As chacinas (crimes com quatro mortes ou mais) são recorrentes no Ceará, destroçam famílias e assustam a população. Entre 2015 e 2022, o Estado registrou 29 episódios, com um total de 156 mortes. E apenas um caso foi a julgamento na Justiça Estadual: a Chacina do Benfica, ocorrida em 2018.
Na noite de 9 de março daquele ano, sete pessoas foram assassinadas a tiros e outras quatro ficaram feridas, na Praça da Gentilândia. Apenas um ano e oito meses depois, em 6 de novembro de 2019, dois réus foram condenados a 189 e 170 anos de prisão pelos crimes, na Primeira Instância da Justiça Estadual. Um terceiro réu foi absolvido.
As outras 28 chacinas ainda não tiveram um desfecho na Justiça. A socióloga e pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ana Letícia Lins, analisa que "algumas chacinas recebem mais ou menos atenção, e isso é influenciado por fatores diferentes, inclusive a visibilidade desses territórios".
A Chacina do Benfica é a única que foi a julgamento. Essa Chacina movimentou um dos lugares de mais visibilidade da cidade, que é um bairro universitário. Esse evento teve muito apelo social, mexeu com o imaginário do que as pessoas entendem como o Benfica e a própria vida estudantil universitária do bairro."
O ano de 2015, que teve cinco chacinas, ficou marcado na Segurança Pública do Ceará principalmente devido um desses casos: a Chacina da Messejana, que deixou 11 mortos em Fortaleza (a maioria jovens e sem antecedentes criminais), na madrugada de 12 de novembro. Nos dias e meses seguintes, a investigação policial surpreenderia muitas pessoas, ao apontar a participação de 44 policiais militares nos crimes - alguns estavam de serviço e outros em horário de folga.
Passados mais de seis anos, ninguém foi julgado. Dos 44 denunciados pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), apenas 34 foram pronunciados (isto é, levados a julgamento) pela Primeira Instância da Justiça Estadual. "Outros oito foram impronunciados e dois tiveram conduta desclassificada para outros crimes. Os 34 pronunciados recorreram da decisão junto à Segunda Instância (TJCE), que manteve a decisão inicial. No mesmo período, o MPCE recorreu à Segunda Instância contra a impronúncia dos outros oito policiais, também tendo o pedido indeferido", informou o Órgão Ministerial, em nota.
"Ao terem o pedido indeferido, a defesa dos 34 policiais militares que foram pronunciados entrou com recurso especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Vice-Presidência do TJCE, porém, não admitiu que tais recursos subissem para o STJ, pois ausentes os requisitos de admissibilidade. Diante disso, a defesa dos 34 policiais militares entrou com novo recurso – Agravo de Instrumento – junto ao STJ. Tal recurso aguarda, neste momento, julgamento por parte do Superior Tribunal de Justiça sediado em Brasília", detalhou o MPCE.
Edna Sousa, mãe de Álef Sousa Cavalcante, uma das vítimas da Chacina da Messejana - morto aos 17 anos - acredita que o fato de os réus serem agentes de segurança do Estado implica na demora do julgamento do processo.
Os policiais, enquanto têm recursos, estão recorrendo, eles são covardes. Mas são muito corajosos para pegarem uma arma de fogo, entrarem na periferia e matarem, exterminarem o povo pobre e preto. E com a certeza da impunidade, porque os órgãos não julgam e não cobram como deviam."
A socióloga Ana Letícia Lins corrobora que "a Chacina do Curió (ou da Messejana, como são chamados o mesmo evento), que ainda está a espera de julgamento, foi a primeira grande chacina do Ceará e entra como um evento que teve muita visibilidade, mas mesmo assim o Sistema de Justiça criminal ainda é muito lento para responsabilizar agente de Segurança Pública". "Essa demora, essa ausência de responsabilização, diz muita coisa sobre o quanto essa sociedade pode tolerar viver com esse tipo de crime", completa.
