Terreno fértil para a descoberta de si, o universo artístico é também uma plataforma de reverberação. Funciona assim para artistas trans - pessoas não identificadas com o gênero com o qual foram designadas ao nascer - que se autoapresentam a seguir.
Cearenses de cidades como Fortaleza, Sobral e Camocim, encontraram na dança, na música, no cinema, nas artes plásticas e visuais tudo aquilo que precisam para gritar ao mundo a política e a poética do existir.
Em mais um janeiro, considerado o mês da visibilidade trans desde 2004, esta cena viva e pulsante da cultura de nosso Estado mostra com as próprias palavras e entregas artísticas a que veio. Confira alguns nomes e histórias para acompanhar:
1. Angel History (@angel.history), 24 anos, cantora, compositora, produtora musical, beat maker, apresentadora, host, Dj, maquiadora, modelo e criadora de conteúdo para a internet; Itapipoca - Fortaleza
Sou angel history, sou artista, travesti, periférica, que desde 2018 luta para construir e conquistar seu espaço dentro da cena cultural de Fortaleza. Minhas composições têm muitas referências de divas pop, música eletrônica e artistas trans e travestis do Ceará e de todo o Brasil. Em 2020, dei início a um projeto chamado #elafaztudo, no qual demostro todas as minhas habilidades na arte. Além de compor e produzir as faixas, também sou responsável por toda a identidade visual do projeto e, agora no final de janeiro, dou continuidade a ele com o single “Rapariga Vibes”. Já participei de diversos festivais da cidade, como o Corredor Cultural Benfica, Férias na PI, Viradão da Rede Cuca e também fui vice campeã do Festival de Música da Juventude em 2019.
Muito importante lembrar que é importante dar voz e visibilidade para pessoas trans o ano todo, pois precisamos de respeito, trabalho e oportunidade o ano todo. Sempre faço questão de usar minhas redes sociais para lembrar isso. Agora em janeiro, confesso que as pessoas colaram mesmo comigo e meu trampo. Vou fazer divulgação de loja super famosa de t-shirt, divulgação com banco digital nacional, vou gravar clipe, tenho uma agenda com muitos shows nos finais de semana e, sinceramente, eu fico feliz, mas, espero que essas oportunidades continuem em fevereiro, março, abril… enfim. Se for para apoiar e dar visibilidade que seja de verdade e que a porta fique sempre aberta.
2. Amorfas (@amorfa.s), 22 anos, artista visual, atriz, diretora de arte e graduanda em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Ceará, Fortaleza
Sou artista transdisciplinar, realizadora audiovisual e diretora criativa. Minha pesquisa e criação é contaminada pelo vídeo, performance, colagem de imagens, colagem sonora e gifs, experimentando tecidos como suporte para imagens; fabulando e experimentando narrativas e imagens fragmentadas, opacas e não-lineares, através de instalações e criação de espaços, texturas, projeções e mixagens; usando o celular como principal ferramenta de trabalho.Compus a 71⁰ edição do Salão de Abril com a videoarte BRA e participei do Ateliê Aberto do Salão das Ilusões e do Laboratório Criativo Experimental (LACRE) da Rede Cuca.
Durante a minha pesquisa com imagem, investigo formas de autorregistro com selfies e autorretrato, adicionando camadas de efeitos e glitch sobre mim mesma para aprofundar as possíveis leituras daquela silhueta. As fotocolagens hibridizam o formato humano, se transformando em texturas de seres pixelados ou disformes, criando fendas na forma de ler a ausência de rosto em corpos feitos de luz e paisagens. Como criar uma identidade? Como fabular um rosto através da desprogramação de gênero? Como se assemelhar a um vulto fantasma casca? A minha pesquisa se torna projeto de vida travesty ao tentar criar um acervo de imagens armadilhas fendas que dê conta de uma existência efêmera e cerceada, localizada no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, morando no Ceará que é o 2º estado mais violento com pessoas trans. Meu trabalho tem sido uma tentativa de burlar a lógica do extermínio e gerar mundos que desestabilizam a norma, o tempo da morte, gerando um salto na expectativa de vida, ao me dar permissão de sonhar com possibilidades de existências outras que não as notícias de morte. Encontrar na falha, no erro, na minha travestilidade um rasgo na dobra, um contrafeitiço.
