'Caixa 2', imunidade tributária e perdão a dívidas: entenda mudanças feitas na PEC da Anistia

Proposta foi aprovada, em dois turnos, pela Câmara dos Deputados e segue agora para análise do Senado Federal

Agora sob responsabilidade do Senado Federal, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, mais conhecida como PEC da Anistia, precisou passar por diversas mudanças para ser aprovada na Câmara dos Deputados. 

Os trechos que tratavam da cota de gênero nas eleições — ação afirmativa para aumento da participação feminina no legislativo —, por exemplo, foram retirados, enquanto artigos que tratam do financiamento de candidaturas de pessoas negras sofreram modificações após pressão da bancada negra no Congresso. 

Contudo, a nova versão apresentada pelo relator, deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), também inclui pontos como a ampliação da imunidade tributária para partidos, assim como o perdão a dívidas das agremiações e a criação de um modelo especial de renegociação de dívidas para partidos e os institutos e fundações vinculadas a eles — com prazo para pagamento variando entre 5 e 15 anos. 

A PEC da Anistia pretende ainda autorizar o uso do Fundo Partidário — forma de financiamento público, não exclusivo, dos partidos políticos do Brasil — para pagamentos de multas eleitorais e para a devolução de recursos públicos e privados determinados por decisões judiciais. Isso inclui recursos privados "de origem não identificada", formato conhecido popularmente como 'caixa 2'. 

"Então, o dinheiro do contribuinte, de todos nós, que é de onde vem o recurso do Fundo Partidário, pode ser utilizado para cumprir as sanções pelo recebimento de recursos sem origem identificada, que é o que é conhecido popularmente como caixa 2. Ou seja, além do partido poder fazer esse refinanciamento de todos os débitos, ele ainda pode usar o Fundo Partidário, que é um dinheiro que não é dele, é um dinheiro do povo, para poder pagar eventuais ilegalidades que o partido tenha cometido", critica Lígia Vieira de Sá.

Especialista em Direito Eleitoral e membro da da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), Sá acrescenta ainda que as medidas propostas pela PEC da Anistia vão "gerar muito prejuízo para os próprios cofres públicos".

Nota técnica lançada por entidades como Transparência Internacional – Brasil, Pacto pela Democracia e Movimento Transparência Partidária faz análise semelhante. "A PEC representa um grave retrocesso para a sociedade civil, para o sistema partidário, para o Congresso Nacional e, consequentemente, para a democracia brasileira".

Imunidade tributária

Atualmente, a Constituição Federal lista uma série de entidades e organizações sobre as quais é proibido cobrar tributos, como igrejas e templos religiosos e instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos. Os partidos políticos e fundações vinculadas a eles também estão inclusos nessa regra. 

Segundo a norma constitucional, é proibido instituir impostos sobre "patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações". O que a PEC da Anistia pretende é ampliar esta imunidade tributária, incluindo as sanções, de natureza tributária, sofridas pelas agremiações partidárias. 

"Abrangidos a devolução e o recolhimento de valores, inclusive os determinados nos processos de prestação de contas eleitorais e anuais, bem como os juros incidentes, multas ou condenações aplicadas por órgãos da administração pública direta e indireta em processos administrativos ou judiciais em trâmite, em execução ou transitados em julgado".
Parágrafo 1º, artigo 4º
PEC 9/2023

A medida resultará, portanto, no "cancelamento das sanções, na extinção dos processos e no levantamento de inscrições em cadastros de dívida ou inadimplência". Se aprovada, a PEC irá abranger dívidas ativas ou inadimplentes ocorridas em prazo superior a cinco anos. 

"Na verdade, vai além dessa imunidade tributária. A PEC anula as sanções tributárias aplicadas aos partidos mesmo em processos que estejam encerrados há mais de 5 anos. Então, abre espaço para a impunidade e o descumprimento de obrigações fiscais", explica Lígia Vieira de Sá. 

