PEC da Anistia: por que os partidos são 'perdoados' após descumprirem regras eleitorais?

Legislações modificadas pelo Congresso ao longo da última década tratam da aplicação de recursos em candidaturas de mulheres ou de pessoas negras

O 'perdão' a partidos políticos indicado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, mais conhecida como PEC da Anistia, será analisado pelos senadores após tramitação marcada por recuos e desgastes na Câmara dos Deputados. E, se for aprovada, não será a primeira vez que o Congresso Nacional anistia partidos por não cumprirem regras eleitorais. 

Na verdade, esta pode ser a quarta vez que as agremiações partidárias serão anistiadas após descumprimento de normas voltadas ao incentivo à participação política e eleitoral de mulheres ou de pessoas negras. Na proposição em discussão, existe ainda uma previsão de perdão a sanções sofridas pelas siglas em processos tributários. 

Na última década, deputados federais e senadores modificaram a legislação eleitoral e mesmo a Constituição Federal em três ocasiões para retirar sanções aos partidos — em 2015, 2019 e 2022.

Nas três foram perdoados descumprimentos de ações afirmativas voltadas ao incentivo da participação feminina na política e nas eleições. Inclusive, a PEC ainda em discussão no Congresso Nacional também isentava, inicialmente, partidos que desobedeceram às regras vinculadas à cota de gênero.

Contudo, os trechos acabaram sendo retirados após divergências que vinham dificultando o avanço da proposta na Câmara dos Deputados. O texto manteve, no entanto, a anistia pelo descumprimento do financiamento de candidaturas de pessoas negras e pardas — a exemplo do que ocorreu também em Emenda Constitucional aprovada em 2022 pelos congressistas.  

Mudanças na legislação eleitoral

As duas primeiras modificações feitas pelo Congresso Nacional diziam respeito à Lei dos Partidos e à Lei das Eleições, especificamente ao trecho que trata do investimento na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. 

Desde 2009, partidos precisam aplicar, anualmente, um mínimo de 5% dos recursos oriundos do Fundo Partidário nesses programas. Contudo, essa é uma regra constantemente quebrada pelas agremiações.

Para exemplificar essa falta de cumprimento, em 2022 — ou seja, mais de uma década depois do estabelecimento dessa regra —, apenas no Ceará, dos 15 maiores partidos, sete não aplicaram os recursos estabelecidos em lei. Em alguns casos, as legendas eram reincidentes — como é o caso do MDB Ceará que não cumpriu a regra em  2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019.

No texto original da regra, de 2009, o partido que não cumprisse a destinação de 5% para programas de incentivo à participação feminina deveria, no ano seguinte, cumprir o percentual com um acréscimo de 2,5%.

Em 2015, o Congresso Nacional modificou a regra e permitiu que os valores pudessem "ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido". Neste caso, não haveria nenhum acréscimo de valor destinado à política afirmativa, apesar do descumprimento.

Apenas quatro anos depois, em 2019, uma proposta aprovada pelos parlamentares federais modificou novamente esse trecho da legislação eleitoral. Desta vez, ficou estabelecido que os partidos que não tivessem cumprido a regra dos 5% nos anos anteriores a 2019, mas que tivessem usado esse dinheiro "no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade".

Aquelas siglas que não tivessem usado esses recursos, ainda poderiam utilizá-los "na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até o exercício de 2020, como forma de compensação". 

Assim, apesar de existir a regra eleitoral, o não cumprimento dela não causava nenhuma sanção ou penalidade a partidos que a descumprissem — o que fez com que muitas siglas sejam reincidentes nessa desobediência, já que a prestação de contas prossegue sendo aprovada pela Justiça Eleitoral, apenas sendo destacada a ressalva. 

Alteração constitucional

Em 2022, também um ano eleitoral, uma nova anistia foi concedida aos partidos políticos, desta vez por meio de Emenda Constitucional. Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil — Secção Ceará, Fernandes Neto, chama atenção para o caráter ambíguo da mudança constitucional. 

"O que o Congresso Nacional tem feito é o seguinte: na mesma emenda constitucional, ele concede a anistia e, para dar uma melhor aparência para sociedade, ele constitucionaliza aquilo que já se tem (na legislação)", explica. Por exemplo, a Emenda Constitucional 117/2022 — que, há dois anos, quando tramitou no legislativo federal, também ficou conhecida como PEC da Anistia — inclui, na Constituição Federal, duas regras que vinham sendo aplicadas pela Justiça Eleitoral. 