Confira os números de chacinas e de mortes em sete anos:
O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) explicou, sobre a demora em julgar as ações penais das chacinas: "normalmente, processos que possuem um número alto de vítimas e acusados costumam ter um maior grau de complexidade, tendo em vista o volume dos procedimentos e atos judiciais que são necessários até a conclusão das duas fases do processo". "Vale ressaltar ainda que existem os prazos que devem ser seguidos em algumas etapas e, ainda, a possibilidade de recursos contra as decisões judiciais que são tomadas ao longo do curso do processo", acrescenta.
Ainda tendo em vista a busca pela aceleração desses julgamentos, o Poder Judiciário tem investido em ações afirmativas como o Tempo de Justiça, programa que surgiu de uma parceria junto a Ministério Público, Defensoria e Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social, e que tem o apoio técnico da Vice-Governadoria do Estado. A iniciativa monitora os processos de crimes dolosos contra a vida com autoria esclarecida, ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2017. Para o acompanhamento dos dados, são feitas reuniões mensais com todos os órgãos para avaliação dos resultados e identificação de problemas, desde a fase de inquérito até o julgamento."
A Chacina da Messejana não é a única matança que tem policiais militares como réus. Quatro PMs foram acusados de participarem das mortes de cinco pessoas, em uma residência, em Quiterianópolis, em 18 de outubro de 2020. Segundo o MPCE, o processo está na fase de instrução processual, com oitiva das testemunhas de defesa perante a Justiça.
Guerra entre facções faz múltiplas vítimas
O crescimento das facções criminosas no Ceará e o acirramento da guerra por território para o tráfico de drogas alavancaram os números de homicídios e de chacinas no Estado, a partir de 2017 - depois de um ano em que os grupos criminosos selaram uma pacificação em 2016, ano que teve apenas uma chacina, com quatro mortos, em Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).
O ano de 2017 - que bateu o recorde de homicídios da história do Estado, com 5.133 registros - teve cinco chacinas, com 23 mortos ao total. Na sequência da guerra, as facções criminosas quiseram mostrar ainda mais poder, com ações que foram verdadeiras carnificinas. Apesar da redução de homicídios em 2018, o Estado calculou seis chacinas, com um número total de 44 mortes.
A existência de um evento que a gente chama de chacina está muito atrelada a forma com que os grupos criminosos encontram de mandar recados e demonstrar poder a inimigos de outros grupos criminosos. Não é possível entender a chacina como um evento isolado, fora das dinâmicas dos próprios grupos criminosos, na disputa pelo tráfico de drogas."
A Chacina das Cajazeiras entrou para a história moderna do Ceará como a matança com o maior número de vítimas: foram 14 vidas ceifadas, no Forró do Gago, em Fortaleza, no dia 27 de janeiro de 2018. Quatro anos depois, nenhum dos 14 réus, apontados como integrantes de uma facção criminosa cearense, foi julgado.
Depois, vieram as chacinas de Itapajé (ocorrida dentro de uma unidade prisional, com 10 mortos), Benfica, Ibaretama (inclusive com uma vereadora acusada), duas em Caucaia, entre outras - todas ligadas à guerra entre as facções criminosas que acontece no Ceará.
Somente nos últimos três meses, foram três casos, com um total de 13 mortos: na Sapiranga, em Fortaleza, na madrugada de Natal, em 25 de dezembro de 2021, que deixou cinco mortos; em Juazeiro do Norte, na Região do Cariri, em 8 de fevereiro de 2022, com quatro mortos; e no Lagamar, também na Capital, no último dia 18 de fevereiro, com quatro mortes.
Algumas das chacinas, depois de anos, continuam na fase de Inquérito Policial, em que a Polícia Civil do Ceará (PCCE) busca por suspeitos ou mais provas dos crimes. São os casos das matanças do Serviluz, em Fortaleza, em 2015; da Pacatuba, em 2016; do Porto das Dunas, em Aquiraz, em 2017; e de Maranguape, em 2018.
