos. A base de cálculo seria reduzida de 15% para 12,5% em 2022 e de 12,5% para 10% em 2023”.
Diante da relevância da Rouanet para um setor historicamente fraturado no País – sobretudo devido aos efeitos da pandemia de Covid-19 – uma redução de mais de R$500 milhões, mesmo que suavizada por ser feita em um par de anos, causaria um grande estrago no segmento cultural, de acordo com Thiago.
“Vários projetos que hoje dependem do fomento da Lei Rouanet seriam prejudicados, mas ainda acho que não seria o fim do mundo. Se a economia crescer, essa redução poderia ser compensada”.
Equipamentos afetados
A proposta do relator, porém, tem um impacto muito maior do que o já apresentado. A redução deixa de ser de 1/3 do potencial de investimento das empresas para ser de 83%, conforme já sublinhado. Nesse cenário, Thiago Alvim não tem dúvidas de que grandes organizações culturais de referência sofrerão um iminente risco de sobrevivência.
Como exemplos, ele cita renomados museus – como o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Museu do Amanhã (RJ) – e orquestras, como a Sinfônica do Estado de São Paulo e a Filarmônica de Minas Gerais, todos detentores de grande envergadura sociocultural que teriam grande dificuldade de manter operações sem apoio da Lei Rouanet.
“Não consigo afirmar que alguma dessas organizações chegaria a fechar as portas, uma vez que várias possuem relação estabelecida com organizações públicas. Mas, com certeza, várias instituições culturais brasileiras correriam o risco de fechar as portas. A Lei Rouanet beneficiou mais de duas mil organizações em 2020. Muitas delas têm no incentivo fiscal a principal fonte de financiamento”, quantifica o pesquisador.
Vale sublinhar que o corte, inclusive, não afeta apenas a Lei Rouanet, mas também a Lei do esporte, os Fundos da Infância e do Idoso, o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência (Pronas/Pcd) e o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon). Tais mecanismos apoiam projetos de organizações que nem sempre teriam apoio direto do poder público.
Um exemplo relevante em Fortaleza é o Lar Torres de Melo, referência nacional no acolhimento de idosos e que tem, no Fundo do Idoso, uma importante fonte de financiamento.
“Com uma redução de 80% no potencial de doação das empresas para esse Fundo, as atividades do Lar Torres de Melo certamente seriam afetadas”, calcula Thiago.
Legitimidade da proposta
Ainda conforme o estudioso, não há nada de ilegítimo na reforma do IR, a princípio. O Governo trabalha para enviar propostas para o Legislativo debater e é natural que a sociedade se posicione para apresentar efeitos colaterais de eventuais mudanças na legislação. A legitimidade, não sem motivo, se dá com a aprovação do projeto após amplo debate.
O que Thiago Alvim acredita é que o relator do texto da proposta não deve ter considerado o impacto da proposta preliminar no fomento a projetos sociais. “O projeto de lei não trata diretamente da Lei Rouanet, a redução do potencial de investimento é indireta. Por isso, acredito que ainda há tempo para uma análise mais atenta que possa reverter os efeitos para a área social”, avalia.
“O fim da Lei Rouanet seria um desastre para a cultura nacional. O mecanismo tem vários problemas que precisam ser debatidos, sendo a concentração dos recursos no sudeste o principal deles. Mas a solução passa por aperfeiçoar o mecanismo e não sua extinção. O modelo da Rouanet faz com que a decisão final sobre a alocação de recursos seja pulverizada. Não é o Governo Federal que decide onde esse R$ 1,6 bilhão será aplicado. É a soma da decisão de mais de 3 mil empresas e 11 mil pessoas físicas. Eu diria que a Lei Rouanet é um patrimônio nacional e que seria difícil calcular o tamanho do prejuízo para a sociedade brasileira em caso de sua extinção”.
Quando questionado sobre quais movimentos são necessários por parte do setor de forma a aplacar os efeitos dessa possível execução da proposta governamental, o pesquisador elenca primeiramente a necessidade de informar às pessoas sobre os impactos da reforma. “Legislação tributária é assunto árido e, nesse caso, ainda temos o problema de que o efeito na Lei Rouanet é indireto”, diz.
“Então, precisamos dar visibilidade para o problema para que o tema seja considerado pelo relator da reforma e pelos parlamentares. Além disso, é fundamental que as organizações afetadas se manifestem. É uma ótima oportunidade para a sociedade civil organizada atuar em conjunto e não de forma temática. A reforma afeta organizações culturais, esportivas, de saúde, que atuam com crianças e idosos. E a solução pode ser única para todas as áreas”.
Agora, tudo indica que a tramitação da reforma deva ser acelerada assim que os parlamentares voltarem do recesso, na primeira semana de agosto. Assim, na ótica de Thiago, falta pouco tempo para sensibilizar o relator para que os efeitos sobre a área social sejam neutralizados.
“O parecer do relator na Câmara é muito relevante no processo legislativo e seria ótimo se ele entendesse e ajustasse a proposta. Mas depois o projeto segue para votação por todos os deputados e depois pelos senadores. Há tempo suficiente para a devida mobilização das áreas afetadas e sensibilização dos parlamentares, mas é importante agir rapidamente”, considera.
Diálogo e articulação
Com a medida em trâmite, também é importante sublinhar o fato de que o governo promove uma redução considerável no potencial de destinação de recursos para projetos aprovados na Lei Rouanet sem, contudo, precisar discutir com o setor cultural a reformulação do incentivo. Para o jornalista e gestor cultural Henilton Menezes, diante do panorama no qual o Brasil se encontra, as resoluções não seriam mesmo discutidas com os profissionais do segmento.
