80 anos sem Virginia Woolf: ebulição de iniciativas repercute legado da escritora britânica

Entre os trabalhos, está a nova edição do ensaio “Um quarto só seu” e lançamentos por parte da editora Nós, mais nova casa editorial da inglesa no Brasil

Os aficionados por literatura decerto sabem de cor: “Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores”. E se, por ora, demarcamos apenas o presente trecho, é bem provável que um leitor ou outro desdobre o parágrafo inteiro, em fluxo irrefreável, culminando no enigmático excerto, “como sentia, parada ali ante a janela aberta, que alguma coisa de terrível ia acontecer”.

Trata-se do ponto de partida do romance “Mrs. Dalloway”, escrito por Virginia Woolf (1882-1941) e publicado pela primeira vez em 1925. Referenciada pela revista Time como um dos 100 melhores livros de língua inglesa, a obra conduz a audiência pela mão ao narrar um dia na vida de Clarissa Dalloway, esposa de um deputado conservador e mãe de uma jovem de 17 anos.

A exímia qualidade da narrativa tratou de cravá-la na memória de tantos além-mundo, ocupando as prateleiras de bibliotecas, livrarias e os recintos secretos da alma. Socorro Acioli, por exemplo, destaca o romance como um dos trabalhos preferidos desenvolvidos pela literata britânica.

“Li em português e ouvi em audiobook, no original. Um inglês sofisticado, erudito, mas que deixa mais viva a profundidade da escrita de Virginia”, situa a escritora cearense, cujo nome pode ser conferido junto à tessitura criativa de Woolf em uma recente empreitada da editora Bazar do Tempo. 

Ela assina o texto de apresentação da nova edição de “Um quarto só seu”, famoso ensaio da autora inglesa disponível para compra no site e que estará na primeira caixa do Clube F., o clube feminista da casa editorial. Com capa dura e tradução de Júlia Romeu, o livro traz um dos textos mais influentes do século XX, alimentando até hoje os debates feministas e de gênero.

Além disso, esta edição reúne ensaios que Virginia escreveu sobre as grandes literatas inglesas – Jane Austen, Emily & Charlotte Brontë e George Eliot – analisando suas obras, vidas e pioneirismo no meio literário. 

Neste domingo (28), quando se completam 80 anos da partida de Virginia, essas minúcias ganharão maior fôlego a partir do encontro de estreia do Clube F.. Reservado apenas para assinantes, participarão dele Júlia Romeu e Socorro Acioli, com mediação de Claudia Lamego.

O legado de Woolf está na força dessa permanência entre nós. Isso é indiscutível, destaca a colunista do Diário do Nordeste.

Nova luz 

O convite para que a autora de “A cabeça do santo” escrevesse o prefácio da edição partiu de Ana Cecilia Impellizzeri Martins, editora e diretora da Bazar do Tempo, há muito conhecedora do ofício da cearense.

“Além de ser escritora e mulher, meu trabalho me dá a oportunidade de estar sempre cercada de mulheres que escrevem, que procuram os cursos que eu coordeno porque desejam escrever. Então, por experiência própria e por observar a vida das mulheres escritoras com quem convivo, compreendo muito bem do que Virginia Woolf está tratando ali”, sublinha.

Sendo uma obra bastante conhecida, “Um quarto só seu” já possui edições anteriores com excelentes prefácios. O desafio de Socorro, assim, foi trazer uma nova luz para o texto. Não à toa, o releu várias vezes.

“A primeira leitura aconteceu quando eu ainda estava na faculdade de Jornalismo, mas a frase sobre a necessidade de um quarto com chave e algum dinheiro eu sempre escutei muito. É quase um mantra sobre a condição feminina e a escrita”.

Neste ano, a romancista passeou novamente pelas linhas como se fosse uma carta de Virginia lançada ao vento, e ficou pensando: E se ela pudesse respondê-la? “E se eu pudesse contar a ela o que mudou até hoje? O que já conquistamos, o que ficou no passado? Esse foi o eixo do meu texto, diz, ao mesmo tempo destacando os títulos que mais a atravessam na produção de Woolf.

“Ela tem uma biografia com momentos de muito sofrimento. Sempre me tocou a sua carta de despedida, a consciência da morte. Gosto muito do ‘Flush: memórias de um cão’. Acho esse livro de um engenho fabuloso, o encontro de um personagem inusitado no meio de uma correspondência amorosa”, enumera, mencionando também o já citado “Mrs. Dalloway”.

Talvez ela jamais imaginasse que sua obra chegaria tão viva até aqui, 80 anos depois de sua morte, justamente porque temos um número grande de mulheres escrevendo, publicando, atuando no mercado editorial, nos cursos, clubes de leitura, ganhando prêmios”, completa.

