Diante das crises políticas, econômicas e sanitária, nos últimos anos, o Brasil viu emergir o aumento da miséria e da insegurança alimentar. O país voltou a conviver com a fome. Os indícios dessa piora social são reconhecidos inclusive na campanha eleitoral no âmbito estadual. No Ceará, os planos de governo dos 6 candidatos ao Executivo abordam o assunto. Diferentemente da eleição de 2018, quando o tema foi secundário, hoje, a garantia do básico - alimento à população - mobiliza, com certa ênfase, os candidatos.
No Ceará de 2018, em junho, 995.777 famílias estavam em situação de extrema pobreza, conforme registros do Cadastro Único (CadÚnico), mecanismo do Governo Federal de acesso a programas sociais para a população vulnerável. Na época, esta condição significava que cada pessoa dessas famílias sobrevivia com uma renda mensal de até R$ 89,00.
Já em junho de 2022 (dados mais atualizados divulgados pelo Ministério da Cidadania) são 1.364.408 famílias cearenses na extrema pobreza. Na conta direta, são 368 mil famílias a mais nessa triste condição em comparação ao cenário da eleição anterior para o governo estadual. Números que refletem uma realidade alarmante que impõe ainda mais desafios ao futuro governador.
Atualmente, as famílias enquadradas como extremamente pobres no Brasil, conforme decreto recente do Governo Federal (11.013/2022) são aquelas que têm renda familiar mensal por pessoa de até R$ 105,00. Os registros do CadÚnico indicam que na linha histórica (dados disponíveis desde 2012) do Estado desde janeiro de 2012, junho de 2022 é o mês com o maior número de famílias na extrema pobreza.
O que dizem os planos de governo?
Na eleição de 2018, quando o Estado também teve 6 candidatos ao governo, 3 planos apresentados à Justiça eleitoral abordavam questões relacionadas à segurança alimentar. Mas o tom das propostas era distinto do atual momento.
As proposições tratavam, dentre outros pontos: da soberania alimentar, com debates sobre a redução de agrotóxicos na produção de alimentos; mencionava o aperfeiçoamento do Sistema Estadual de Segurança Alimentar (SISAN) - esse ponto é retomado na campanha de 2022 -; do aumento da renda da população; e, no caso mais objetivo, da criação de restaurantes populares.
No pleito de 2022, a urgência do contexto fez emergir menções mais diretas ao problema da insegurança alimentar, que nos casos mais agudos, é a própria fome.
No plano do candidato Elmano (PT), há proposta de fortalecimento do SISAN, que é um sistema público nacional que conta com a adesão dos estados e reúne setores do governo e da sociedade civil para promover o direito à alimentação adequada. Vale destacar que ideia semelhante constava no plano de Camilo Santana (PT) em 2018.
No plano de Elmano, há ainda a pretensão de criação ou incremento da atuação dos Conselhos Municipais e Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional.
Outro ponto é a proposta de efetivar ações de erradicação da pobreza extrema e o desenvolvimento de um Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional. Isso, segundo o documento do candidato do PT, unindo diversas Secretarias de Governo para atuar “na cadeia produtiva e de distribuição de alimentos, oferecendo um combate emergencial à fome”.
No de Roberto Cláudio (PDT), a proposta é “priorizar políticas públicas com foco nos segmentos mais vulneráveis da população cearense, com atenção especial à segurança alimentar, à superação da pobreza e aos jovens que nem estudam nem trabalham”.
Outra medida, segundo o plano do candidato do PDT é a implantação de políticas que resguardem a segurança alimentar das populações mais vulneráveis.
No plano do Capitão Wagner (União Brasil), a menção à insegurança alimentar consta no item relacionado à proteção dos idosos vulneráveis. Conforme a proposta, no caso dessa população, a pretensão é ampliar “a segurança alimentar, física, financeira, emocional e psíquica, a partir da promoção de maior e melhor interação entre eles e seus grupos sociais”
Nos documentos apresentados à Justiça eleitoral por Chico Malta (PCB), Serley Leal (UP) e Zé Batista (PSTU) também há menção explícita ao combate à fome. O plano do candidato do PCB explicita a intenção de fortalecer “os órgãos de abastecimento alimentar e dos estoques reguladores” para garantir a segurança alimentar da população.
