Entenda a polêmica jurídica em torno da possível obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19

Medida é prevista em lei sancionada este ano pelo presidente Jair Bolsonaro e pode ser necessária para combater de maneira eficaz a pandemia, segundo especialistas

Em meio às expectativas globais de algo que possa combater de maneira eficaz a pandemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que ninguém, no Brasil, seria obrigado a tomar a vacina. Pelo menos, não a que está sendo desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac — uma das mais avançadas de que se tem notícia hoje.

Com a afirmação, o presidente acaba se opondo a medida sancionada por ele mesmo em fevereiro deste ano, quando autorizou governadores a promover vacinação compulsória para enfrentar a emergência de saúde pública.

À parte as contradições que envolvem as ações e os discursos do Governo Federal, há um consenso ético e jurídico de que, em situações como a que vivemos hoje, de ameaça global à saúde pública, o bem-estar coletivo deve prevalecer diante das liberdades individuais

“Entendemos que a imunização é necessária como forma de proteção dos indivíduos. É um direito da coletividade em detrimento da individualidade”, afirma Laciana Lacerda, integrante da Comissão de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE).

Presidente da Comissão de Ética da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Gabriel Oselka compreende que seria preferível que não houvesse a necessidade de vacinação compulsória. Porém, diz, “as consequências que estamos enfrentando justificam uma intervenção desse tipo”, principalmente por ainda se saber pouco sobre a eficácia da imunização e por, certamente, não haver doses suficientes para vacinar toda a população. 

“Não sabemos como vai estar a situação no momento em que as vacinas vão estar disponíveis. Seguramente, não vamos ter vacina suficiente pra que haja uma vacinação de toda a comunidade a ponto de se conseguir uma imunidade coletiva. A discussão vai ser mais complicada por causa disso”, acredita o representante da SBIm. A expectativa, segundo ele, é de que apenas grupos prioritários (profissionais da saúde, idosos, pessoas com comorbidades) recebam as primeiras doses.

Na perspectiva de uma vacinação compulsória, Gabriel ressalta ainda que as discussões devem considerar os custos provocados para a sociedade por quem escolhe não se vacinar. “As consequências individuais (como sequelas da Covid-19) e os custos para a sociedade (com assistência) são muito grandes. Estamos vendo isso com o transcorrer da pandemia”, observa.

Responsabilidade compartilhada

A Lei 13.979, citada no início desta matéria, diz expressamente que governadores têm o poder de, dentro das suas competências, estabelecer protocolos próprios de controle da pandemia de Covid-19, o que inclui, além de esquema de vacinação compulsória, testagem laboratorial, exames médicos, coletas de amostras clínicas e tratamentos médicos específicos.

Contudo, a gestão da saúde pública brasileira é pactuada entre União, Estados e Municípios. E isso significa que, quando um desses entes federativos se exime da responsabilidade que lhe cabe, os outros tendem a ter dificuldades para cumprir a própria parte. “O Município entra de forma muito pesada na criação do cronograma vacinal, o Estado vai acompanhar junto às suas autoridades sanitárias, mas é o Governo Federal quem tem que ditar as regras. Se os três não estiverem juntos, estamos fadados ao fracasso”, analisa Laciana Lacerda.

Circulação de informação correta

Laciana e Gabriel acreditam que, independentemente da origem, uma vacina contra a Covid-19 só será distribuída no Brasil se for segura e eficaz. Ambos os especialistas confiam que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve cumprir o protocolo de análise do imunizante e disponibilizar para consulta pública todos os dados científicos envolvidos. A partir daí é que Estados e Municípios devem criar os próprios protocolos de vacinação.

“A vacina não vai ser colocada para a população de qualquer forma. O Estado também tem que garantir a segurança”, tranquiliza Laciana. “Acredito completamente que a Anvisa vai tomar decisões baseadas em dados técnicos e científicos”, defende Gabriel. O especialista lamenta, porém, que a discussão tenha sido politizada a ponto de confundir a população. “Isso traz um grau de insegurança para quem está ouvindo essa discussão. E, se as pessoas não tiverem informação, não têm competência pra discutir”. 

Coerção 

De acordo com Laciana Lacerda, o que geralmente acontece numa hipótese de vacinação compulsória é que, quem escolhe não se vacinar, perde direitos civis como emissão de passaporte e acesso a programas assistenciais do Governo, por exemplo. Além disso, Gabriel lembra que há Municípios que cobram a caderneta de vacinas obrigatórias no momento de matricular crianças em escolas públicas ou privadas. 

Contudo, ainda não há sanções previstas para uma possível obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19. A única coisa que se sabe é que, pela Lei 13.979, o descumprimento das medidas previstas para o enfrentamento à pandemia “acarretará responsabilização”.

Revolta da Vacina

Quando se fala sobre a obrigatoriedade de vacinação para combater uma pandemia e o medo natural sentido pela população diante da perspectiva de permitir que seu corpo receba uma substância “desconhecida”, é inevitável lembrar da Revolta da Vacina, episódio histórico que aconteceu no Rio de Janeiro em meados de 1904, época em que o Brasil sofria com a varíola.

Por mais que a vacina contra a doença contagiosa tivesse sido considerada obrigatória para crianças em 1837 e para adultos em 1846, até 1904 essa resolução ainda não era cumprida e o número de internações na cidade decorrentes da infecção permanecia crescente.

Foi então que, naquele mesmo ano, o médico sanitarista Oswaldo Cruz enviou ao Congresso Nacional um projeto para reforçar a obrigatoriedade da vacinação no País, estabelecendo que apenas quem comprovasse ser vacinado poderia conseguir contratos de trabalho, matrículas em escolas, certidões de casamento, autorização para viagens e outros direitos civis.

A medida provocou uma série de conflitos políticos e deixou a população amedrontada, com medo, inclusive, de ficar com feições bovinas caso tomasse a vacina — que consistia num líquido de pústula de vacas doentes.

Quais são os amparos legais de uma vacinação obrigatória da Covid-19?

Lei 13.979

Aprovada em Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 6 de fevereiro de 2020, essa lei versa especificamente sobre a pandemia de Covid-19 e é a que se sobressai atualmente. Nela, está escrito no artigo 3 que, para enfrentar a emergência de saúde pública de importância internacional de que trata a lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas.

A lei também determina que “as pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas e o descumprimento delas acarretará responsabilização”.

Constituição Federal

O inciso II do artigo 23 da Constituição de 88 diz que é “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública”. 

Além disso, o artigo 196 da Constituição afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

O parágrafo primeiro do artigo 14 do ECA menciona ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

Código Penal

O artigo 268 do Código Penal, no que se refere a crimes contra a saúde pública, diz que é infração de medida sanitária preventiva “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, com pena de detenção de um mês a um ano e multa. A pena é aumentada em um terço se quem a tiver cometido for funcionário da saúde pública ou exercer a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

No artigo 132, o Código também prevê detenção de três meses a um ano a quem expuser “a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”.