Entre o final da tarde e o início da noite, do dia 15 de fevereiro de 2022, a cidade de Petrópolis, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, viveu mais uma tragédia, provocada por fortes chuvas, que atingiram a inédita marca de 260mm em curto espaço de tempo. O relevo montanhoso que caracteriza a cidade, as milhares de construções irregulares, as ocupações dos morros por uma população que não dispõe de outras áreas onde construir ou adquirir suas residências, provocou oficialmente, até agora, a morte de 181 pessoas, número que deverá ainda subir, pois cerca de 104 pessoas ainda continuam desaparecidas.
As fortes chuvas provocaram inúmeros deslizamentos nas encostas, que resultaram em verdadeiras avalanches de lama, acompanhadas por árvores, pedras, que foram arrasando tudo ao seu passo. No Morro da Oficina, na região do Alto da Serra, o deslizamento transformou em escombros cerca de oitenta casas, soterrando seus moradores, a maioria deles encontrados sem vida ou ainda desaparecidos. Sendo cortada por três rios (Palatino, Piabanhas e Quitandinha), que receberam um volume estrondoso de águas, que desciam dos morros, a cidade não só ficou alagada, mas viu suas ruas e avenidas se transformarem em rios furiosos que arrastavam tudo em sua passagem: carros, ônibus, árvores, móveis, gôndolas, prateleiras e estoques das casas comerciais, arrancando até mesmo o asfalto.
Se observarmos as fotografias divulgadas, sejam dos mortos, sejam das pessoas desaparecidas, podemos facilmente perceber dois traços que as aproximam: eles são, em sua esmagadora maioria, pessoas de baixa renda e são negras ou pardas. A tragédia de Petrópolis não é, assim, um fenômeno meramente acidental, não é um mero infortúnio, uma catástrofe natural. Se é verdade que o excesso de chuvas desencadeou os acontecimentos traumáticos e fora do comum, ele não pode ser responsabilizado sozinho pelo drama humano vivido pelos moradores, que foram vítimas de perdas materiais e afetivas inestimáveis.
O que aconteceu em Petrópolis é apenas um evento extremo entre muitos outros, corriqueiros e banais, em muitas cidades e metrópoles brasileiras. Os pobres vivendo em áreas de risco e irregulares do ponto de vista da legislação municipal, em habitações precárias, em leitos e margens de rios e córregos, sobre mangues e lamaçais, pendurados em morros e montanhas íngremes, construindo em encostas sem nenhum trabalho de fixação do terreno, é uma constante na maioria dos municípios brasileiros. Em todos esses espaços, se fizermos uma pesquisa ou levantamento, constataremos que o perfil racial e sócio-econômico de seus moradores não será muito diferente do encontrado nas áreas devastadas pelas chuvas e deslizamentos em Petrópolis.
A tragédia de Petrópolis expõe uma grande chaga da sociedade brasileira, embora as inúmeras reportagens, de uma grande imprensa sensacionalista, nunca toquem nessa questão: a segregação espacial dos pobres e dos pretos em nosso país. O que aconteceu em Petrópolis, e pode vir a se repetir em várias cidades brasileiras, é produto do monopólio da terra e do solo urbano por parte das elites vistas como brancas. O evento na cidade serrana expõe não só o racismo estrutural, que relegou os negros, os descendentes dos africanos escravizados, a ocuparem os lugares inferiores nas hierarquias sociais, os postos de trabalho pior remunerados e de menor prestígio, no mercado de trabalho e, em grande medida, colocou toda uma série de obstáculos a ascensão social da população afrodescendente, mas também, por extensão, a segregação em termos espaciais a que essas populações são relegadas, à medida que para elas só restam os espaços pouco valorizados, pouco rentáveis, os espaços degradados ou os espaços públicos (lembremos que as favelas nasceram com a migração em massa de negros para a cidade do Rio de Janeiro após serem abandonados a própria sorte com a chamada abolição da escravatura).
Para essas populações somente as terras de baixo valor, aquelas que não interessam a especulação imobiliária ou que são objeto de proteção do Estado, por serem terras devolutas ou destinadas a preservação ambiental, podem ser acessadas, assim mesmo através da ocupação irregular. Dificilmente a maioria esmagadora dos homens e mulheres negros e pobres, que estão fora, inclusive, do mercado formal de trabalho, vivendo de atividades intermitentes, manuais, informais ou nas atividades mais mal remuneradas, daquilo que se chama de bicos, de biscates, muitos partícipes da recente uberização do trabalho, trazida pelas reformas trabalhistas, têm condições de adquirirem terrenos ou moradias.