Paixão antiga

Outra das integrantes desse círculo literário é Simone Paulino, à frente da editora Nós. A casa é o mais novo recanto dos escritos de Virginia Woolf no Brasil, resultado de uma antiga paixão pelos textos da inglesa. 

“É ainda do meu tempo de leitora e do mestrado em literatura. Quando me tornei editora, o desejo de publicá-la ficava ali, latente, sobretudo porque eu tinha uma amiga do mestrado que estava estudando Virginia”, conta Simone.

“Quase 10 anos se passaram desde que saí da USP e então, quando a Ana Carolina Mesquita terminou o doutorado, que consistia na tradução de boa parte dos diários, decidimos nos lançar a esse desafio”, completa.

Logo, em breve deve vir a público, pela Nós, “Os Diários Completos”, embora não apenas. O projeto – que a editora intimamente chama de Projeto Dalloway – prevê também a publicação de alguns ensaios, um título infantil e as cartas que Virginia trocou com Vita Sackville-West (1892-1962), escritora que manteve um romance com ela.

“O primeiro título que lançamos foi ‘Um esboço do passado’, um texto inédito em português, o último que ela escreveu, pouco antes de colocar fim à sua vida. É um ‘esboço’ de uma autobiografia, belíssimo. Agora, para marcar os 80 anos da morte, estamos lançando o primeiro volume de ‘Os Diários’, que cobre o período de 1915 a 1918”, enumera Simone.

Em junho, será lançado o segundo volume de “Os Diários”, festejando o Dalloway Day no Brasil. O evento, criado originalmente pela The Royal Society of Literature, acontece sempre numa “quarta-feira no meio do mês de junho”, dia em que se passa o mais famoso romance da autora. Com a ação, o público igualmente terá acesso a um romance sobre Virginia, assinado por Emmanuelle Favier.

Tratamentos editoriais

Questionada sobre como observa o trabalho de edição das obras de Woolf no Brasil, Simone Paulino afirma que a tradução dos textos ficcionais da escritora vem recebendo um tratamento primoroso da Editora Autêntica – casa que, ainda neste semestre, publicará a tradução do romance “As Ondas”, lançado originalmente em 1931. “Eu mesma aguardo com ansiedade os volumes que faltam”, confessa. 

Quanto a ensaios, diários e cartas, ela avalia que há boas traduções e outras não tão bem realizadas, além de recortes muito pessoais que às vezes dificultam a apreensão do todo imenso que a escritora significou e de como um texto conversava com outro. “Além dos diários, das cartas e do infantil, temos planos de fazer novas traduções de vários destes ensaios”.

Para ela, Virginia faz parte do que designa de a minha santíssima trindade”, composta também por Clarice Lispector (1920-1977) e Simone De Beauvoir (1908-1966). Não sem motivo, Paulino publicou um livro sobre Clarice e tem o esboço de um sobre Virginia e outro a respeito de Simone. 

“Mulheres que me ajudaram a me tornar a mulher, escritora e editora que sou. ‘Mrs. Dalloway’ foi o livro que me arrebatou primeiramente. Eu o leio pelo menos uma vez por ano. Mas eu amo ‘Ao Farol’ quase com a mesma intensidade”, sublinha.

“Se antes a obra dela já era fundamental por ser o que se convencionou chamar de ‘um clássico’, agora mais recentemente, com, digamos, as novas (e diluvianas) pautas feministas, ela se torna ainda mais essencial”.

Isso porque, na ótica da editora, toda a produção de Virginia coloca em evidência muitas questões que estão recolocadas em cena na contemporaneidade. E vai além. Agora, na preparação de 'Os Diários’, o primeiro período corresponde à época em que a literata atravessa a gripe espanhola, responsável por abreviar a existência de milhões de pessoas no mundo.Impossível não traçar um paralelo com os dias atuais”, considera Simone.

Além de vibrar pelo horizonte de lançamentos, ela também já planeja a segunda edição do Dalloway Day em solo nacional. A primeira – descrita como um “encontro muito feliz, de muitos desejos” – aconteceu no ano passado, de forma virtual, por meio de uma parceria com a The School Of Life Brasil.

“Quando eu descobri que não havia ainda a iniciativa no País, propus à Jackie de Botton [diretora e sócia-fundadora da The School of Life] de fazermos juntas e, desde então, estamos tramando mil atividades em torno dessa ideia”, festeja.

Como exemplo, no dia 22 de abril ocorrerá uma “Aula Experiência” para marcar a chegada de “Os Diários” ao Brasil. A ação terá a participação da tradutora, Ana Carolina Mesquita, e do psicanalista André Rezende. “E em junho, se a pandemia arrefecer como o mundo inteiro deseja, vamos fazer um Dalloway Day inesquecível”, torce.