“Os recursos destinados à cultura estão sendo reduzidos de forma deliberada. Os projetos estão sendo represados, as liberações de recursos já captados não estão sendo realizadas, diversos planos anuais de instituições culturais tradicionais estão sendo reprovados”, enumera.
“Ao mesmo tempo, considerando exceções que confirmam a regra, os empresários não estão preocupados com essas reduções de investimentos para o setor cultural. É um cenário de tragédia para a arquitetura de financiamento da cultura brasileira”.
Ex-secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (de 2010 a 2013) e autor do livro “A Lei Rouanet Muito Além dos (F)Atos” (Loyola, 2016), Henilton reitera que o efeito prático de todo o contexto da reforma de IR incidindo sobre a Rouanet é a paralisação de milhares de atividades culturais que são financiadas com ajuda de incentivos fiscais oriundos dessa política pública.
Em sua visão, será a sociedade que mais perderá, e muitas vezes sem perceber. Na conta, está não somente a impossibilidade da fruição de atividades culturais oferecidas de forma gratuita ou a preços populares, como também o funcionamento precário – ou até fechamento – de museus, equipamentos culturais, escolas e manutenção de corpos artísticos, a exemplo de grupos de teatro e de dança.
“Já estamos vivendo, na prática, a ausência da Lei Rouanet, que está sendo, deliberadamente, paralisada. Não temos mais diálogo com a Secretaria Especial de Cultura. Seus gestores atuais trabalham contra o setor, com ameaças e retaliações, e considera que artistas que utilizam uma lei em vigor no país são ‘bandidos’”, observa.
“Nos últimos dois anos, o impacto dessa paralisação e a falta de diálogo não foram perceptíveis pela existência de um ‘estoque’ de projetos aprovados, disponíveis nas mãos dos proponentes, o que permitiu – mesmo precariamente e no cenário de pandemia – uma certa manutenção das atividades. Esse estoque está ‘minguando’ e, já em 2021, a previsão é de uma redução de mais de 50% dos recursos captados, comparados com 2020”.
Isso significa, segundo Henilton, que, quando as atividades culturais voltarem à normalidade, não haverá projetos a serem financiados pelos contribuintes, mesmo sem a aprovação da reforma em curso. “A reforma agravará ainda mais esse quadro de escassez de recursos”, prevê. Ao mesmo tempo, o jornalista e gestor cultural aponta uma saída para uma transformação desse quadro.
“Seria adequada uma discussão de um remodelamento do mecanismo de forma que promova uma distribuição mais justa entre os Estados da federação e promova o real funcionamento do Fundo Nacional de Cultura – mecanismo criado para funcionar como equalizador dessa distribuição. O projeto ProCultura, aprovado pela Câmara Federal, que remodelaria a Lei Rouanet, está no Senado há anos sem sair do lugar, exatamente por falta de prioridade estabelecida para o setor por quem atua no Governo”.
E completa: “Não vejo interesse no encaminhamento dessa discussão, mas sim o esvaziamento de qualquer mecanismo de apoio cultural. O Governo, desde sua posse, anunciou que a Lei Rouanet seria revogada, mas não conseguiu apoio para assim fazer. No entanto, estratégias de gestão estão inviabilizando seu uso. Na minha opinião, a tendência é que a Lei seja inviabilizada completamente – seja pela gestão danosa, seja pela diminuição das alíquotas de IR, ou até pela forte campanha de deterioração do mecanismo frente à sociedade brasileira”.
Pensar em soluções concretas
Mobilizadora de Recursos junto à BG Soluções Sociais, Bia Gurgel situa que os efeitos no setor cultural serão sentidos quando a reforma for sancionada e regulamentada. “Estaremos na torcida e trabalhando para que o impacto financeiro seja o menor possível na captação de recursos junto aos projetos”, diz.
Ela afirma que, na prática, caso todo o processo de reforma do Imposto de Renda na Lei Rouanet se efetive, haverá a necessidade de busca por mais empresas patrocinadoras e doadoras para suprir a queda da arrecadação.
No momento, Bia está com cinco projetos aguardando autorização para execução, e outros oito estão em execução ou com autorização para executar. Estas são iniciativas que foram patrocinadas no ano passado. Por sua vez, os projetos que serão patrocinados neste ano ainda não serão impactados por uma possível efetivação da reforma, pois, ainda que ela seja aprovada, somente passará a valer em 2022.
“Todos os setores envolvidos precisam participar dessa discussão sobre a reforma tributária e os cálculos das alíquotas. Na área social e cultural se fala muito da Lei de Incentivo à Cultura, mas também impacta igualmente na Lei de Incentivo ao Esporte, no Fundo do Idoso e no Fundo da Infância, e em alguns projetos da área de saúde”, exemplifica.
Não à toa, a opinião defendida pela mobilizadora de recursos para que o movimento seja amplo e nacional, com vistas a articular todos aqueles que trabalham em projetos sociais e culturais por meio das Leis de Incentivo – tanto as empresas quanto as organizações da sociedade civil, além de deputados(as) e senadores(as).
“Além disso, precisamos deixar claro para a sociedade que a proposta é pensar em soluções que não impactem no desconto final dos impostos das empresas. A reforma precisa acontecer. Mas ela está desenhada pensando somente na redução da alíquota básica A defesa é pensar em soluções concretas: sendo no cálculo desse desconto, podendo abranger também a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido), por exemplo, ou na compensação dessa perda, ampliando a porcentagem das deduções fiscais de cada lei”.