De acordo com a última atualização da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), entre 2010 e 2021, a taxa de mortalidade por suicídio no Ceará aumentou 27,6%. Os dados estão no boletim epidemiológico de mortes por suicídio e notificação por lesão autoprovocada (tentativa de suicídio, ideação suicida e automutilação) divulgado em setembro do ano passado.
O cenário é multifatorial, com causas biológicas, psicológicas, sociais, econômicas e até ambientais, como explica a promotora Karine Leopércio.
Ela coordena o Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde) do Ministério Público do Ceará (MPCE) e o programa Vidas Preservadas, que lançou a campanha “Saúde Mental e assistência humanizada: fortalecimento das redes pela vida” de 2023 no último mês.
“A pandemia, o isolamento social imposto e a crise econômica decorrente potencializaram este sofrimento, desencadeando uma série de transtornos emocionais e psíquicos na nossa sociedade, com maior quantidade de pessoas deprimidas, com transtorno de comportamento, em crises existenciais”, explica.
O desfecho trágico, que pode ser evitado, expõe todo um cenário de enfraquecimento das políticas de saúde mental. Desde os primeiros sinais de sofrimento ou adoecimento psíquico, a rede de atenção deve oferecer os cuidados necessários.
Contudo, nos níveis municipais e estadual de atenção do Sistema Público de Saúde (SUS), observa-se o contrário: oferta insuficiente de remédios psiquiátricos, baixo número de unidades especializadas, entre outros problemas.
Com base nesse cenário, a Prefeitura de Fortaleza anunciou, neste mês, um pacotão de saúde, que engloba ações pelo bem-estar psíquico também.
Entre outras medidas, serão entregues quatro novos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) até dezembro de 2024. Destes, dois serão infantis e outros dois gerais para adultos, que custarão R$ 10 milhões.
O total de R$ 400 milhões em investimentos do pacotão também vai abarcar o chamamento de novos profissionais de saúde e o aumento da oferta de medicamentos. Serão mais nove farmácias polo em postos de saúde, com remédios prioritários, complementares e da saúde mental, dentre outros.
Soma-se a isso a convocação de 58 profissionais aprovados em concurso público para atuar nos Caps e a entrega de um novo Caps Infantil, no bairro Rodolfo Teófilo, no fim do ano passado.
Questionada se a ampliação na oferta de medicamentos vai abarcar os psiquiátricos, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) respondeu que o Município oferta gratuitamente 37 medicamentos na área da saúde mental, não estando nenhum item em falta na Central de Abastecimento Farmacêutico.
“A saúde mental ainda é muito centrada no tratamento medicamentoso e o acesso a estes medicamentos precisa ser fácil, contínuo e no tempo certo, sendo a descontinuidade extremamente prejudicial”, comenta Karine Leopércio, lembrando que o MPCE tem atuado no sentido de garantir a oferta de remédios.
Exemplo disso é o acordo firmado com o Governo do Estado para a diminuição do prazo de recebimento dos remédios após o término de uma internação psiquiátrica.
Assim, os pacientes podem se dirigir de imediato aos Caps para dar baixa nas receitas depois da alta hospitalar em unidades estaduais. Antes, o prazo mínimo era de 15 dias, o que aumentava o risco de reinternações.
Essas iniciativas são bem-vindas, mas ainda não cobrem toda a demanda de saúde mental do território cearense. Ações nas esferas federal, estadual e municipais ainda são necessárias para reforçar a rede de atenção já existente.
Política de saúde mental
A Política Nacional de Saúde Mental, instituída em 2001, foi um importante marco na luta pela Reforma Psiquiátrica. Prova disso é que serviu, posteriormente, como base para a consolidação de outras diretrizes de cuidados com pacientes em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de drogas.
A Rede de Atenção Psicossocial (Raps), criada dez anos depois, é o que sustenta a execução dessas medidas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).
É composta por serviços que fazem parte da atenção básica, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.
No Ceará, de acordo com a Sesa, existem 170 Centros de Atenção Psicossocial (24 CAPS AD II, seis CAPS AD III, 88 CAPS GERAL I, 32 CAPS GERAL II, quatro CAPS GERAL III e 16 CAPS INFANTIL).
Equipamentos mais demandados das Raps, os Caps são unidades de acolhimento dos pacientes próximas às famílias, com assistência multiprofissional e cuidado terapêutico adequado a cada quadro de saúde. Em alguns casos, há estrutura para acolhimento noturno, além de cuidado contínuo em situações de maior complexidade.
Contudo, os municípios, responsáveis pela administração dos Caps, ainda encontram entraves na implementação do modelo, precarizando o serviço à população.
“Há muita reclamação das gestões municipais sobre a dificuldade de habilitarem Caps e outros equipamentos da Raps junto ao Ministério da Saúde nos últimos anos, e sem financiamento federal, esta expansão ocorre de forma ainda mais lenta e limitada”, comenta a promotora.
Uma das queixas é justamente o congelamento de recursos para áreas basilares com a instituição do teto de gastos.
Para se ter uma ideia, somente a área da saúde deixou de receber R$ 45,1 bilhões desde que o mecanismo foi instituído pela Emenda Constitucional 95, há seis anos. O cálculo foi feito pela Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal.
A vigência do teto de gastos, contudo, pode cair com a aprovação do novo arcabouço fiscal da União pelo Congresso Nacional. A proposta apresentada pelo Ministério da Fazenda busca retomar o aumento de recursos para diversas pastas – entre elas, a Saúde – sem acarretar em descontrole das contas públicas.
