Carta de despedida para As Travestidas

O ano era 2000 e eu ainda era um jovem no Ensino Médio, no Instituto Federal de Educação, o antigo Cefet. Nessa época, eu também fazia o Curso de Princípios Básicos de Teatro, o CPBT do Theatro José de Alencar e começava a conhecer a noite LGBTQIAP+ de Fortaleza, especialmente a boate Divine.

Para um jovem vindo do interior, aquele mundo da noite, da festa, das cores, da performance, da arte transformista era muito novo e mágico. Era na saudosa Divine que se concentravam as maiores artistas drag queens do Ceará e eu fiquei encantado com tudo o que vi desde o primeiro momento.

Quando ingressei no Teatro, acreditei ter encontrado um lugar permissivo e livre de preconceitos, mas dei de cara com bloqueios e muita resistência na liberdade de se expressar, se expor ou abordar determinados temas em cena. Inclusive, a maior parte das artistas drags/transformistas que eu conheci fazendo performances em boates na época, vinham do teatro, porque lá “esse tipo de arte” não era aprovado pela classe artística.

Voltando ao Cefet, durante a disciplina de Literatura, me foi apresentada a obra de Caio Fernando Abreu e eu encontrei o conto “Dama da Noite” - um gatilho para falar dentro do teatro, ambiente que sempre considerei sagrado, sobre o que eu vinha presenciando e me angustiando. Eu me propus o desafio de debater sobre gênero no palco, com meu jeito, com meu corpo, sem imaginar onde aquilo me levaria. Sem imaginar que, anos depois, faria parte de um dos maiores e mais representativos grupos artísticos LGBTQIAP+ do país.

Busquei a ajuda de vários dramaturgos e diretores para me auxiliar na adaptação do conto para o teatro, mas não achei nenhum apoio. Então fiz tudo sozinho: texto, direção, figurino, trilha, iluminação e cenografia. Fui pro palco. Minha estreia foi em 2002. Recebi vários prêmios, entre Melhor Monólogo e Melhor Ator, mas ainda assim, eu não tinha nem apoio do público, nem da crítica, nem da classe artística. Cheguei a fazer diversas sessões para quatro ou cinco pessoas.

Em 2009, a então diretora do Theatro José de Alencar, Izabel Gurgel, me fez o convite para realizar o espetáculo Uma Flor de Dama, no porão, em horário alternativo, à meia noite. Fiquei amedrontado com a proposta e para atrair público, transformei a peça em uma festa, o Cabaré da Dama. Neste período, eu já cursava Artes Cênicas no IFCE e propus a Verónica Valenttino e Alicia Pietá de fazer a tal festa comigo.

Com elas, tudo mudou. O porão do Zé de Alencar virava a nossa própria Divine, com números performáticos, caipirinha servida ao público e o burburinho de ser um ótimo “esquenta” para quem curtia a noite. Sucesso de público, ingressos esgotados, sessões extras.

Nessa festa-espetáculo foram chegando novos integrantes: Fabinho Vieira, Denis Lacerda, Yasmin Shirran, Patrícia Dawson, Isabelle Pfeifer, Jesuíta Barbosa e Karolayne. Dessa nova relação, vimos a necessidade de consolidar um grupo de teatro e produzir novos trabalhos. Assim, em 2011, surge - oficialmente - As Travestidas, com o espetáculo Engenharia Erótica. Mais uma vez, a classe artística chegou para tentar nos dizer o que era arte e o que não era, mas já tínhamos conquistado o nosso público.

Depois disso, o Coletivo As Travestidas virou um fenômeno na história do Teatro Cearense, com circulação por todo o Estado, filas e mais filas para as nossas programações, teatros lotados, atraindo uma legião de fãs, como verdadeiras vedetes, ou, como gosto de chamar, “vedrags” do Ceará. O grupo foi crescendo, cinco novos espetáculos, documentário, carnaval. Chegou Mulher Barbada, Renata Monte, George Hudson e Luana Caiubi.

Acho que até hoje, depois de tantos anos, ainda não sei explicar o que causou tanto alvoroço. Nada era premeditado. Nós tínhamos nossa arte, a crença umas nas outras e a imensa vontade de fazer um teatro epidérmico, provocativo, político, que fizesse com que as pessoas se transformassem, se questionassem.

Nos tornamos mais do que um coletivo, viramos uma família. Vivemos momentos lindos, engraçados, emocionantes, sofridos e vitoriosos. Brigamos muito e nos reconciliamos todas as vezes, porque acima de tudo, nos amamos profundamente. Criamos laços de afeto que talvez nunca nenhum de nós teve com qualquer familiar sanguíneo.

Agora, sabendo que o nosso coletivo - e isso inclui toda a rede de trabalhadores e trabalhadoras que envolvemos durante todos esses 15 anos - possivelmente lerão esta coluna, quero dirigir minhas palavras diretamente a ele:

Amigos, amigas, irmãs,

Nós fomos teatro, audiovisual, música, festa, dança, cinema, exposição, bloco de carnaval, tese acadêmica e até calendário. Encerrar a nossa história me dói muito, mas nós sabemos tudo o que vivemos e tudo o que levaremos dessa experiência pra sempre. A nossa história marcou o teatro cearense e tenho certeza de que nós marcamos os corações de muitas pessoas pelo Brasil.

Dizer adeus ao grupo significa fechar de vez esse ciclo tão importante na minha vida, fechar uma gaveta de lembranças para que, no futuro, eu possa com saudade revisitar. Farei isso com a certeza de que olharei para o nosso passado com o peito repleto de orgulho por tudo o que vivemos, seja em Fortaleza, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul ou no Tapuio.

As minhas memórias mais gostosas e mais engraçadas sempre terão alguma de vocês, porque se teve uma coisa que a gente soube fazer, foi rir e se divertir. Juntos. Juntas. No palco e fora deles. Sempre seremos uma família e para sempre vamos nos olhar com carinho e admiração e isso é algo que não se paga ou se explica.

O coletivo As Travestidas não é só uma onda no mar, na história. O oceano é enorme e outras ondas gigantes virão, sem dúvidas, mas nós… Eu tenho certeza, fomos e sempre seremos um tsunami!

Amor sempre!

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora