O Projeto de Lei 2370/2019, que estabelece regras para a publicação de obras protegidas por direitos autorais na internet, deverá ser votada na sessão desta terça-feira (15). A inserção da proposição da parlamentar Jandira Feghali (PCdoB-RJ) na pauta ocorreu após a formalização de um acordo de líderes e foi anunciada pelo presidente da Câmara dos Deputados, o deputado federal Arthur Lira (PP-AL), na última quinta-feira (10).
Pelo que prevê a proposição, o titular dos direitos sobre a obra poderá notificar o provedor ou a plataforma extrajudicialmente a fim de exigir a remoção do conteúdo indevidamente divulgado ou o pagamento de uma quantia. De acordo com o PL original, a possibilidade de cobrança também seria válida para as produções disponibilizadas por terceiros. O pagamento, entretanto, só poderá ser exigido se a responsável pelo serviço exercer sua atividade com fins lucrativos.
Caso seja aprovado no Congresso Nacional e depois sancionado pelo Executivo, o projeto deve alterar diversos pontos da Lei dos Direitos Autorais (LDA), sancionado em 1998. Estão na alçada da proposição assuntos como a regulamentação da exploração comercial de obra criada por empregado no cumprimento das suas funções e a criação de mecanismos de aferição para o recebimento de quantias pela divulgação indevida de materiais para o autor.
Quando protocolou o projeto, a membra do PCdoB mencionou que a finalidade do regramento era aprimorar dispositivos da lei vigente que hoje provocam polêmica e sanar lacunas. "Trata-se de projeto complexo, que envolve muitos artigos e temas variados cujo elo fundamental é relacionar-se ao instituto do direito autoral", disse Feghali ao justificar seu trabalho.
Uma vez que está em vias de ser votado, o deputado Elmar Nascimento (União-BA), relator da matéria, apresentou seu parecer no último sábado (12). O documento, ao qual o Diário do Nordeste teve acesso, propõe um substutivo, com mudanças que ultrapassam o escopo da LDA e mexem no Marco Civil da Internet, a fim de também tratar da remuneração do conteúdo jornalístico e da publicidade digital.
Necessidade de um debate maior
Apesar de tramitar no Legislativo desde 2019, a votação prevista para esta semana ainda é tida como um movimento precoce por autoridades no assunto. Na opinião do professor Rodrigo Moraes, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor da Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA), o PL 2370 "não deveria ser votado de maneira tão açodada".
"É algo muito sério e têm muitas questões ainda a serem debatidas. As associações precisam ser consultadas. A gente precisa se manifestar especificamente sobre o projeto, em várias questões. Tem, por exemplo, um trecho que fala sobre rádios comunitárias não pagarem direito do autor. Eu sou contra isso, não tem que ter isenção, até porque o que se paga é muito pouco. E se mudarem depois?", ponderou o docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA) à reportagem na última sexta-feira (11), um dia antes do parecer do relator ser divulgado.
Entretanto, Moraes admitiu que há trechos da sugestão original que representam um ganho para a indústria criativa, mas que a velocidade com que está sendo pautada é que prejudica o efeito real da ideia.
"A proposta da deputada Jandira [Feghali] tem coisas interessantes, que são bem-vindas na atualização da lei. Mas outras eu questiono. Como professor de Direito de Autor, acho que o texto pode ser aperfeiçoado, melhor debatido. Eu espero que não seja votado de maneira tão ligeira assim", considerou.
A expectativa dele é de que o Senado Federal acolha o pleito da sociedade civil organizada e promova alterações que considerem maiores contribuições das categorias que sofrerão com os impactos da lei ou dos pesquisadores que a estudam. "Não é um projeto unânime", considerou o especialista ao reforçar a necessidade de escuta de pesquisadores, compositores e associações.
Rodrigo elenca dois trechos como os de maior preocupação: os que alteram os artigos 46 e 48 da Lei de Direitos Autorais. Eles flexibilizam a cobrança do direito de autor ao conferir, respeitando as devidas regras, a possibilidade de reprodução de determinadas obras sem ofender os direitos de autorais e redefinem o rol de suportes em que a livre representação de obras de artes visuais e arquitetônicas permanentemente situadas em logradouros públicos pode acontecer.