Mas algumas chacinas estão próximas de serem julgadas, o que deve ocorrer nos próximos meses, segundo o Ministério Público do Ceará. São os casos das chacinas do Bom Jardim, em Fortaleza, ocorrida em 2017; e de Itapajé, em 2018.
Confira a lista e a situação de cada chacina:
- Sobral, 14/4, 6 mortos. Segundo o MPCE, dos quatro acusados, dois estão presos em outros estados (aguardam recambiamento para o Ceará, para dar andamento ao processo) e dois foram soltos devido ao excesso de prazo.
- Limoeiro do Norte, 16/5, 4 mortos. Dois denunciados pelo crime, sem julgamento, segundo a PCCE.
- Fortaleza (bairro Serviluz), 11/8, 5 mortos. Segue em investigação pelo 9º DP, segundo a PCCE.
- Fortaleza (bairro Jardim das Oliveiras), 30/8, 5 mortos. Dois réus foram pronunciados, para serem levados a julgamento, mas recorreram ao TJCE. Outros três réus morreram no decorrer do processo, segundo o MPCE.
- Fortaleza (Messejana), 12/11, 11 mortos. 34 PMs foram pronunciados, para serem levados a julgamento, mas recorreram ao STJ.
- Pacatuba, 8/7, 4 mortos. Segue em investigação pela Delegacia Metropolitana de Pacatuba, segundo a PCCE.
- Aquiraz (Porto das Dunas), 3/6, 6 mortos. Segue em investigação pela Polícia Civil, segundo o MPCE.
- Horizonte, 12/6, 5 mortos. Com sete acusados pelo crime, o processo aguarda o início da fase de instrução, segundo o MPCE.
- Paraipaba, 20/7, 4 mortos. O processo foi arquivado por determinação do Poder Judiciário, após pedido do Ministério Público, por falta de provas contra os suspeitos, segundo informações do MPCE e da PCCE.
- Fortaleza (Bom Jardim), 8/10, 4 mortos. O júri popular foi agendado para o dia 13 de abril de 2022, com sete acusados, segundo o MPCE.
- Fortaleza (Sapiranga), 13/11, 4 mortos. Sete réus foram impronunciados (ou seja, a Justiça decidiu não levá-los a julgamento) e outros dois, pronunciados parcialmente, segundo o MPCE, que recorreu da decisão no TJCE.
- Maranguape, 8/1, 4 mortos. Segue em investigação pela Polícia Civil.
- Fortaleza (Cajazeiras), 27/1, 14 mortos. Com 14 réus, processo continua em fase de instrução.
- Itapajé, 29/1, 10 mortos. A previsão é que os réus sejam levados à Júri Popular no final de abril, segundo o MPCE.
- Fortaleza (Benfica), 9/3, 7 mortos. Dois réus foram condenados a prisão e um réu absolvido, em julgamento realizado em novembro de 2018.
- Quixeramobim, 28/6, 4 mortos. O MPCE informou que espera a data do julgamento dos réus ser marcada.
- Palmácia, 13/7, 5 mortos. Quatro suspeitos foram indiciados pela Polícia Civil. O caso está na Justiça.
- Maranguape, 14/5, 4 mortos. Segue em investigação pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), segundo a PCCE.
- Quiterianópolis, 18/10, 5 mortos. Três PMs são réus pela Chacina, e o processo está na fase de instrução, segundo o MPCE.
- Ibaretama, 26/11, 7 mortos. Sete acusados viraram réus, e o processo está na fase de apresentação de defesa preliminar dos réus, segundo o MPCE.
- Caucaia, 11/4, 4 mortos. Cinco acusados viraram réus pela Chacina, e o processo está na fase de instrução, segundo o MPCE.
- Fortaleza (Barroso), 25/4, 4 mortos. Um acusado virou réu pelo crime, e o processo está na fase de instrução, segundo o MPCE.
