Depoimento de Eduardo Pazuello é marcado por blindagem ao Governo e contradições sobre a pandemia

Mesmo tendo o direito de permanecer calado, ex-ministro só usou a prerrogativa uma vez durante interrogatório

Mesmo suspenso no final da tarde desta quarta-feira (19), o interrogatório de Eduardo Pazuello deu indícios do que a participação do ex-ministro da Saúde pode representar para a CPI da Covid. Inicialmente, quem esperava que ele se valesse do direito concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de ficar calado, caso entendesse que poderia criar provas contra si mesmo, teve grande surpresa.  

O depoimento mais esperado da CPI até aqui teve Pazuello rebatendo denúncias, expondo contradições, dele e do Governo, e até provocando uma série de momentos acalorados. O general, no entanto, chegou a utilizar uma vez o direito de permanecer calado. 

Em sessão iniciada pouco depois das 9h da manhã, o general do Exército respondeu aos senadores perguntas sobre tratativas de vacinas, estrutura administrativa do Ministério da Saúde, possíveis intervenções do presidente Jair Bolsonaro, filhos e aliados em suas decisões, recomendações de tratamento precoce, crise de abastecimento de oxigênio em Manaus, entre outros assuntos relativos à pandemia. 

Reveja o depoimento:

Farpas na sessão 

A sessão começou menos acalorada do que o esperado, com o relator Renan Calheiros (MDB-AL) fazendo perguntas sobre o contexto estrutural do início de Pazuello no Ministério. O clima, porém, não demoraria a esquentar.

Ao ter objetividade cobrada pelo presidente Omar Aziz (PSD-AM) após perguntas sobre o planejamento deixado pelo Ministério em relação à Covid-19, o ex-ministro criticou a realização de “perguntas com respostas simplórias”. “Gostaria até que elas não fossem feitas”, complementou. 

A réplica de Aziz foi contundente: “General, vossa excelência não vai dizer para a gente o que a gente vai perguntar ou não. Quem decide isso são os senadores”, disse o presidente, afirmando que em muitas perguntas basta um “sim ou não”. “Está compreendido, senador”, respondeu Pazuello. 

Tratativas com a Pfizer 

O ex-ministro negou que a farmacêutica americana Pfizer tenha ficado sem resposta por quase dois meses, após carta enviada a ele e diversos representantes do Governo em setembro, com proposta de venda de 70 milhões de doses da vacina.

“Essas discussões nos consumiram em setembro e outubro. De agosto a setembro estávamos discutindo com a Pfizer ininterruptamente”, disse Pazuello.  

A fala do general contradiz declaração dada na semana passada pelo gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, fato que geraria vários posicionamentos de senadores ao longo da sessão, inclusive com cobranças por uma acareação entre os dois.

“A resposta à Pfizer é uma negociação. Eu estou falando de dezenas de reuniões e discussões. A resposta sempre foi: ‘sim, queremos comprar’, mas não posso comprar se você não flexibilizar tal medida, se não auxiliar na logística”, justificou Pazuello. 

CoronaVac 

Ainda sobre imunizantes, outro tema que gerou polêmica foi relativo à vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan (SP) em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Em outubro do ano passado, após anunciar intenção de compra de 46 milhões de doses da vacina, Pazuello viu, no dia seguinte, Bolsonaro desautorizar sua decisão.

“Se ele assinou, já mandei cancelar. O presidente sou eu. Não abro mão da minha autoridade”, disse Bolsonaro, à época, se referindo pejorativamente à “vacina chinesa do João Doria”. 

Após a demonstração de desalinhamento, Pazuello chegou a gravar um vídeo ao lado de Bolsonaro, em que dizia: “Senhores, é simples assim. Um manda e o outro obedece”, apontando para o presidente. O ex-ministro, no entanto, minimizou o episódio, tratado por ele como posicionamento político em resposta ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mas sem efeitos práticos.

“Quando ele recebe uma posição política de São Paulo, ele se posiciona como agente político também. Eu queria dizer que a posição de agente político ali não interferiu em nada o que fazíamos com o Butantan”, garantiu. 