3. Akwa (@kaosmarya), 24 anos, artesã, Fortaleza - Sobral
Do ponto em i, faço aberturas em y. Yndýgena natyva de mangue a beyra mar, fazendo morada na beyra ryo, onde me afloro Travesty. Artesã em resgate, crya da vyrada das madrugadas na ebryedade recomeço de jornada, nascyda em berço crystão y nas rodas de poesyas, slams y batalhas de MC's. DJ experymental com A Coletyva y em danças espyraladas. Mãe da Profound Kyky House of Soraya da cena Ballroom Cearence e organyzadora do Slam das Pocs. Costureyra, Pyntora e Tatuadora em redescoberta ancestral na SPYRAL, atelyê de produção. Escrevo desenhando na tentatyva de lembrar constantemente que estou vyva, escrytas lembretes do ymemorável, onde Pyndorama renasce das cynzas de um Brasyl colonyal que nunca nos abraçou. Que seja transpassy y flua…
Vem como abertura de postays para outras dymensões aquy. Tempo e Espaços possybylytados nessa exystêncya onde quem faz a passagem e quem tá na entrada e saýda são pessoas trans, mergulhando na premyssa "é nós por nós", logo quando vyvemos e morremos num tempo de negacyonysmos e esquecymentos. Fazer memórya para aquelus que estão por vyr, que estão y que estyveram. Adentrando em lugares que antes nos proybyam, possybylytando a exystêncya para além das delymytações colonyays de raça, gênero e sexualydade. Fortyfycando produções de formas que translyteram atmosferas e fomentando movymentos ycognocýveys e cryando novas cognyções. Em dyálogos que transmutam y moldam percepções, fluyndo em contynuydades...
4. Beija Aragão (@flordebeijaflor), 24 anos, artista visual, técnico e produtor audiovisual, Sobral - Fortaleza
Desde criança, a vida e tudo que a cerca me inquietava, por vir de uma situação de extrema pobreza. Minha família morava em uma casa feita de carnaúba, éramos muito conectados com a natureza, sua sabedoria, e isso foi decisivo para minha vida, pois marcou muito a minha vivência até a adolescência, quando fui descobrindo meus interesses pelas artes, desde cedo. Como a maioria dos jovens trans no Ceará, fui expulso de casa e tive uma vivência muito difícil na rua (por pouco tempo) sem o auxílio da minha família. Logo após esse episódio, eu iniciei minha transição, que vivo até hoje, e que influencia muito meu processo artístico-profissional, que é marcado pela conexão das minhas memórias com a ancestralidade, a natureza e minha vivência como transmasculino.
Ainda existe uma enorme lacuna de invisibilidade dos corpos de pessoas transmasculinas, então, nesse período, eu questiono essa visibilidade, porque vivemos os mais altos índices de violência e morte de pessoas trans e travestis do mundo. Ainda precisamos caminhar muito na luta pelas políticas públicas voltadas para corpos como o meu existirem. De certa forma, esse período de visibilidade ajuda a difundir minhas ilustrações, que trazem o meu corpo como meio de questionar o ‘CIStema’, mas também para comunicar uma série de lembranças e vivências que, não só estão presentes no meu cotidiano, como também na minha infância. Além disso, o mistério e a busca pela espiritualidade perpassam também em alguns elementos que trago na composição das ilustrações, como as plantas e seres híbridos que representam muito dos meus sentimentos, e que vêm como contraponto ao que a sociedade impõe aos nossos corpos.