O que é a insegurança alimentar
Quando se fala em insegurança alimentar, um dos pontos a ser considerado, indica a nutricionista e professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Nutrição da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Marlene Ávila, é que a situação resulta de uma série de fatores e de uma estrutura social geradora de desigualdades.
“É necessário rever as lições aprendidas sobre políticas públicas de combate à pobreza, entre estas, as de promoção da segurança alimentar, que se mostraram eficientes e obtiveram bons resultados nos anos 2000, até mais ou menos o ano de 2013, quando se inicia um retrocesso, cujas consequências, resultados de pesquisas sérias revelam, fez o país retroceder à situação de insegurança alimentar semelhante à vivenciada no início dos anos 1990”.
A professora considera que a recorrência à fome e à insegurança alimentar nos planos dos candidatos ao Governo do Ceará demonstra, “no mínimo, o reconhecimento da gravidade da atual situação e uma certa sensibilidade para o seu enfrentamento no Estado”, o que, segundo ela, “é muito bom”.
Mas, ressalta Marlene, “é necessário compreender a insegurança alimentar como decorrente de um conjunto de fatores, com destaque para os socioeconômicos, isto significa que são necessárias políticas públicas que se complementam e dialogam no sentido de colocar o combate à fome como objetivos e metas comuns”.
A assistente social e mestre em Planejamento e Políticas Públicas, Elizângela Nunes, destaca que é preciso entender que “alimentação é um direito e não um favor” e completa que o Brasil é signatário de tratados internacionais do direito humano à alimentação.
Elizângela reitera que a insegurança alimentar e nutricional é a falta de acesso a uma alimentação adequada, condicionada, predominantemente, “às questões de renda” e argumenta que a fome “evidencia um descompasso social e político”. Assim, diz ela, deve ser pautada na agenda política de todos os governos e ter conexão com várias áreas, como: economia, trabalho, saúde, educação, assistência social, meio ambiente e agricultura.
“(A insegurança alimentar) não pode ser tratada como algo pontual, mas sim como algo sistêmico que precisa ser articulada e integrada a um sistema de proteção social conectado".
Outro ponto necessário aos governos, defende ela, é articular sistemas já existentes na estrutura da gestão pública como, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN).
O que pode e deve ser feito?
Mas, nesse debate cuja urgência é inegável, o que, de fato, compete à gestão estadual nesse processo? O que pode e deve ser feito por governadores para ajudar a reduzir o problema da fome?
O Governo Estadual deve, explica Elizângela, inicialmente, realizar um diagnóstico estadual das vulnerabilidades sociais, da insegurança alimentar e nutricional para assim realizar ações de planejamento, gestão e orçamento nessa área.
“O governo tem que ter um retrato. Um diagnóstico da situação. Quais são os municípios que têm os maiores focos da insegurança alimentar grave? E fazer um pacto de combate à fome e a miséria”.
Além disso, aponta, é preciso propor um pacto estadual de combate à fome e à miséria; estimular os municípios que ainda não aderiram ao SISAN a realizar a adesão e assessorar tecnicamente as cidades na temática da segurança alimentar e nutricional.
A professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Nutrição da Uece, Marlene Ávila, reforça que “é necessário priorizar a fome, a insegurança alimentar na agenda política” e para isso, compreender o problema como multideterminado e planejar políticas públicas intersetoriais.
Por exemplo, diz ela, a agricultura familiar é contemplada nas propostas dos candidatos, com ações de apoio aos pequenos produtores que incluem, entre outras, o crédito agrícola e o acompanhamento técnico. Mas, os planos de governo, destaca, “precisam dialogar e traçar objetivos e metas comuns, se realmente a erradicação da fome for prioridade no estado”.
Marlene também reforça que os planos apresentados à sociedade mais parecem cartas de intenções, que apresentam diretrizes de forma geral, do que ações concretas que serão realizadas para alcançar objetivos e metas a curto, médio e longo prazo.
Logo, acrescenta ela, fica a “expectativa de quais diretrizes e dimensões que hoje são promessas, serão de fato contempladas” no que diz respeito ao combate à insegurança alimentar.