Tratamento precoce 

Em maio do ano passado, Eduardo Pazuello atualizou os protocolos do Ministério da Saúde ampliando as recomendações do uso da hidroxicloroquina para o chamado “tratamento precoce”. O medicamento, contestado pela comunidade científica pela comprovada falta de eficácia contra Covid-19, foi um dos principais motivos para a demissão do antecessor de Pazuello, Nelson Teich. 

O general do Exército firmou que nunca recebeu recomendações de Jair Bolsonaro, constante defensor do medicameno, sobre o uso da hidroxicloroquina.

“O presidente da República falou para mim e para todos os ministros várias vezes: 'de assunto de saúde quem trata é o ministro Pazuello'. Então, nunca, nunca, e vou repetir, nenhuma vez eu fui chamado para ser orientado pelo presidente da República de forma diferente por aconselhamentos externos”, afirmou. 

Ainda sobre o assunto, Pazuello tentou minimizar as polêmicas: “A gente não precisa botar um monte de fantasma em cima desse assunto. Ele é simples. O Brasil usa cloroquina há 70 anos. A cloroquina é um antiviral e um anti-inflamatório conhecido”.

O general foi corrigido pelo senador Otto Alencar (PSD-BA). “A cloroquina é um antiprotozoário, não é antiviral”, rebateu Otto. “Sim, senhor, mas ela teve ações dessa forma. Eu não vou entrar no mérito desse assunto porque realmente não tenho conhecimento para entrar”, reconheceu o ex-ministro, que também afirmou nunca ter sido orientado pelos filhos do presidente. 

Em relação ao polêmico aplicativo TrateCov, lançado pelo Ministério da Saúde e que recomendava o uso da hidroxicloroquina a pacientes de todas as idades, após o fornecimento de informações sobre sintomas, Pazuello atribuiu responsabilidade à cearense Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde.

Mayra, que tem sido chamada de “Capitã Cloroquina”, é a próxima interrogada pela CPI. O depoimento deveria acontecer nesta quinta (20), mas foi reagendado para a próxima terça-feira (25) após o mal-estar de Pazuello que acabou provocando a suspensão da sessão desta quarta. 

Crise em Manaus 

A crise de falta de oxigênio na capital amazonense, em janeiro, foi um dos principais focos de embates e divergências durante o depoimento, e fez com que, pela primeira vez, Pazuello usasse o direito de ficar calado. O colapso em Manaus teve como ápice os dias 14 e 15, e, desde então, as divergências têm pairado sobre o quão antes o ex-ministro havia ficado sabendo do iminente colapso. 

O general informou ter ficado sabendo do problema no dia 10 daquele mês. “Quando nós entramos, nós entramos com bastante força. Chegamos (a Manaus) no dia 10, no dia 11 criamos o Centro Integrado de Coordenação e Controle, e já no dia 12 começaram a chegar as aeronaves trazendo oxigênio”, explicou.  

Omar Aziz afirmou, por meio de documento do Ministério da Saúde, que Pazuello já sabia do problema desde o dia 7.

“Faltar com a verdade aqui vai dar consequências muito grandes porque nós não iremos parar enquanto a gente não achar a verdade”, alertou o senador.

Pazuello reconheceu ter recebido ligação do secretário da saúde do Amazonas, com pedido de ajuda para transportar oxigênio para Manaus. 

Em um dos momentos em que a crise era discutida, a sessão chegou a ser interrompida após bate-boca entre Aziz e o senador governista Luiz Carlos Heinze (PP-RS), que apontou para o mal uso de verbas federais enviadas ao Estado, R$ 2,6 bilhões, segundo ele. Aziz o chamou de “mentiroso”, antes da sessão ser interrompida diante do clima quente. O senador amazonense pediria desculpas ao colega em outro momento. 

No retorno, o colapso em Manaus continuou a repercutir. Pazuello, que havia dito anteriormente não saber de proposta dos Estados Unidos para ceder aviões que pudessem buscar oxigênio na Venezuela e levar à capital amazonense, viu a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) desmenti-lo. Ela acusou o ex-ministro de “mentir demais” e apresentou provas de várias contradições. 

“Vossa excelência acaba de falar que não teve informações acerca do avião cargueiro. Está aqui uma documentação, que foi feita pelo próprio Ministério da Saúde em resposta a uma parlamentar, a deputada Perpétua (Perpétua Almeida, do PCdoB do Acre), e fala aqui, claramente, porque não respondeu o pedido que foi feito para ter acesso a essa aeronave”, contestou Eliziane.

