Cloroquina, lambedor e ovo: discursos pró-tratamento precoce entre políticos são alvos de debate

O uso de medicamentos e práticas naturais para supostamente prevenir a infecção pelo coronavírus tem estado cada vez mais presente em discursos políticos; Senado vai discutir o tema nesta semana

Na semana em que Jair Bolsonaro (sem partido) adotou o uso de máscara e defendeu a vacinação, após um ano de pandemia no País, aliados do presidente no Ceará não desviaram seu curso: mergulharam no debate sobre tratamento precoce da Covid-19.

O uso de medicamentos para supostamente prevenir a infecção pelo coronavírus é alvo de críticas de médicos e virologistas, mas há aqueles que defendem a prática. Na política, pesquisadores apontam que o discurso tem como objetivo garantir a manutenção de apoio do eleitorado mais fiel até 2022.

Nesta segunda-feira (15), o assunto seguirá em pauta, desta vez no Senado. Atendendo a um pedido do senador cearense Eduardo Girão (Podemos), a Casa promoverá um debate temático sobre tratamento profilático. A proposta inclui discutir a adoção de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, entre outros. 

Em janeiro deste ano, durante entrevista ao Diário do Nordeste, o parlamentar defendeu o uso de algumas dessas drogas.

“Tomei e conheço muita gente em Fortaleza, em Brasília, no Brasil, fora do Brasil, que tomou ivermectina, hidroxicloroquina, nos primeiros momentos quando sentiu (manifestações da doença). (...) Não existe porque essa demonização desses medicamentos, que têm salvado”, disse Girão. 

No Ceará

Na última quinta-feira (11), em sessão da Assembleia Legislativa do Ceará, deputados defenderam em grupo a adoção do “tratamento precoce”. Durante a votação sobre decretar estado de calamidade em mais municípios cearenses, Delegado Cavalcante (PSL) disse que fez uso dos medicamentos. 

Na semana anterior, o parlamentar havia defendido inclusive o consumo de substâncias naturais contra a doença.

“(…) Tem a medicação tradicional, que eu usei quando tive Covid, que é o lambedor, o chá de boldo e o antibiótico caseiro“, mencionou, sem citar estudos científicos sobre o suposto tratamento.

Veja o trecho do discurso do parlamentar: 

Médica, a deputada Dra. Silvana (PL) reforçou o coro. “Eu sigo tomando a cloroquina. Várias regiões não foram dizimadas pela malária devido à cloroquina, então temos que usar as armas que temos, pois dessa doença não sabemos quase nada”, disse Silvana. 

Mas a defesa de técnicas sem comprovação científica contra a Covid-19 não é exclusiva aos parlamentares mais próximos ao presidente no Ceará. O vereador de Fortaleza e decano da Câmara, Carlos Mesquita (PDT), usou as redes sociais para divulgar supostos "conselhos dos hospitais". 

No texto, publicado terça-feira (9), ele orienta sobre o uso de vitaminas, o tempo de exposição ao sol, a quantidade de ovos para comer durante uma refeição, a temperatura dos alimentos consumidos durante o dia e, por fim, sugere limão e água morna para matar o vírus. 

A mesma lista de orientações foi classificada em publicação recente da agência de checagem de informações do Governo do Ceará como “falsa”. O Estado ressalta a importância de manter boa imunidade, mas pondera que não há medicamentos ou alimentos conhecidos que combatam a doença.

Sejam medicamentos sejam substâncias naturais, entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, a Sociedade Americana de Infectologia (IDSA) e a Sociedade Europeia de Infectologia (ESCMID) estão entre as instituições que não recomendam o uso do tratamento precoce.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) reforçam o mesmo posicionamento. 

O debate na política

Para Francisco Moreira Ribeiro, professor de ciências políticas na Universidade de Fortaleza (Unifor), centralizar o debate sobre o tratamento de uma doença na política é “perda de tempo”. “Tornou-se uma discussão sem sentido, que deveria se limitar ao campo da ciência. Tem coisas mais sérias a serem discutidas, a situação econômica, por exemplo, é da política que deveria partir uma solução”, afirma. 

“Os políticos e a parcela da população que discute isso se retroalimentam, mesmo sem ambos terem clareza do que estão discutindo, eles seguem fazendo”, acrescenta o professor. 

Segundo Cleyton Monte, cientista político, professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da Universidade Federal do Ceará (UFC), o espaço que esse debate tem no Brasil faz parte de uma estratégia política. 

Ele aponta que pesquisas recentes indicam que o presidente mantém uma margem fiel de um terço do eleitorado brasileiro. “Isso está disperso no Brasil, em alguns lugares com mais e em outros com menos, mas existe e é uma parcela capaz de eleger deputados. Então, esses discursos falaram para esses grupos, constrói-se uma narrativa olhando para 2022”, aponta. 

Para ele, há ainda uma estratégia de “contranarrativa”. “Sobrará um fardo muito grande dessa pandemia, que é desemprego, pobreza e inflação. Em 2022, vai se buscar um culpado, porque a economia é importante na decisão do voto, é com ela que se calcula o quanto a vida melhorou ou não, e de quem é a culpa por isso. O Governo Bolsonaro e seus aliados já têm essa contranarrativa de dizer que não é por causa do presidente, mas por causa dos governadores”, avalia. 

O debate na ciência

Enquanto políticos – muitos sem formação na área – mergulham em discussões sobre a saúde, profissionais e pesquisadores da área tentam evitar politizar o debate. 

“Dar cunho político a uma medicação prejudica toda a cadeia. Falta a medicação, porque há um consumo maior. Quem toma sem orientação sofre com os efeitos colaterais e prejudica a confiança nos profissionais”, aponta Bruno Cavalcante, médico, professor universitário e preceptor de clínica médica no Hospital Geral de Fortaleza (HGF). 

“O fato de ter um tratamento que saiu da ciência e foi para a política é péssimo. Quando dizemos que não funciona, alegam alinhamento político, mas quem diz o que funciona ou não, neste caso, não é política, é ciência”, corrobora o virologista Samuel Arruda.

Para Arruda, atualmente, nada indica que os medicamentos disponíveis sejam eficazes contra o vírus da Covid-19. “Não tem estudo clínico, embasado por métodos científicos, avaliado por outros cientistas, e que tenha sido publicado, que mostre eficiência no uso de ivermectina, cloroquina ou qualquer um desses medicamentos”, aponta. 

“Quando dizem que uma pessoa tomou e não adoeceu, que bom, mas tiveram outras dez que não tomaram e não adoeceram. Esses exemplos isolados não servem para provar que uma medicação funciona. Para isso, temos modelos científicos”, acrescenta o virologista. 

Posicionamento semelhante é reforçado por Bruno Cavalcante. Segundo ele, além do risco do uso de drogas sem eficácia contra a Covid-19, há ainda o perigo do consumo excessivo dessas substâncias. “Existe um risco de intoxicação, com o excesso de vitamina D, de zinco e complicação por conta de corticóide usado de forma indevida”, aponta. 

“O que temos da ciência, atualmente, de mais importante e eficaz para mudar o desfecho da pandemia no Brasil e no mundo é a vacina”, conclui Cavalcante.