De blusinha gasta e chinelo de dedo, dona Neide vai ao mercado. Compra o necessário para o dia – pães, frutas e condimentos. No caminho, acena para as amigas, cumprimenta os vizinhos. Sempre foi assim e nunca deixará de ser, ela assegura. O que talvez ninguém desconfie é que essa simpática senhora também é escritora de mão cheia. Lançou o primeiro livro aos 60 anos e não quer parar. O cotidiano é o principal combustível para a criação.
“Olho para as plantas, as flores, o colorido das rosas, as pessoas, os comentários que elas fazem nas conversas, e por aí vai. Os versos surgem assim”, conta por telefone, caderninho na mão. É nele onde une palavra com palavra e reflete sobre a vida por meio de poemas tão simples quanto profundos. Os temas são os mais diversos – da chuva à liberdade, passando pelo silêncio e por marcas da própria história.
Não é costume recente. Dona Neide escreve desde que se entende por gente. Nasceu Antônia Lúcia do Nascimento Lima, mas pouquinha idade o pai apelidou de Neide. Virou nome. Lembra com clareza das aulas de Língua Portuguesa na escola. Muito tímida, não gostava de exibir o texto pronto, embora amasse o processo de narrar. E assim ficou, guardando poeminhas para si, até a guinada ocorrida em uma oficina literária, já idosa.
Foi em 2019, conduzida por Reginaldo Figueiredo no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Parque Iracema. O poeta – um dos criadores do Templo da Poesia e da Vila de Poetas, em Maranguape, cidade natal de dona Neide – incentivou a então estudante a tirar os versos da gaveta e apresentá-los. Ficou tão espantado com o que viu que, imediatamente, pensou em publicar os escritos. Não deu outra.
“Amor que alimenta a vida”, livro de estreia dela, foi impresso com apoio da Prefeitura de Maranguape e da Vila de Poetas. O lançamento oficial aconteceu na XIII Bienal do Livro do Ceará, entre renomadas atrações nacionais e internacionais. Dona Neide ficou ali, entre elas, miudinha em timidez, mas muito contente: era o início de um novo passo. Da conquista que a faria mudar a vida para sempre.
“Hoje sou convidada para abrir discursos de político, festas juninas, eventos de todo jeito… E lembro como se fosse ontem do lançamento na Bienal: eu parecia uma mosquinha no brigadeiro diante de tanta gente empaletozada”, ri. “Quando foi minha vez de falar, disse que eu escrevia aquilo que gostava de ouvir. Coisas simples, feito eu. E, então, terminei de ler o poema e todo mundo aplaudiu muito. Minha família e amigos estavam lá. Foi lindo”.
O melhor poema
Para a autora, o melhor poema é este: simples, claro, limpo, “quando as pessoas conseguem entender o que aquilo significa”. E ele brota caladinho, em qualquer lugar, aonde a poeta estiver. Se o cenário for a própria casa, serão versos sobre a mobília, as relações familiares, a importância de um teto; se for uma praça, aquilo que se desenrola entre árvores e bancos; se for no convívio entre amigas, será sobre a dinâmica fraterna e alegre.
“Ontem mesmo participei de um evento em Fortaleza sobre o direito dos idosos, sobre a gente se valorizar, saber para onde ir. De antemão, não falaram nada do tema. Quando cheguei lá, estava lotado, e criei a poesia ali mesmo – no meu canto, quieta. Depois de me apresentar no palco, gostaram demais. Recebi muitos cumprimentos. Sinto que me tornei mais confiante a partir desses processos”.
Deu adeus à Neide monotemática e encabulada, à mulher que cresceu achando que o mundo não era tão grande assim. Agora já tem assunto para trocar, experiências dentro e fora da cidade. Encara a si com mais generosidade.
Consegue enumerar quem é: mulher, negra, periférica, a segunda de nove irmãos, esposa, mãe de duas, avó de quatro. Artista. Poeta. “Depois de 45 anos de casada e tanta coisa na vida, sinto muito orgulho por tudo”, festeja.
“Ao mesmo tempo, ser quem eu sou dificulta o acesso à literatura. Aqui em Maranguape, todo mundo já me conhece, então recebo um bom tratamento; mas, quando vou pra outros lugares, percebo o olhar das pessoas. Me encaram como se eu não soubesse de nada, como se não soubesse nem ler. Só porque tenho essa cor, porque venho de onde venho. No fundo, a gente sabe: isso parece que não vai mudar nunca”.
Persistir na escrita
Mas dona Neide persiste. É certo o criar. Não escreve todo dia, é verdade – o marido, Manoel Ferreira Lima, 73, ainda sofre as consequências de um Acidente Vascular Cerebral, o que exige dela esforço extra, cuidados a mais.
Mesmo assim, tenta. O caderninho está sempre ao lado, vizinho à caneta insone. Daqui a pouco virão mais versos. Basta que surja o tema, o motivo, o argumento. São vários.
É coisa que ela brada em “Meu Povo”, um dos poemas da coletânea “Amor que alimenta a vida”. Diz assim: “Meu povo é bonito/ Não importa se manca ou se arrasta/ Se tem verrugas ou manchas/ Tendo um bom coração basta”. Ou em “Viagem”, outro texto da antologia: “Vamos viajar no tempo/Descobrir outros planetas,/ Cultivar outros valores,/ Mudar nosso entendimento”. As criações já estão nas mãos de muitos, embelezando tudo.
“Sou tão assim que os livros chegam aqui em casa e eu faço é dar de graça pras pessoas”, confessa, às gargalhadas. “Mas eu gosto disso. Minha família gosta também. Celebram quando eu passo na rádio, dou alguma entrevista… Talvez as pessoas dissessem que eu era uma escritora improvável. A verdade é que eu mesma me sentia assim. Até eu achava que era impossível. Mas tudo aconteceu e eu estou aqui, pronta pra escrever de novo e de novo”.