Nesse momento, Pazuello foi orientado pelo advogado a não responder, usando o direito de não produzir provas contra si mesmo. Ainda com clima quente, a sessão seria suspensa poucos minutos depois, agora de forma definitiva, como se saberia posteriormente. 

Cearenses 

O único senador cearense a fazer perguntas a Pazuello nesta quarta foi Tasso Jereissati (PSDB). Em participação remota, o tucano questionou o elevado número de mortes por Covid-19 no País. “O Brasil tem 2,7% da população mundial e cerca de 13% das mortes por Covid. A que a sua gestão atribui esses números dramáticos?”, perguntou Tasso. 

Eduardo Pazuello creditou o quadro ao “desalinhamento da classe médica” em relação aos protocolos da doença e a problemas estruturais da saúde pública brasileira.

“Eu acredito que a curva de óbitos tem a ver com muitas outras estruturas, muita falta de estrutura. A nossa capacidade de resposta de estruturação de leitos, de estruturação de equipamentos, não foi a mais rápida que poderia ser. Eu acho que a nossa capacidade de tratar as pessoas poderia ter alcançado outro nível”, reconheceu. 

Tasso perguntou, ainda, se a conduta do presidente Bolsonaro em não seguir protocolos sanitários como distanciamento social e uso de máscara poderia ser um “fator relevante”, partindo do ocupante do cargo máximo da República. O ex-ministro tentou minimizar as consequências dos atos do presidente. “Ele está, na minha visão, tratando da parte psicossocial, da posição do povo de acreditar que isso (a pandemia) vai passar”, disse. 

Eduardo Girão (Podemos) não chegou a fazer perguntas ao ex-ministro, mas concedeu entrevista coletiva após o primeiro intervalo da CPI. O senador cearense elogiou a participação de Pazuello até então. “Era o que eu esperava em termos da postura do ex-ministro, que ele não fosse se esconder atrás desse habeas corpus, e que pudesse falar, responder todas as perguntas de qualquer senador, como todos os outros depoentes fizeram”. 

Girão voltou a cobrar intercalação nas convocações para depoimentos, com foco nas verbas federais. “Que a gente possa, a partir de agora, finalmente, conseguir alternar pelo menos, um depoente do Governo Federal, porque tem que continuar as investigações, e um depoente relativo aos bilhões de reais, para a gente buscar rastrear, de estados e municípios”, cobrou. 

Avaliação 

Professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart acredita que o período utilizado por Pazuello para se preparar para ir à CPI se reverteu em uma “técnica mais apurada” do ex-ministro para encarar o interrogatório. “A gente viu, sim, o poder do 'media training' nessa fala do Pazuello, porque ela foi muito bem sucedida, em relação aos outros ministros”, avalia. 

Segundo a pesquisadora, o habeas corpus do STF possibilitou ao ex-ministro a estratégia de “mentir deliberadamente para proteger o Governo”.

“Ele mentiu que foi o TCU (Tribunal de Contas da União) que vetou a compra da vacina, quando na verdade foram a AGU (Advocacia-Geral da União) e a CGU (Controladoria-Geral da União), que são do Executivo, controladas pelo Bolsonaro. Ele disse que a vacina da Pfizer não foi comprada porque era cara, mas ao mesmo tempo eles estavam negociando a Covaxin indiana, que era mais cara ainda. E o mais bizarro foi quando ele disse que o Bolsonaro nunca desautorizou a compra de vacinas, quando há vídeos em que ele desautoriza e vídeo em que o Pazuello reconhece”. 
Mayra Goulart
Cientista política e professora da UFRJ

Para Mayra Goulart, que cita, ainda, inverdades relacionadas à questão em Manaus, a estratégia de Pazuello, posta em prática, revela, além da proteção que recebeu do Governo, uma “falta de suporte técnico” da CPI.

“A Comissão podia ter instrumentos para, na hora, rebater aquelas mentiras, e isso também mostra uma falta de empenho dos senadores. Achei que o Renan, por exemplo, estava mal preparado, e não agiu, por exemplo, com o mesmo empenho da Kátia Abreu em relação ao Ernesto Araújo ontem (terça)”, analisa.