"Por que é um absurdo? Porque esse dinheiro que os partidos lidam é dinheiro público", pontua. Em nota técnica, entidades de defesa da transparência adjetivam esta medida como uma "anistia ampla e irrestrita para todas as irregularidades cometidas por partidos políticos e campanhas eleitorais". 

"Na prática, isso vai se impor no aumento dos valores disponíveis para os partidos políticos, além do que ele já tem dos fundos públicos, que não são poucos", completa.  

Renegociação de dívidas 

A PEC também pretende instituir um Programa de Recuperação Fiscal (Refis) específico para partidos políticos. No modelo proposto, as siglas ficariam isentas de multas e juros acumulados, sendo aplicada apenas a correção monetária aos valores devidos. 

O tempo para a renegociação varia de acordo com a dívida do partido. Para obrigações previdenciárias, a legenda terá até 60 meses, ou seja, até 5 anos para a quitação. O prazo aumento no caso das demais dívidas: será de até 180 meses para o pagamento, o equivalente a 15 anos. 

Durante a tramitação da proposta na Câmara dos Deputados, alguns parlamentares defenderam a possibilidade de facilitar o pagamento das dívidas das agremiações. 

"Às vezes, quando se assume o partido, há questões anteriores. Tem-se que regularizar o passado. Traz um transtorno muito grande, porque há multas e juros para serem pagos. E, muitas vezes, o partido não tem capacidade financeira", disse o deputado Gilson Daniel (Podemos-ES).

Contudo, a implementação de novas modalidades do Refis vem sendo desencorajada pela própria Receita Federal desde 2017. "A instituição de modalidades especiais de parcelamento de débitos, com reduções generosas de multas, juros, e também encargos legais cobrados quando da inscrição em Dívida Ativa da União vem influenciando de forma negativa o comportamento do contribuinte no cumprimento voluntário da sua obrigação, evidenciando assim uma cultura de inadimplência", argumenta nota técnica da Receita lançada no final daquele ano.

Ao relembrar este posicionamento da Receita, Lígia Vieira de Sá afirma que, exatamente por essa 'cultura da inadimplência', pode existir um "prejuízo duplo" com a aprovação desta medida. 

"Tem uma linha de defesa favorável a essa aprovação, que diz que irá estimular a arrecadação. Eu realmente não consigo visualizar essa possibilidade de estímulo de arrecadação. Ao contrário, eu vejo um prejuízo real, patente e efetivo aos cofres e um estímulo à inadimplência", argumenta.

'Caixa 2' 

Além disso, a PEC autoriza a utilização do Fundo Partidário para o parcelamento de multas eleitorais e demais penalidades impostas a partidos. O ponto mais criticado nesse trecho é sobre a autorização para que o dinheiro público seja usado quando o partido foi obrigado, por decisão judicial, a devolver valores ao erário. 

Isso inclui recursos privados de origem não identificada, conhecido popularmente como 'caixa 2'. "Dessa forma, seria possível utilizar recursos públicos, inclusive,
para cumprir sanções pelo recebimento de recursos privados de origem não identificada, que é uma forma de ‘caixa 2’", explica nota assinada pelo Transparência Brasil.

O ponto, segundo Vieira Sá, é "gravíssimo". "Vai estimular com que esses partidos, cada vez mais, atuem em desconformidade com a Constituição", ressalta. Membro da Abradep e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil — Secção Ceará, Fernandes Neto ressalta que todas as mudanças propostas pela PEC precisam ser entendidas de forma ampla. 

"Eu não posso analisar essa medida isoladamente, mas dentro de um quadro que, de 2 em 2 anos, se perdoa dívidas públicas, dívidas dos partidos políticos pelo descumprimento da lei", pontua o pesquisador, o que acaba tornando "letra morta" as regras eleitorais afetadas por propostas como a que está em tramitação no Congresso Nacional.