Uma noite mágica e inesquecível a de ontem no Theatro José de Alencar, a centenária e principal casa de espetáculo de Fortaleza, que se engalanou para receber, com pompa e circunstância, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a famosa Osesp, uma das 10 melhores do mundo numa lista que começa pela Filarmônica de Berlim, segue pela Filarmônica de Viena e avança pelas sinfônicas de Concertgebouw (de Amsterdam) Boston, Londres, Nova Iorque e Chicago.
Essa dádiva musical foi o grande presente que, na celebração dos seus primeiros 85 anos de fundação, o Grupo J. Macedo – nascido da genialidade do empresário José Dias de Macedo – ofereceu à sociedade cearense, que carece, com as exceções que confirmam a regra, de mais concertos de música erudita para saber até como e quando deve aplaudir, de pé ou sentada.
Os 700 convidados – parte dos quais vestida corretamente de esporte fino, com blazer, como indicava o convite, outra parte, erradamente, até de camisa polo, como se estivesse fazendo compras em um shopping center – agradeceram aos irmãos Roberto, presidente do Conselho de Administração, e Amarílio Macedo, CEO do Grupo J. Macedo, pelos divinos 90 minutos de exibição do que melhor compuseram Carlos Gomes, Carl Maria Von Weber, Alberto Nepomuceno, Alberto Ginastera e Heitor Villa-Lobos.
Entre os convidados, o governador Elmano de Freitas e sua bela e elegante esposa Lia.
Antes da música, quatro curtíssimos discursos – os de Roberto e Amarílio duraram dois minutos; o de Irineu Pedrollo, presidente de J. Macedo, três; o de Marcelo Lopes, diretor Executivo da Fundação Osesp, cinco, pois teve de explicar que o nascimento da orquestra, em 1954, foi consequência do esforço que, pessoalmente, empreendeu o maestro cearense Eleazar de Carvalho, que a dirigiu por alguns anos.
O concerto da Osesp foi iniciado com a abertura (protofonia) da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, que estreou mundialmente no Teatro Scala, de Milão, em março de 1870. Em dezembro do mesmo ano, foi apresentada pela primeira vez no Brasil.
A peça é muito conhecida do público brasileiro porque são seus primeiros acordes que anunciam, diariamente, às 19 horas, o programa noticioso “A Voz do Brasil”, espécie de boletim dos três poderes da República brasileira.
A Osesp, sob a segura regência de Wagner Polistchuk, revelou, na abertura do O Guarani, a extraordinária performance de seu conjunto de músicos, com destaque para o naipe de metais, sobressaindo-se os trombones. O público aplaudiu com força.
Polistchuk saiu do palco e, em seguida, retornou a ele acompanhado do jovem Rafael Esparrelll, já apontado pela crítica como um virtuose do clarinete. Ele executou o difícil Concerto Nº 2 em Mi Bemol do alemão Carl Maria Von Weber. Nos três movimentos da composição – Allegro, Romanza e Alla polaca – Esparrelli mostrou a força dos seus pulmões – com um sopro forte e longo observado no primeiro movimento e repetido no terceiro – além de boa técnica no uso das mãos e dos dedos, destacadamente os polegares. Tudo isso – aliado à sua juventude e à sua ereta postura na execução – entusiasmou a plateia.
Desacostumada a concertos de música erudita, tendo muito pouca informação sobre o tema, a maioria do público presente aplaudiu a brilhante performance do clarinetista ao fim de cada movimento do Concerto de Von Weber. O correto é o aplauso ao fim do concerto, ou seja, no último movimento. A transição entre um movimento e outro é acompanhada em silêncio.