Já a nível local, o Legislativo também tenta fortalecer a rede de saúde mental do SUS. Desde 2005, nos últimos cinco mandatos, pelo menos 32 propostas com o termo “saúde mental” passaram pela Câmara Municipal de Fortaleza, além de dezenas de requerimentos para discutir esse tema em audiências públicas.
A nível estadual, por sua vez, pelo menos 21 matérias com esse tema passaram pela Assembleia Legislativa desde 2007.
Os objetivos são variados e vão desde a criação de mais hospitais de saúde mental à criação de campanhas de educação sobre o assunto.
Atenção complementar
Enquanto os pacientes não conseguem o pleno atendimento e assistência na rede pública, a rede auxiliar entra em ação.
Muitas iniciativas avulsas são respaldadas por protocolos humanitários, como é o caso do Movimento Saúde Mental do Bom Jardim, que funciona desde 1996.
O presidente da entidade, padre Rino Bonvini, lembra que a iniciativa surgiu quando só existia o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM) para tratar os pacientes em sofrimento psíquico, em um momento em que as práticas hospitalares ainda eram focadas no isolamento.
Passados quase 30 anos, a unidade do bairro Messejana, em Fortaleza, ainda é a única gerida pelo Estado na área da saúde mental. Apesar disso, há leitos contratualizados pelo SUS em dois outros equipamentos psiquiátricos especializados: o Hospital Nosso Lar e o Hospital São Vicente de Paulo.
Juntos, somam 470 leitos destinados à assistência. Aliados à enfermaria composta por oito leitos voltados à atenção psicossocial no Hospital Regional do Vale do Jaguaribe, em Limoeiro do Norte, atendem a demanda de todo o Ceará.
Já a associação oferece serviços mais comuns de cuidados, como consultas, mas também possibilita o tratamento por meio de práticas integrativas, como musicoterapia e biodança.
“A abordagem sistêmica comunitária (metodologia adotada pelo movimento) favorece processos de encontros da comunidade com o problema e a comunidade descobre que tem a capacidade de conviver, superar e transformá-lo gerando soluções”, explica Bonvini.
Além disso, oferta cursos profissionalizantes, preparatórios para vestibular, ateliê de arte e moda, corte e costura, escola de gastronomia autossustentável (em parceria com a Universidade Federal do Ceará, a UFC).
Contudo, ainda há iniciativas que funcionam na clandestinidade, causando danos aos tratamentos dos pacientes em sofrimento psíquico. É o caso, por exemplo, de algumas comunidades terapêuticas. Problemas como este estão na mira do Ministério Público há alguns anos.
“Há as que funcionam de forma clandestina, sem estrutura nenhuma, sem qualquer recurso assistencial, e ainda utilizam práticas de violação de direitos humanos e que podem ser caracterizadas como de tortura física e psicológica, para forçar seus internos a permanecerem no local, sendo ambiente de verdadeira segregação social”, observa a promotora Karine Leopércio.
Entre 2019 e 2023, o órgão recebeu, por meio do Caosaúde, 46 denúncias sobre entidades com atuação irregular, que vão desde a necessidade de adequações nos equipamentos a violações de direitos.
Casos assim foram detectados em Fortaleza, Sobral, Caucaia, Tauá, Eusébio, Baturité, Pacatuba, Crateús, Bela Cruz, Juazeiro do Norte e Crato, entre outros municípios.
O procedimento formal consiste em realizar visitas técnicas, convocar os dirigentes dessas comunidades e fazer, quando necessário, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para acertar melhorias nas unidades.
Caso esse rito não resulte num melhor atendimento nas comunidades terapêuticas, o Ministério Público pode ajuizar uma ação na Justiça, requerendo a interdição e até mesmo o fechamento dessas unidades.
Ambiente escolar
Em fase de desenvolvimento emocional, cognitivo e interpessoal, as crianças são um grupo vulnerável no que diz respeito à saúde mental. O período da pandemia, por exemplo, foi um dos mais delicados para os pequenos, já que o isolamento social impossibilitou, entre outros danos, a convivência fora de casa.
Passada a quarentena, as crianças e os adolescentes foram reintegrados aos seus ambientes de socialização, como as escolas. Agora, contudo, encontram outras adversidades pelo caminho, como os ataques de ódio ocorridos nos últimos meses.
A escola é vista como um ambiente mais seguro que outros espaços de vivência da juventude. Às vezes, até mesmo que a própria casa, já que a violência doméstica atinge grupos mais vulneráveis, como aponta a promotora Karine Leopércio.
Mas para garantir o caráter acolhedor das instituições de ensino, é necessário “estreitar os laços entre saúde e educação”, a fim de que se possa identificar as questões que afligem crianças e adolescentes no campo da saúde mental e elaborar “estratégias de superação e pleno desenvolvimento, além da medicamentosa”.
“A assistência de profissionais especializados, como psicólogos escolares e assistentes sociais, é crucial para a superação dos medos, inseguranças, ansiedade e outras vulnerabilidades encontradas”, avalia.
As ações reparativas pós-ataques – os quais tendem a deixar traumas psicológicos em toda a comunidade escolar – devem integrar cada ente envolvido em seu ecossistema. Para Karine, é necessário que a essa discussão seja composto, também, por profissionais da educação, alunos e pais.
“(Assim, eles podem) expressar seus sentimentos e processar todos estes acontecimentos, buscando caminhos, externos e internos, para superarem os últimos acontecimentos são medidas apontadas pelos estudiosos no assunto como eficazes”, pontuou.