Há exatos 90 anos, foi criado o Código Eleitoral do Brasil. A normativa, que até hoje fundamenta as eleições no País, foi decretada por Getúlio Vargas pouco após a Revolução de 1930 e instituiu dispositivos que se tornaram essenciais para a democracia, como o voto secreto, o voto feminino, o voto obrigatório e o sistema de representação proporcional.
Porém, embora tenha sido impulsionador da democracia brasileira, o Código foi criado num regime político de exceção, considerado autoritário por alguns pesquisadores da época.
“Foram muitas ideias democráticas incluídas pelo Código, o que é um paradoxo porque o Código decorreu de um decreto e um decreto não é um ato normativo elaborado de forma democrática, mas introduziu ideias democráticas e isso foi importante para permitir a reorganização das eleições no País, dando credibilidade para o processo eleitoral”, entende a professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC), Raquel Machado.
Naquele tempo, Vargas governava o País provisoriamente e buscava um jeito de pôr fim à República Velha controlada pelas oligarquias concentradas em São Paulo e Minas Gerais.
“Sempre o presidente se alternava entre São Paulo e Minas, naquela política chamada ‘café com leite’. A Revolução de 30 surge para romper com esse sistema. (...) Alguns historiadores dizem que o Código não conseguiu combater a corrupção eleitoral, o voto de cabresto, mas, veja, a democracia não é conquistada de um salto, muito menos por decreto”, observa Orleanes Cavalcanti, secretária judicial do Tribunal Regional Eleitoral no Ceará (TRE-CE).
Justiça Eleitoral
O Código Eleitoral de 32 inseriu no Brasil alguns dos pilares das eleições como conhecemos hoje, como os citados no início desta reportagem. No entanto, para assegurar a isonomia dos pleitos seguintes, foi necessário criar, também, um órgão de caráter imparcial para fiscalizar possíveis erros e fraudes na votação. Assim nasceu a Justiça Eleitoral.
“O Código foi criado num contexto em que as eleições eram controladas pelo poder Legislativo. E havia muita fraude porque as pessoas que eram interessadas no processo eleitoral eram as que faziam o processo eleitoral, permitindo que quem estivesse no poder continuasse no poder ou interferisse no resultado das eleições”, lembra Raquel Machado.
Embora a Justiça Eleitoral tenha sido prevista no Código, seu raio de atuação só foi detalhado dois anos depois, na Constituição de 1934, quando se definiu que ela seria responsável, em território nacional, por trabalhos como alistamento, organização das mesas de votação, apuração dos votos e reconhecimento e proclamação dos eleitos.
O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) foi criado em agosto de 1932, poucos meses após a publicação do decreto que criou o Código Eleitoral. Naquela época, o estado inteiro tinha somente 25 zonas eleitorais. Hoje, são 109 — 17 só em Fortaleza.
O papel da Justiça Eleitoral não é só da administração da eleição, mas, também, da lisura no processo eleitoral para combater a corrupção, a compra de votos, o abuso de poder, o abuso político, o abuso de poder econômico. Tudo isso é uma conquista do Brasil democrático que se iniciou com o Código”.
Mudanças e avanços necessários
Em 90 anos, o Código Eleitoral passou por uma série de transformações para conseguir acompanhar a dinâmica da política brasileira.
Foram introduzidos os partidos políticos e as urnas — posteriormente, as eletrônicas —, abolida a doação empresarial para campanhas, exigida a ficha limpa dos candidatos, criados fundos partidários e especiais de campanha e instituído cotas para candidaturas de mulheres e pessoas negras, por exemplo.
No entanto, especialmente no que diz respeito à paridade de gênero na política, os avanços não foram suficientes. “90 anos depois, ainda temos a luta para que mulheres se estabeleçam nos cargos eletivos, na política, de forma igualitária”, pontua Orleanes.
A garantia da reserva de 30% das vagas para candidaturas femininas só foi conquistada em 1997 por meio da Lei 9.504, a Lei das Eleições. “Mas até hoje não conseguimos estabelecer cotas nos assentos das casas legislativas”, ressalta a secretária judicial do TRE-CE.