Depois do clarinete, chegou a vez da grandiosidade de Alberto Nepomuceno. A Osesp e Wagner Polistchuk presentearam os convidados de J. Macedo com a Série Brasileira, composta por ele em Berlim, em 1891. São peças que caracterizam a paisagem rural brasileira daquela época. Nepomuceno usou todos os recursos da música sinfônica para emoldurar cada um dos quatro movimentos, intitulados Alvorada na Serra, Intermédio, A sesta na rede e Batuque. No primeiro, as flautas imitam o som dos pássaros, enquanto as cordas – violinos, violas, celos e baixos – desenham o meio ambiente.
Os que, na plateia, tinham mais de 70 anos – e eram muitos – revisitaram seus tempos de menino ao embalo da música de Alberto Nepomuceno, que reservou para o Batuque – o quarto movimento – o final apoteótico, tão apoteótico, que todos se levantaram e aplaudiram com força, como se o concerto tivesse acabado. Alguns gritaram “bravo! bravo!”
Ainda havia mais.
Saiu Alberto Nepomuceno, entrou Alberto Ginastera, argentino de Buenos Aires, com suas Quatro Danças, que integram a Estância, a oitava de suas obras (Opus), escrita em 1941. Dividida em quatro movimentos que duram 13 minutos – Trabalhadores agrícolas, Dança do Trigo (aqui está a causa da inclusão de Ginastera no programa de ontem), Os trabalhadores da fazenda e Malambo – Estância é um perfeito e bem acabo retrato dos pampas argentino e gaúcho, com sua música e sua dança bem características.
No início do último movimento, um casal sentado ao lado deste colunista pediu licença para sair (levantar-se e retirar-se no meio de um concerto é um gesto de absoluto desrespeito a quem está no palco apresentando-se). Eles foram acalmados com a informação (dita ao pé do ouvido) de que faltavam apenas três minutos para o fim do concerto. Essas coisas acontecem com quem pensa que babado é bico.
O público levantou-se, agora acertadamente, e aplaudiu com muita força os músicos da Osesp e seu maestro Wagner Polistchuk.
Mas o fim do concerto das Osesp não significou o fim da festa, que ainda reservava uma grande surpresa: um show de Waldonys – que é sanfoneiro, compositor, cantor, poeta, paraquedista, membro honorário da Esquadrilha da Fumaça e piloto de acrobacias.
Vestido de preto, ocupando um palco bem iluminado e apoiado por zabumba, triângulo, guitarra e afinado back vocal, Waldionys – na acertada escolha da família Macedo – estendeu a presença cearense nos 85 anos de um dos maiores grupos econômicos do Ceará. Da música erudita de Alberto Nepomuceno e do vínculo histórico do maestro Eleazar de Carvalho com a Osesp, os convidados transitaram para a autêntica música nordestina, cujo pai, Luiz Gonzaga, foi, digamos assim, o estimulador e o orientador da carreira de Waldonys, que ainda teve outro padrinho importante: Dominguinhos.
Waldonys é hoje o mais requisitado sanfoneiro do Nordeste. Sua agenda de shows é uma prova. A cada fim de semana, ele se exibe em uma cidade nordestina, e em muitas delas, por exigência do público e por isto mesmo incluída no contrato de trabalho, ele chega, literalmente, de paraquedas.
Waldonys não se fez de rogado: tocou e cantou o melhor da música nordestina, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira a Flávio Leandro, de Antônio Barros e Cecéu a Maciel Melo, de Petrúcio Amorim ao Quinteto Violado, de Dominguinhos e Anastácia a Raimundo Fagner.
Carismático, Waldonys não é só o sanfoneiro e o cantor. É também o artista bem equipado intelectualmente, e nos shows, como o de ontem, declamou versos de Patativa do Assaré e recitou textos de sua autoria, tudo bem dosado pelas teclas brancas e pretas dedilhadas pela mão direita e pelos baixos pressionados pelos dedos da mão esquerda (o sanfoneiro só é bom, se mostrar com as duas mãos o controle do instrumento).
Resumindo: o Theatro José de Alencar e seus jardins viveram ontem mais uma grande e inesquecível noite de boa música.