Na compreensão do estudioso, algumas jusrisprudências precisam ser incluídas no documento que está indo para o plenário, como o pagamento de direitos conexos em tocadores de músicas a instrumentistas, compositores e arranjadores.
"Aqui na Bahia, por exemplo, Luciano Calazans e Carlinhos Marques são profissionais que tocaram na maioria dos discos gravados na Axé Music e não recebem um centavo das milhões de execuções públicas das obras deles como músicos executantes. Isso tá errado e precisa ser dito, deixar a coisa mais clara", acrescentou.
Segundo a advogada Flávia Penido, que atua nas áreas de Direito Digital, Tecnologia e Propriedade Intelectual há 20 anos e analisou, à pedido da reportagem, o documento protocolado pela deputada Jandira Feghali, ele ainda "não está maduro para ser votado". "Tem muita coisa que precisa ser alterada", alertou.
"Uma coisa que ficou muito ruim e que vários juristas do Brasil condenam é a definição de 'cessão temporária'. É um termo tecnicamente complicado de se falar. Acho que fizeram bem em definir 'licença' e 'cessão', mas 'cessão temporária' é um contracenso", exemplificou.
Ela pontuou que existem inovações consideráveis, como a que prega o parágrafo 2º do artigo 29 ao colocar as plataformas como responsáveis solidárias do conteúdo postado que tenha direitos autorais, mesmo que inserido por terceiros, ou como a consideração do interesse público constante nas entrelinhas do artigo 52-B, que prevê a autorização para a publicação de obras mediante decisão judicial em casos onde não haja o consentimento de herdeiros.
Outros trechos, esclareceu Penido, são dignos de correção: "O parágrafo 4º do artigo 52 eu acho muito complicado, porque ele diz que o autor vai poder publicar a obra criada no cumprimento das atribuições. Por que ele só pode publicar depois de dois anos? Se você entende direito autoral como extensão de direito de personalidade, esse direito já existe. Eu entendo que você já possa publicar ou, ao menos, colocar no portfólio".
Lacunas quanto ao prazo legal de prescrição da cobrança de direitos autorais, a existência de interesses díspares e a falta de conhecimento da sociedade e da classe jurídica sobre o direito do autor foram aspectos elencados pelos interlocutores como elementos que resvalam diretamente no que está em discussão no Congresso.
Parecer que amplia o projeto
O substitutivo disponibilizado pelo relator do PL 2370/2019, como ele mesmo expressa, propõe uma alteração "bem mais sucinta", com relação ao texto que foi protocolado por Feghali e apensa dois outros Projetos de Lei, o 3035/2019 e o 1.672/2021, de autoria, respectivamente, dos ex-deputados Valtenir Pereira (MDB-MT) e Bilac Pinto (União-MG). Ambos foram apresentados com o intuito de modificar trechos da LDA.
No entendimento do responsável pela relatoria, o ambiente de serviços ofertados virtualmente é muito mais complexo atualmente e a legislação está em descompasso com esse contexto, facilitando uma regulamentação unilateral pelas empresas de tecnologia e a um entendimento que não privilegia os criadores quanto a proteção dos direitos autorais ou de como se dá a remuneração sobre o uso de obras.
No arsenal de alterações elencadas pelo deputado Elmar Nascimento estão questões mais conceituais, que dizem respeito a nomeclaturas usadas em artigos das duas leis em questão, a fim de estabelecer interpretações mais próximas da realidade atual dos meios digitais. Assim, "redes sociais", "provedores de conteúdo sob demanda" e outros termos passam a ser dispostos na legislação.
A disposição do conteúdo protegido em plataformas passam a ser reconhecidas como execução pública e, consequentemente, poderão ocasionar no pagamento de quantias aos que detêm os direitos autorais ou conexos. Um outro ponto é a possibilidade da remuneração ser negociada e paga através da gestão coletiva, por intermédio de associações como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), organismo que faz a arrecadação e a distribuição dos direitos de músicas aos seus autores.