5. caeu (@caue_henri), 23 anos, designer e artista visual, Fortaleza - Crato
Nascido na capital, moro há mais tempo no Cariri do que posso dizer de Fortaleza. Sou estudante de jornalismo, pesquisador de imagem e agora respondo a artista visual. Transviado e negro busco na imagem do(s) corpo(s) os caminhos a serem traçados. Faço alquimia com foto, desenho, pintura e o que mais der pra mexer.
Acho que sou, em muitos processos, preocupado com o corpo. É através de uma compreensão de mim e do meu corpo (trans e racializado) que eu absorvo o mundo e produzo arte. Tudo que sou atravessa a arte que faço.
6. Ella Monstra (@monstrava), 27 anos, comunicadora e multiartista, Fortaleza
Quem é Ella? Meu nome é Ella Monstra e já fui algumas, sou muitas e, com fé, serei mais ainda. Sou travesti, comunicadora e opero como multiartista nas linguagens das artes cênicas, visuais e performáticas. Nas construções coletivas, formo rede com pessoas dissidentes em busca de celebrar o fim do mundo vigente e arquitetar a criação de novos mundos. Nas artes visuais tenho descoberto sobre a relação entre vida, morte e as ressurreições possíveis na minha vida travesti. Nada disso responde à pergunta. São pistas, enigmas, armadilhas. Olhar para trás paralisa.
Acredito que a visibilidade e datas como a do orgulho são estratégias infelizmente ainda necessárias dado o contexto precário que vivemos, como população trans. Mas penso sempre em como podemos não cair na armadilha da visibilidade (que nós é dada por quem é qual intuito?). Até quando precisaremos nos fazer visíveis em um mundo tenta nos colocar para debaixo do tapete o tempo todo? Até quando ainda insistiremos nesse projeto falido de mundo? Não quero ser visível para todos os olhos, quero ser vista e entendida pela minha comunidade, e é por mim e para ela que faço arte. Mais do que falarmos de estratégias de sobrevivência precisamos exaltar a vida e abundância das existências trans.
7. Glau (@gggggggggglau), 21 anos, artista visual, Fortaleza
Me chamo Glau, sou colagista e ilustrador, cria da periferia de Fortaleza (Barroso) e me identifico enquanto uma pessoa não binária. A vivência com as ruas da cidade e o desejo de criar outros mundos possíveis é de onde nasce toda a minha potência artística.
Produzir arte está sempre interligado a celebração da minha vida e da prosperidade das corpas como a minha. O orgulho e a visibilidade trans para mim é isso. Não quero estar falando sobre morte toda hora, meu trabalho fala sobre fartura. Tento transpassar através do recorte e do risco, a possibilidade de se escrever a própria história e a importância de sermos quem somos, de estar onde quisermos, livres e diversas.
8. Lui Fonte (@lhidilui), 24 anos, artista visual, Camocim - Fortaleza
Sou transmasculino em metamorfose e artista por intuição. Trabalho como fotógrafo e videomaker desde 2018, atuando em ensaios, eventos, exposições artísticas, espetáculos, curta-metragem, documentário e experimentações imagéticas. No audiovisual, desenvolvo trabalhos como produtor, cinegrafista, (des)montador de imagens e diretor de fotografia. Em 2020, tive a oportunidade de estar em frente às câmeras como ator no curta-metragem “Na estrada sem fim há lampejos de esplendor”, dirigido por Liv Costa e Sunny Maia, que irá compor a programação deste ano da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Com as ilustrações, experimento dimensionalidades, texturas e cybertransmorfologias. Atualmente, estou adaptando e vivenciando meu traço em superfícies vivas, onde o risco parte de agulhas e me encontro como tatuador na @girinotatu. Graduando em Gestão de Políticas Públicas pela UFC, ao longo do percurso acadêmico desdobrei pesquisas sobre Produção e Gestão Cultural e o Acesso a Políticas Públicas de Saúde direcionadas para população Trans e Travesti.