A primeira delas era a exigência de que as agremiações aplicassem 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres — algo que já era estabelecido em lei. 

Também foi incluída a determinação de que, pelo menos, 30% da verba do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário aplicado em campanhas eleitorais fossem investidos em candidaturas femininas, segundo a proporcionalidade do número de candidatas. O mesmo percentual mínimo também passa a ser obrigatório para o tempo de propaganda gratuita no rádio e televisão. 

A Emenda Constitucional, contudo, também retirou sanções a partidos que não tivessem cumprido essas regras até ali — apesar de ambas já estarem previstas ou na legislação eleitoral ou em normativas do Tribunal Superior Eleitoral. 

Partidos que não tivessem cumprido a cota de financiamento a candidaturas femininas ou não tivessem obedecido o percentual na distribuição do tempo de propaganda, poderiam apenas utilizá-lo nas eleições subsequentes, sendo "vedada a condenação pela Justiça Eleitoral nos processos de prestação de contas de exercícios financeiros anteriores que ainda não tenham transitado em julgado até a data de promulgação desta Emenda Constitucional".

Além disso, o texto determinou que não seriam permitidas "sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional".

Problemas na nova PEC da Anistia

Para Fernandes Neto, a PEC 9/2023, que segue agora para análise do Senado Federal, tem uma intenção semelhante à da Emenda aprovada em 2022. 

"Agora, o Congresso quer constitucionalizar os gastos — com que também já se tem uma determinação normativa disso — com políticas afirmativas de raça. Ele quer constitucionalizar isso em troca de um perdão de todas essas dívidas. Ou seja, eu constitucionalizo aquilo que eu já sou obrigado a fazer em troca desse perdão", resume.

A proposta estabelece a "obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para as candidaturas de pessoas pretas e pardas". Segundo o texto, os partidos devem investir um percentual de 30% da verba do Fundo Eleitoral ou do Fundo Partidário destinado a campanhas eleitorais. 

A aplicação é obrigatória já nas eleições municipais deste ano. Na prática, contudo, a fixação desse percentual pode diminuir os investimentos em candidatos e candidatas negras. Isto porque, segundo normativa expedida pelo TSE e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em vigência atualmente, partidos precisam investir os recursos de forma proporcional à quantidade de candidaturas de pessoas negras.

Em 2022, por exemplo, as pessoas negras representaram 50,27% das candidaturas. Portanto, pela regra atual, 50,27% dos recursos deveriam ter sido destinados a candidatos e candidatas negros. Em 2020, o percentual de candidaturas negras foi de 50,04% em todo o País. 

Uma mudança que tende a aprofundar a desigualdade racial no cenário eleitoral, aponta a especialista em Direito Eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Lígia Vieira de Sá.

"A gente observa, empiricamente, que não adianta prever que todos são iguais perante à lei, se as pessoas não conseguem ter os mesmos acessos. Então, se você retira essa porcentagem que busca garantir que essas pessoas, que esse grupo esteja lá, ou seja, que é uma medida afirmativa, isso prejudica totalmente essa representatividade, que, por sua vez, prejudica a própria realização material da Constituição".
Lígia Vieira de Sá
Especialista em Direito Eleitoral e membro da Abradep

Ao incluir a política afirmativa na Constituição — que, na prática, diminui o percentual de investimento em candidaturas negras —, a PEC perdoa os partidos que, até aqui, não cumpriram a regra eleitoral — que é uma exigência desde as eleições de 2022. 

Segundo trecho da proposta, deve ser considerada "cumprida" a aplicação destes recursos para todos os partidos. A única contrapartida é que os recursos sejam aplicados em futuras eleições, mais precisamente nos quatro próximos pleitos eleitorais — 2026, 2030, 2034 e 2038. 

"Nada impede, porém, e essa é a minha crítica, que antes de 2026, assim como já fizeram em 2022", projeta Fernandes Neto. "Reiteradamente o Congresso está, e os partidos políticos, por seus representantes, está legislando em causa própria, está perdoando a dívida do que eles mesmo não cumpriram, não realizaram. Então, eles têm uma função privilegiada que pode perdoar as próprias dívidas. É uma situação, uma questão bem disfuncional do sistema legislativo brasileiro".