É um duplex de amarelo desgastado na esquina da José Vilar com a Canuto de Aguiar. Simplório, pouco lembra a imponência do Palácio da Abolição, de quem é vizinho. Mas ali se encontra uma das realezas do lanche fortalezense. O Caldo do Papai funciona há 56 anos no mesmo endereço, e continua: a força está na tradição do sabor e, sobretudo, na sensação de interior na Capital. Nem parece que está na área dentre os metros quadrados mais caros da cidade.
O grande responsável por essa energia é José Edson Barbosa – seu Edson ou, para fazer jus ao nome do estabelecimento, Papai. Aos 80 anos, é daqueles anfitriões de mão cheia: sentado na cadeira de balanço, cumprimenta quem passa e recebe com carinho quem chega. Desfia uma anedota atrás da outra. “Aqui não melhora, mas também não piora; não aumenta, nem inventa. É sempre a mesma coisa”, diz, poucos segundos de conversa.
Essa tradição de acolhida reflete em como o público se sente atraído a experimentar o carro-chefe da casa. Não são poucos os que param – seja a pé ou de carro – a fim de tomar o caldo, mas, sobretudo, ter dois dedos de prosa com o proprietário. Ficam ali, papeando, enquanto aguardam um prato ou copo descartável sair fumegando da cozinha.
São as duas opções disponíveis: no copinho de 250 ml – para quem prefere tomar em casa ou só como aperitivo – o preço é R$3, acompanhado de um pãozinho; no prato, fica a R$5, com dois pães e um cafezinho. Pouca importa se é para abrir o apetite ou curar de ressaca: às 4h da manhã, os portões do local já estão abertos para o famoso caldo tomar conta do corpo.
“De vez em quando algumas pessoas falam pra mim que um carro passa e o motorista pergunta, ‘Ali é o Caldo do Papai?’. Quando sabem onde é, muitos não entram porque veem o local muito humilde. Mal sabem eles que a gente é pobre, mas é nobre. Desde 7 de setembro de 1968 estou aqui, e cada dia mais feliz vendendo esse caldinho”.
Detalhes que enriquecem
O próprio seu Edson é um dos que preparam o caldo. Como auxiliar, ele tem dona Sílvia – longa companheira de trabalho – e outros atendentes. Ninguém erra a mão, afinal apenas o caldo é servido na casa. Quando acontece de ter outro item no cardápio, são Pratos Feitos para a hora do almoço, a R$13. É isto e nada mais.
“O preparo do caldo é muito simples: usamos carne moída, cheiro verde, pimentão, pimenta de cheiro, Knorr… Vai de oito a dez derivados. Bom ou ruim, nós estamos vendendo”, gargalha o Papai. “O bom daqui é que levamos tudo não só na brincadeira, mas na amizade. Caso a pessoa não goste do sabor, nosso objetivo é atender o cliente com um caldo bem quente. É como dizem: comida ruim, estando quente, já melhora”.
É só a sina brincalhona de seu Edson mesmo. O caldinho é saboroso, bem temperado e simples na medida certa. Não há requinte, lembrando bastante comida feita em casa. De tão quente, é preciso assoprar para não queimar a língua ou mergulhar logo os pãezinhos – que, inclusive, quase sempre são mais de dois, uma vez seu Edson não suportar ver a clientela sem mastigar enquanto toma o lanche. Se acabar pão, ele vem com mais.
A opção por vender caldo e não outro alimento tem a ver com um dos vários ditados que o empreendedor carrega consigo: “Quem vende água não quebra”. Seu Edson nasceu e se criou nas feiras livres, trabalhando como camelô na Rua Guilherme Rocha. À época, jovem adulto, vendia de leite condensado a Óleo Pajeú. Ao se mudar para o Meireles, resolveu tornar a própria casa um ponto comercial em que não houvesse dúvida de retorno financeiro.
Até hoje não há receio – não à toa, o empreendimento permitiu o sustento de toda a família, compreendendo esposa, quatro filhas e seis netos. Apesar do tempo e das conquistas, tudo continua como era antes: o proprietário continua fazendo um balanço das vendas na caderneta; possui celular, mas sem acesso à internet – um LG Dual Sim do começo da década passada; e, ao receber pagamentos, prefere dinheiro vivo a Pix.
“E tem o privilégio de morar aqui, né? Ficamos muito mais seguros em vários sentidos. Sempre que alguém pergunta onde moro, digo: vizinho à Mansão Macêdo e à casa do Governador. Inclusive, não há diferença entre ele e eu, exceto que ele é o governador e, eu, um vendedor de caldo. No frigir dos ovos, somos iguais”, compara ao mirar, em uma das paredes do recinto, a foto do ex-governador, Camilo Santana, tomando caldo no local.
Persistir na tradição
Cliente do estabelecimento há mais de 20 anos, Teresa Deuzalina Ferreira, a dona Deusa, diariamente se alimenta no Papai. Compõe o retrato fiel da clientela que ocupa o cantinho: gente que contabiliza décadas de adesão ao negócio. “Aqui é bom porque o caldo é de carne moída e vem bem quentinho, gostoso que só”, festeja, no sossego dos 78 anos de idade.
Lá dentro, na cozinha, dona Sílvia de Sousa é outra capaz de dimensionar o valor do recanto. Residente no Cristo Redentor, chega por volta de 7h30 para pôr água no fogo e dar continuidade ao que já havia sido preparado por seu Edson. No momento em que conversamos, por volta de 8h30, já era a segunda panela que esvaziava.
“Não tenho média de quantos caldos saem, mas sai bastante. Acho que as pessoas gostam porque é tudo muito simples, mas caprichado. Leva água, farinha, cebola, pimentão, cheiro verde, alho, margarina, ovos e carne moída. Outra coisa que eu acho que agrada é por ter apenas um sabor. Pra quem gosta, é um prato cheio”.
O maestro de toda essa orquestra de sabor, aconchego e simpatia diz que não troca essa dinâmica por nada. Não foram poucas as vezes em que seu Edson foi interpelado a melhorar o aspecto do ambiente, tornando-o mais moderno – a instalação de um ar-condicionado, por exemplo, é um dos mais sugeridos. A resposta vem pronta, e é convicta.
“Mudar tiraria minha felicidade. Moro aqui há 56 anos e, se uma filha minha olhar pra mim e disser que quer me dar um apartamento, vai tirar minha alegria. Quero ficar no meu local porque aqui ouço o paulistinha passar, a chegadinha, os amigos… A comunicação, essa comunicação, é o que me faz viver bem”.
Transparece no semblante – não sem motivo a curiosidade do repórter de saber como nutrir tanto ânimo e saúde aos 80 anos. Seu Edson dá mais um balanço na cadeira e enumera: “Dormir cedo, acordar cedo e não teimar. Não cortar caminho, não ser curioso e não tomar decisões precipitadas. Viver bem e fazer o bem. Quero chegar aos 100 anos assim”.
E, claro, todo dia tomar um caldinho de carne moída. Ali, à sombra do Palácio da Abolição, é só gritar “Papai” que a sustância é garantida. Verdadeiro elixir à la Fortaleza antiga.
Serviço
Caldo do Papai
Rua José Vilar, 409, Meireles. Diariamente, das 4h às 13h e das 14h às 18h. Caldinho no copo descartável, acompanhado de pão: R$3; servido no prato, com dois pães e copo de café: R$5. Mais informações: (85) 98518-7974 (apenas por telefonema)