No que diz respeito ao Marco Civil, o relator propõe novas definições, a exemplo da de "anunciante", "publicidade programática" e "plataformas digitais de conteúdos de terceiros". A alteração mais substancial, no entanto, está relacionada ao estabelecimento de regras para a publicidade nas redes e da remuneração dos conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores para as empresas responsáveis pela produção, sem que o usuário pague por isso.
O relator, em seu parecer, estabelece ainda que os parâmetros estabelecidos passarão a vigorar um ano após a sua publicação. O intuito, versa o dispositivo legal, seria o de "conferir tempo suficiente para que empresas, artistas, intérpretes, músicos, autores, publicitários e jornalistas possam se adaptar às novas regras".
Remuneração jornalística
Até a sexta-feira (11), um dia após o anúncio da inserção do PL na pauta, o clima era de indefinição quanto ao teor do relatório que seria elaborado por Nascimento. Entidades que representam os trabalhadores do setor de comunicação alimentavam a esperança, após rodadas de conversas e negociações, que a remuneração jornalística, retirada do "PL das Fake News", fosse incluída no seu raio de abrangência.
Na ocasião, a presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Samira de Castro, defendeu os interesses da categoria e ressaltou que essa "é uma demanda das empresas jornalísticas há algum tempo, em função da questão da migração da publicidde para as plataformas digitais".
"O modelo de negócio do jornalismo, como a gente conhece, foi muito impactado com as grandes plataformas, que viraram o principal canal de distribuição do nosso conteúdo, do que a gente produz de notícia", avaliou.
A representante da Fenaj, que negociava com o Governo Federal, com o relator e com a autora a incorporação de outras menções que beneficiassem a categoria, disse acreditar que a medida em questão, da maneira está formatada, dialoga diretamente com o que outros países estão legislando: "O Brasil está avançando nesse sentido de maneira muito parecida com as leis australiana e canadense".
"Ele [o tema da remuneração jornalística] estava no projeto das Fake News e foi retirado por acordo do próprio relator, o Orlando Silva (PCdoB-SP), para facilitar essa parte da remuneração, porque muitas bancadas de partidos mais à direita são contra o PL das Fake News, mas são à favor da remuneração do conteúdo jornalístico. Então foi um ponto deslocado para esse PL, que tratava apenas de direito autoral dos artistas", lembrou Samira.
Nesta segunda-feira (14), com base na publicação do relatório do parlamentar baiano, a Coordenadora de Incidência da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras para a América Latina, Bia Barbosa, acusou que ainda existe uma série de indefinições no texto. "A partir de uma leitura geral dos artigos relacionados com a remuneração jornalística, há algumas dúvidas sobre o que, de fato, vai ensejar a remuneração por parte das plataformas", classificou.
Para a jornalista, da forma como está escrito, há uma falta de clareza do que irá gerar remuneração para as empresas de jornalismo, uma indefinição de conceituações utilizadas e um risco de que os recursos financeiros não propiciem uma pluralidade na produção de notícias, sobretudo as de caráter regional e local. Além disso, sugeriu ela, seria necessária a previsão de uma regulamentação posterior.
E a exclusão disso partiu de uma decisão do próprio relator, afirmou a entrevistada. "O deputado Elmar Nascimento não aceitou - e ele falou isso abertamente - colocar em nenhum momento do texto do projeto de lei, algo que possibilitasse remeter algumas decisões para regulamentação posterior. [...] O resultado é que você fica com uma série de dúvidas de interpretação que você não sabe quem vai tirar depois", assimilou Barbosa.
Ministério da Cultura
O DN contatou a Assessoria de Comunicação do Ministério da Cultura (MinC) com intuito de saber como o braço do Governo Federal - que conta com a Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais em sua estrutura - acompanha o trânsito do Projeto de Lei 2370 no Legislativo, como visualiza a proposta e quais seriam as preocupações a respeito da temática. Em resposta, o órgão informou que acompanha a tramitação, mas que não iria se pronunciar sobre o assunto.
A fim de colher outras percepções sobre o projeto, os parlamentares Elmar Nascimento (União-BA) e Jandira Feghali, assim como o Ecad, também foram procurados. Entretanto, nenhum dos envolvidos retornaram o contato.