Minha produção artística caminha lado a lado com a vivência de desobedecer às expectativas de gênero esperadas. A arte se torna um meio de expressar sentimentos e rebeliões. Atravessar e deixar-se flutuar em ilustrações, textos ou fragmentos de imagens que propõem a possibilidade de existência de outras corporalidades, germinações de biossistemas dissidentes, fertilidade da terra, dos reinos originários e de nascentes fluviais de vida eterna. O CIStema pressupõe que o debate sobre as Transvestigeneridades tem efervescência em janeiro, o tal mês da Visibilidade Trans e Travesti. Mas a real é que “visibilidade” e “orgulho trans” não enche a barriga de ninguém. Queremos e lutamos pelo mínimo ainda: acesso à cidadania, ao reconhecimento do nosso nome social, às políticas de saúde, ao mercado de trabalho, à espaços de arte e cultura e à segurança das vidas de nossas irmãs, travestis e pretas, que são as mais violentadas e desumanizadas nas ruas desse país. Visibilidade pra mim é poder ver pessoas trans e travestis ocupando espaços que são hegemonicamente brancos e cisgêneros.
9. Lyz Vedra (@lyzvedra), 26 anos, artista, Fortaleza - Maracanaú
Eu sou uma travesti cearense, artista e pesquisadora do corpo, sou produtora de conteúdo para redes sociais e bacharela em Dança pela Universidade Federal do Ceará. Enquanto artista, investigo a corporeidade, buscando estratégias para continuar existindo e constituindo minha travestilidade e ancestralidade numa rede ecossistêmica de vida. Interessada pelo corpo em performatividade, seja para pesquisa acadêmica, para a cena ou para as mídias digitais, venho desenvolvendo trabalhos artísticos partindo do corpo para pensar a minha própria existência em relação constante com o mundo. Me relaciono com suportes como o corpo, o palco, a rua, a sala de ensaio, o vídeo, o meio ambiente, o movimento e a escrita para criar e compor os meus trabalhos artísticos e elaborar discursos poéticos e um pensamento sensível em artes.
Olhar para a minha trajetória até aqui e perceber que é por meio do encontro com a arte que o meu pensamento se materializa e produz ruído nesse mundo alicerçado numa ficção de poder (Mombaça, 2016), a qual nós, corporeidades desobedientes somos sistematicamente submetidas, é entender que a visibilidade trans pode ser exercida junto à potência do imaginário criador de realidades encarnadas em nossas próprias identidades singulares e únicas. É compreender que quando eu crio, penso, elaboro e apresento o meu discurso artístico, eu afirmo a força da vida inerente àquelas existências como a minha ao passo que me apodero do que nos foi dito que não presta. Daquilo que, a julgamento da cisgeneridade, é vergonhoso, é pecado, é errado, é doentio. Então é me nutrindo daquilo que me é negado – do cuidado de si, saúde, carinho e afeto, espiritualidade, o poder da enunciação – é que eu cultivo o orgulho de me afirmar enquanto mim mesma: do jeitinho que me reconheço! Mas, sobretudo, é através do truque e do equê que burlo as armadilhas feitas para nos fazer desistir de nós mesmas. Nessa disputa, minha produção artística é o impulso que me lança à revelia da correnteza que quer me afogar.
10. Nik Hot (@nikhotoficial), 25 anos, cantora, Fortaleza
Sou a primeira funkeira travesti do Ceará e fundadora da casa Transformar (de acolhimento a pessoas trans). Iniciei minha carreira no funk em 2017, antes da transição, e em 2018 me tornei a primeira funkeira travesti do Ceará.
O meu trabalho é 100% autoral, traz muita visibilidade e representatividade para pessoas trans e travestis, por meio das músicas que componho. Além de quebrar esse paradigma machista dentro do meio do funk, me considero uma imagem de forte representatividade por ser a primeira travesti a cantar funk no Ceará. Gostaria muito de agradecer todo mundo que curte e apoia meu trabalho.