Embora oficialmente o Brasil nunca tenha vivido um regime de apartheid racial, embora o discurso oficial nos apresente como sendo uma democracia racial, a segregação espacial da população negra e, por consequência dos pobres, das classes trabalhadoras, onde se encontra o grande contingente das pessoas de origem africana, é uma realidade entre nós, uma realidade que estrutura a própria dinâmica das hierarquias e distribuições espaciais em nosso país. Se nos Estados Unidos é visível e até chocante ver que existe claramente uma linha divisória entre os bairros negros e os bairros brancos nas cidades, fruto da política segregacionista que era oficial até os anos sessenta, do século passado, no Brasil o mesmo ocorre só que de maneira não oficializada e, por isso mesmo, muitas vezes invisibilizada, não percebida conscientemente. Embora haja linhas de cor e de classe a demarcar dados espaços, gostamos de viver a ilusão de que vivemos misturados, tal como a mitologia da mestiçagem tenta nos convencer, que em nosso país não há separações, que aqui não há espaço racial e socialmente marcados.
No entanto, a realidade é bem outra. Se visitamos um bairro de classe alta, em qualquer cidade do Brasil, o percentual de pessoas negras ou pardas será diminuto (embora nosso racismo usará essas exceções para dizer que entre nós não há racismo e, possivelmente, esses poucos negros privilegiados, tendo sofrido a lavagem cerebral do branqueamento, possam fazer tudo para parecerem brancos e esquecerem que são negros e possam se considerarem excepcionais individualmente, emitindo opiniões desfavoráveis e despectivas em relação aos seus semelhantes, acusando-os de ser preguiçosos, acomodados, pouco inteligentes ou previdentes, etc).
Se, no entanto, visitamos uma favela, um cortiço, um alagado, se vamos às periferias das cidades, se subimos os morros, aí iremos encontrar uma população majoritariamente negra ou mestiça, descendentes de negros e/ou indígenas, mesmo que muitos possam ter a cor da pele branqueada dado os históricos intercursos sexuais inter-raciais que foi um traço de nossa história, desde a Colônia, quando a escravidão permitia que os homens brancos tomassem posse do corpo de suas escravas, sejam pretas ou indígenas, como objeto de prazer e violência sexual.
A tragédia de Petrópolis é exemplar no que tange ao secular monopólio da terra, dos espaços por parte de uma minoria branca. Ela teve o mérito de tornar público o escândalo que é o fato de que a população da cidade continue a pagar, até hoje, uma taxa destinada a descendentes da Família Real. O laudêmio, mais conhecida como a “taxa do príncipe” foi instituído em 1847, sendo cobrada até hoje. Ela incide sobre qualquer transação imobiliária que envolva as terras da antiga fazenda Córrego Seco, que pertenceu ao Imperador e as seus descentes. Ela corresponde a todo o centro e vários outros bairros da cidade, o que significa o encarecimento dessas áreas, já que qualquer transação imobiliária envolvendo essas terras é taxada em 2,5%, recursos que vão para aqueles que descendem de Pedro II.
É fácil de entender por que os trabalhadores, os pobres, a maioria deles negros ou pardos, se penduram nas encostas dos morros mais íngremes da cidade, onde constroem suas casas com os materiais que conseguem comprar com seus parcos rendimentos, casas muito precárias e frágeis, muitas delas construídas sem qualquer ordenamento espacial, gerando uma situação de apinhamento que favorece a ocorrência de tragédias como a que presenciamos. Certamente o Presidente da República dirá que elas não tiveram visão de futuro, ao construírem suas moradias em áreas sabidamente de alto risco. Mas, a maioria dos moradores do Morro da Oficina não podiam pensar em futuro, já que sempre viveram atarefados em darem conta do presente, em conseguirem sobreviver nos dias que correm, em conseguirem escapar da fome e da miséria cotidiana.
É preciso que não transformemos as vítimas em responsáveis por sua própria desgraça. Cada moradia que veio abaixo, cada móvel e eletrodoméstico perdido, custou os esforços de muitos anos de trabalho duro, muitos sacrifícios. Se construíram suas casas naqueles lugares é porque são os únicos espaços para eles disponíveis. Os verdadeiros responsáveis são: o Estado, em todos os seus níveis, que não foi capaz de oferecer moradia condigna, uma política habitacional capaz de atender o histórico déficit de moradia para pessoas de baixa renda, com a maioria dos programas habitacionais privilegiando o lucro dos bancos e das construtoras, ao se voltarem para as camadas médias e privilegiadas da população e as elites territoriais desse país que sempre se opuseram de forma violenta a qualquer tentativa de reforma agrária ou de reforma urbana, que pudessem democratizar o acesso a terra e ao solo urbano.
A verdadeira responsável é a exclusão social e espacial que vitima negros, pardos e pobres na sociedade brasileira, fruto do racismo que se articula e reforça as hierarquias de classe, que se plasmam na profunda desigualdade quanto ao acesso a bens sociais como a terra e a moradia.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.