- Caucaia, 01/8, 5 mortos. Sete acusados viraram réus pela Chacina, e o processo está na fase de instrução, segundo o MPCE.
- Chorozinho, 18/9, 4 mortos. Segue em investigação pela Delegacia Metropolitana de Chorozinho, segundo a PCCE.
- Guaraciaba do Norte, 4/10, 4 mortos. Dois homens foram denunciados pelo MPCE pela Chacina. Justiça aguarda manifestação dos réus.
- Viçosa do Ceará, 11/12, 4 mortos. Segue em investigação pela Delegacia Municipal de Viçosa do Ceará, segundo a PCCE.
- Fortaleza (Sapiranga), 25/12, 5 mortos. O processo já tem 23 réus, mas o MPCE aguarda novas diligências da Polícia Civil.
- Juazeiro do Norte, 08/2, 4 mortos. Cinco suspeitos presos, e segue em investigação pela Delegacia Regional de Juazeiro do Norte, segundo a PCCE.
- Fortaleza (Lagamar), 18/2, 4 mortos. Segue em investigação pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), segundo a PCCE.
TJCE explica andamento de processos de homicídios
O Tribunal de Justiça do Ceará emitiu nota em que explica o andamento dos processos de homicídio e que justifica a demora de alguns anos para julgar esses casos. Confira:
"Os processos do Tribunal do Júri possuem um curso diferente das demais ações penais. Nessa modalidade, que julga crimes dolosos contra a vida, o procedimento é dividido em duas fases instrutórias: de pronúncia e de plenário. A primeira, chamada de pronúncia, reúne etapas como oferecimento da denúncia, feito pelo Ministério Público após conclusão das investigações pela autoridade policial. Sendo feito isso, cabe ao juiz aceitá-la ou não, a depender dos fundamentos expostos na peça acusatória ou, ainda, determinar alguma diligência. Se for aceita, é a partir desse momento que os autos se tornam ação penal de competência do júri e o juiz começa a sanear o processo. É preciso observar o tempo que se leva desde a data do crime até o oferecimento da denúncia, pois podem existir casos que levam anos em fase de inquérito policial, como é o caso conhecido como “Chacina do Porto das Dunas”, ocorrido em 2017, que até o momento encontra-se nessa fase.
Desta forma, após a denúncia ser aceita, o juiz ordena a citação dos acusados para apresentarem resposta à acusação, além disso, também determina a juntada da folha de antecedentes criminais dos réus, entre outros procedimentos. Caso não possuam advogados, será nomeado defensor público ou dativo. Após apresentação da defesa preliminar; deve haver a réplica da acusação; designação das audiências para oitivas de testemunhas, de vítimas (se houver) e dos acusados; além da sentença do juiz, quando pode decidir pela pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição sumária dos réus. Não podemos esquecer que, entre uma fase e outra, existe a possibilidade de interposição de recursos, seja por parte da defesa em decorrência da decisão de pronúncia, seja do órgão ministerial pela decisão de impronúncia ou desclassificação, por exemplo.
Já a segunda fase, chamada de plenário, começa com o trânsito em julgado (quando não há mais possibilidade de interposição de recursos) da sentença de pronúncia, que determinou que os réus sejam levados a júri popular e se encerra com a sentença do juiz que presidiu a sessão de julgamento, com a presença dos jurados e membros do sistema de justiça. Para que a sessão ocorra, é necessário intimar testemunhas, vítimas (se houver), réus e jurados para a sessão.
Normalmente, processos que possuem um número alto de vítimas e acusados costumam ter um maior grau de complexidade, tendo em vista o volume dos procedimentos e atos judiciais que são necessários até a conclusão das duas fases do processo. Vale ressaltar ainda que existem os prazos que devem ser seguidos em algumas etapas e, ainda, a possibilidade de recursos contra as decisões judiciais que são tomadas ao longo do curso do processo."