Era maio de 2008 quando a então prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins (PT), precisou viajar a Nova Iorque, nos Estados Unidos, para cumprir agenda oficial na área de juventude e de tecnologia. Como ia sair do País, a mandatária deixaria o comando do Executivo municipal para o vice-prefeito, à época, Carlos Veneranda. Contudo, o procedimento até trivial, previsto na legislação, provocou uma grande celeuma jurídica.
O imbróglio foi tamanho que, em uma semana, a Prefeitura da Capital teve três trocas de chefia. A viagem da petista deflagrou uma quebra de braço nos tribunais entre o então procurador-geral, Martônio Mont'Alverne, e o juiz Martônio Vasconcelos, da 3ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública da Comarca de Fortaleza.
Luizianne, inclusive, precisou retornar mais cedo para Fortaleza para tentar pôr fim ao impasse. Apesar de prevista na Lei Orgânica Municipal, a cadeia sucessória tem uma brecha, e foi aí que o impasse começou.
Na letra da lei
Conforme a norma jurídica, o primeiro a assumir na ausência do prefeito por mais de sete dias do território municipal é o vice-prefeito. Este é proibido de recusar a função, mas, caso esteja impedido de assumir, o próximo é o presidente da Câmara. No entanto, a linha sucessória prevista em lei para por aí.
Naquele maio de 2008, o vice-prefeito de Fortaleza, Carlos Veneranda, e o presidente da Câmara Municipal, Tin Gomes, provocaram um caso que não era previsto na Lei Orgânica de Fortaleza: os dois não poderiam assumir a gestão municipal porque, assim como a prefeita, tinham viagens marcadas.
A despeito da justificativa oficial, tanto Veneranda quanto Gomes não quiseram assumir a função porque tinham planos de disputar as eleições municipais daquele ano em busca de uma cadeira no Legislativo municipal. Caso sentassem na cadeira de Luizianne, ficariam impedidos de concorrer ao pleito para o Legislativo dali três meses.
Como a Lei Orgânica de Fortaleza proíbe a recusa do vice-prefeito e do presidente da Casa de assumirem o Executivo, os dois articulam uma viagem para deixar Fortaleza.
Quem manda em Fortaleza?
Ciente da manobra dos sucessores e sem a previsão legal do terceiro nome na linha sucessória, Luizianne resolveu indicar o procurador-geral de Fortaleza, Martônio Mont'Alverne, para comandar a Cidade.
Ele assumiu interinamente a Prefeitura em 21 de maio de 2008, minutos antes da petista embarcar rumo aos Estados Unidos. Dois dias depois, em decisão liminar, a Justiça acatou um mandado de segurança impetrado pela Associação Cearense dos Magistrados (ACM) e ordenou que o juiz Martônio Vasconcelos assumisse o comando do Executivo.
O argumento da ACM era de que as leis municipais deveriam espelhar as regras nacionais, em que o terceiro na linha sucessória presidencial é o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). O advogado Novo Mota, que subscreveu o mandado, disse que o cargo deveria ser transmitido ao juiz mais antigo, e a liminar foi concedida, beneficiando Vasconcelos.
O magistrado já tinha assumido a Prefeitura em situação similar na gestão de Antônio Cambraia, quando o mandatário viajou à Malásia.
A posse do prefeito interino ocorreu no dia 23 de maio de 2008, uma sexta-feira, data que era ponto facultativo em Fortaleza, portanto, ele só começaria a despachar na segunda (26) — o que não ocorreu por conta de outra decisão judicial.
A Prefeitura recorreu alegando que a transferência do cargo para um juiz seria uma intervenção do Judiciário no Executivo. Para tentar colocar um ponto final no impasse, o caso chegou ao STF. Na Corte, a ministra Ellen Gracie negou o pedido feito pelo Município e garantiu a manutenção do juiz como prefeito de Fortaleza.
Novamente, a Prefeitura recorreu, agora apontando que a magistratura cearense estava decidindo em causa própria. Já na segunda-feira, 26 de maio de 2008, uma nova mudança. Mont'Alverne, voltou a ocupar o cargo por determinação do então presidente do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o desembargador Fernando Ximenes. Na mesma direção seguiu uma decisão do então ministro Eros Grau, do STF.
À época, em entrevista ao Diário do Nordeste, Martônio Mont´Alverne comemorou a decisão como um marco no “restabelecimento do Estado Democrático de Direito em respeito à autonomia municipal”. Já o juiz Martônio Vasconcelos declarou que seu nome não seria motivo para chacota e garantiu retornar, normalmente, ao trabalho na Justiça.
A volta de Luizianne
Quando as decisões foram publicadas a favor do procurador-geral, a prefeita Luizianne Lins já estava de volta à Capital para selar o fim do impasse. No entanto, aquele era apenas um novo capítulo.
No retorno, a petista declarou que havia antecipado a viagem por conta do imbróglio judicial e para dar posse, novamente, ao procurador-geral como prefeito interino. "Sempre que a cidade precisar, volto de onde eu estiver, de qualquer lugar do mundo", disse.
Passado o cargo para ele, a petista viajou aos Estados Unidos pela segunda vez em menos de sete dias. À época, o então governador do Ceará, Cid Gomes, estava envolvido no chamado “voo da sogra”, em que usou um jatinho alugado pelo Estado para fazer uma viagem à Europa durante o Carnaval e levou a sogra como passageira.
Desviando da polêmica, a prefeita justificou que as idas à América do Norte não gerariam custos extras ao Município, já que a primeira viagem ela pagou com recursos próprios. “Essa viagem foi tirada em cartão, em cartão pessoal de uma colega, nada de cartão corporativo”, justificou.
Como a segunda viagem seria para cumprir agenda oficial, a petista usou recursos públicos, totalizando, à época, R$ 38 mil.
Nova disputa pela cadeira de comando
Após a segunda viagem aos Estados Unidos, Luizianne só voltou à Capital em 31 de maio. A disputa por sua cadeira na Prefeitura, no entanto, não parou nesse meio tempo. A pedido do vereador Márcio Lopes, a Justiça voltou a anular a posse do procurador-geral Martônio Mont´Alverne como prefeito.
Na decisão, assinada pelo juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública, Irandes Bastos Sales, todos os atos praticados pelo prefeito interino também foram anulados. Contudo, a decisão da Justiça foi publicada somente em 31 de maio, justamente quando Luizianne retornou em definitivo para a Capital e reassumiu o cargo.
Quem assume 16 anos depois?
Pouco mais de 16 anos depois dessa celeuma provocada pela viagem de Luizianne, a Prefeitura de Fortaleza teve novamente o prefeito, o vice-prefeito e o presidente da Câmara viajando no mesmo período.
Em julho, o chefe do Executivo, José Sarto (PDT), tirou uma semana de férias com filhos e netos. O vice-prefeito, Élcio Batista (PSDB), e o presidente da Câmara, Gardel Rolim (PDT), foram cumprir agenda de segurança pública em Medellín e Bogotá, na Colômbia. O tucano e o vereador pedetista irão disputar reeleição este ano, portanto, se assumissem a vaga de Sarto ficariam impedidos de disputar as vagas que atualmente ocupam.
Coube ao procurador-geral de Fortaleza, Fernando Oliveira, assumir a função de prefeito interino. Desta vez, diferentemente do que ocorreu à época de Luizianne, não houve disputas judiciais pela função e Oliveira devolveu o cargo a Sarto uma semana depois.