Além disso, segundo Raquel Machado, é preciso melhorar a organização da legislação eleitoral. “O ideal seria que tivéssemos uma maior codificação e menos leis escassas. Como a legislação eleitoral é muito complexa, como as eleições são muito complexas, ao longo do tempo, passamos a ter várias leis que também disciplinam as eleições”, pontua.
Atualmente, além do Código Eleitoral, regem os pleitos políticos no Brasil a Lei das Eleições, a Lei dos Partidos Políticos e a Lei das Inelegibilidades, todas criadas na década de 90.
“Seria bom que tivesse uma organização maior das normas no Código, tanto que o Código que está sendo votado (no Congresso Nacional) tem essa intenção. A carência é de que haja uma estabilização das normas. Porque os problemas políticos serão pensados não de forma pontual, mas de forma geral”, justifica a professora de Direito Eleitoral da UFC.
Novo Código Eleitoral
No ano passado, a Câmara dos Deputados discutiu o Projeto de Lei Complementar 112/2021 que atualiza o Código Eleitoral. O texto trata de uma série de questões da "nova política", como pesquisas eleitorais, prestação de contas, fundo partidário, teto de multas, candidaturas coletivas, cotas, fake news, inelegibilidade e sobras de vagas.
O projeto foi aprovado na Casa por 273 votos favoráveis a 211 contrários e seguiu para o Senado Federal, onde, atualmente, está em análise pela relatoria.
Como disse Raquel, um dos objetivos do Novo Código é compilar num único texto toda a legislação eleitoral. Essa foi, aliás, a principal razão para o deputado federal cearense André Figueiredo (PDT) votar favoravelmente à matéria.
“O projeto reunia a legislação vigente, que está dispersa em um conjunto de normas distintas, em um único texto. Isso em si já seria um avanço”, disse o parlamentar. Contudo, ele acredita que o projeto será arquivado.
“Mesmo que o Senado vote, só valeria para as eleições a partir de 2024. Isso significa, na prática, que as discussões voltam à estaca zero. Mas é preciso ressaltar que temos uma boa legislação eleitoral e instituições eleitorais sólidas. Precisamos melhorar a representatividade de gênero, de cor e de classe social nos cargos eletivos, mas isso é um processo que demandará um certo tempo e no qual já estamos avançando”, destaca André.
O deputado federal Célio Studart (PV) acredita, por sua vez, que as discussões sobre o Novo Código Eleitoral devem focar no enfrentamento à desinformação. “A legislação precisa endurecer o combate às fake news e à viralização desse tipo de conteúdo e de ofensas pelas redes sociais. Ajudaria a ter campanhas mais propositivas e menos polarizadas”, opina.
Célio foi contrário à proposta aprovada pela Câmara. “Votamos contra porque fragilizou o controle de despesas de partidos políticos com os fundões, limitação de multas em até R$ 30 mil (antes era 20% do valor da irregularidade) e limitação da atuação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que poderá ter suas decisões cassadas pelo Congresso”, justificou.
Para Orleanes Cavalcanti, do TRE-CE, que leu o projeto de lei em discussão, o texto acompanha a evolução da sociedade e da jurisprudência e intenta solucionar a disparidade de gênero e raça, com a proposta de que votos dados a mulheres, negros e indígenas eleitos serão contados em dobro. Porém, ela entende que o momento exige, além disso, uma discussão sobre mais aprofundada sobre educação para a política.
“Isso já tem sido feito nas escolas públicas e em algumas escolas privadas. Que o jovem, hoje, tenha educação política para que, amanhã, possa ocupar cargos públicos, eletivos, de forma mais legítima, mais republicana, pensando mais nas instituições e não como um cargo eletivo de projeção individual e muito menos de forma corrupta”, frisa a secretária.
“Todas essas medidas legislativas e a posição firme da Justiça Eleitoral no julgamento fazem com que tenhamos uma democracia em andamento, mas precisamos conquistar mais”, conclui Orleanes.