Na última sexta-feira, dia 13 de agosto de 2021, que para os supersticiosos seria dia de azar, Juazeiro do Norte teve a “sorte” de receber o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Como outros mandatários que já visitaram a cidade, ele foi comparado pelo ministro Rogério Marinho ao grande mito da cidade – afinal ele também é chamado de mito por seus apoiadores, por onde passa – o padre Cícero Romão Batista.
Segundo Marinho, tal como o patriarca do Juazeiro, Bolsonaro fez a opção preferencial pelos pobres; defende os valores da família; o valor da propriedade privada e da liberdade; defende a pátria; combate o comunismo. Bolsonaro erguendo uma imagem do padre considerado santo popular, presenteada pelo prefeito de Juazeiro do Norte, Glêdson Bezerra, voltou a afirmar sua identidade com o Padre Cícero, à medida que ambos seriam anticomunistas.
A fala de Rogério Marinho é um amontoado de enunciados clichês retirados de discursos de matrizes ideológicas conflitantes, pois o enunciado da opção preferencial pelos pobres advém da Teologia da Libertação, uma leitura do Evangelho considerada por setores da própria Igreja Católica como marxista, de esquerda, comunista, que foi colocado ao lado de enunciados clichês do discurso anticomunista como o da defesa da propriedade e da liberdade, o da defesa da pátria, o da defesa dos valores da família cristã.
O discurso anticomunista realmente foi partilhado pelo “santo do Juazeiro”, pois, assim como Bolsonaro e aqueles que estavam em seu palanque, Padre Cícero, embora fosse um mito popular, um homem venerado pelas pessoas mais pobres, era, não só, membro da Igreja Católica (embora tenha sido excomungado por ela por se aproximar em demasiado das crenças e práticas do catolicismo popular, se afastando das diretrizes de Roma), instituição que se colocou sempre contrária à maioria das ideologias surgidas na sociedade burguesa (liberalismo, socialismo, anarquismo, comunismo, trabalhismo), na sociedade moderna, pois elas ameaçavam o controle dos espíritos e mentes das pessoas que ela pretendia exercer; como também membro das elites brasileiras, que brandem o espantalho do comunismo, o perigo vermelho - quase sempre uma miragem sem qualquer base na realidade -, toda vez que querem impedir qualquer mudança no status quo, qualquer transformação social que venha lhes retirar privilégios, que venha favorecer uma melhor distribuição da riqueza no país, a melhoria das condições de vida da maior parte da população.
Mas Bolsonaro e Padre Cícero realmente se assemelham em outro aspecto, além no de serem pessoas reacionárias do ponto de vista dos valores e costumes, de partilharem um anticomunismo militante: ambos fizeram, e ainda faz, no caso de Bolsonaro, uso das crenças religiosas, da religiosidade popular para atingir postos de poder político. Tanto o Padre Cícero, no passado, como Bolsonaro e seus seguidores religiosos, no presente, foram e são ameaças a um pressuposto básico da República: a laicidade do Estado, do poder político.
Da mesma forma que o avanço dos Talibãs sobre o Estado afegão, a participação crescente de lideranças religiosas, o uso crescente de templos e igrejas como lugar de pregação e campanha política, a transformação de denominações religiosas em currais eleitorais, são uma ameaça às instituições republicanas e democráticas, que têm na laicidade do poder uma das conquistas feitas pelo avanço dos costumes políticos e pelo aprimoramento do Estado de direito.
O fundamentalismo religioso é, tanto no mundo mulçumano, como no mundo cristão, uma das grandes ameaças às liberdades democráticas, ao respeito à diversidade de crenças e maneiras de pensar e viver. A nomeação de um ministro para o Supremo Tribunal Federal tendo como critério não o seu saber jurídico e constitucional, mas o fato dele ser "terrivelmente evangélico" fere de morte a laicidade do Estado republicano e ameaça que se passe a decidir questões jurídicas não a partir das leis, mas de convicções religiosas.
Quando vemos pastores, como Silas Malafaia, convocar seguidores para fazer ataques a membros do Supremo Tribunal Federal, estamos sobre séria ameaça de ver as instituições democráticas serem destruídas e entregues ao fanatismo religioso, que não respeita oponentes e são capazes até de matar em nome de suas convicções tidas como divinas e, portanto, incontestáveis.
É preciso lembrar que o Padre Cícero Romão Batista, graças ao uso da popularidade que conquistou por obra do milagre que teria realizado (embora fosse com a beata Maria de Araújo que o milagre ocorrera, como mulher, não foi ela a se beneficiar do fenômeno), conseguiu tornar Juazeiro do Norte um município autônomo, separando-o do município do Crato, no ano de 1911, tornando-se o seu primeiro prefeito, por um partido cujo nome fala por si mesmo: Partido Republicano Conservador, ficando no cargo por um ano. Por esse mesmo partido se torna novamente prefeito da cidade em 1914 e a governa até 1927.
Esse mandato, conquistado nas eleições de 1912, foi, logo no início, contestado pela nova situação política no Estado, causada pela tomada do poder estadual pelo coronel do Exército Franco Rabelo, como consequência da chamada Política das Salvações, realizada pelo presidente também militar Hermes da Fonseca que, em luta política com o poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, resolveu favorecer politicamente as oligarquias minoritárias politicamente nos estados, notadamente no Nordeste, derrubando as oligarquias dominantes, como a Nogueira Acioly, no Ceará, à qual estava ligado o padre Cícero e seu principal aliado, o deputado federal Floro Bartolomeu, que se elegera recebendo os votos dos romeiros do Padre Cícero, que iam se instalando na nova cidade e na região do Cariri cearense.
Destituído do cargo de prefeito, Padre Cícero aliou-se a outros coronéis do Cariri, que eram correligionários dos Acioly, e liderou a chamada Sedição ou Revolta de Juazeiro. Em dezembro de 1913, os jagunços mobilizados pelos coronéis e os romeiros arregimentados pelos discursos inflamados do Padre Cícero contra Franco Rabelo e o presidente da República, tomam a cidade de Juazeiro do Norte, cavando então uma trincheira em torno de toda cidade. Enfrentam e vencem as tropas enviadas para conter a rebelião, tomam e saqueiam cidades no interior do Estado para conseguirem armas e comida e, finalmente, em março de 1914, chegam a Fortaleza. Franco Rabelo termina por ser afastado pelo próprio Hermes da Fonseca, e os Acioly retomam o controle político do estado e Padre Cícero assume a prefeitura de Juazeiro, no dia 15 desse mês, onde ficará por treze anos ininterruptos.
Bolsonaro chegou ao poder também explorando a religiosidade popular e os preconceitos e intolerâncias que elas tendem a disseminar. Uma pessoa fundamentalista e religiosa tende a acreditar em verdades absolutas, tende a ter dificuldade em conviver com o contraditório, com ideias e formas de vida diferentes, inclusive com outras crenças religiosas.
Um homem que contraria todos os valores cristãos, todos os dias e ao longo da sua vida, dizer que partilha dos mesmos valores do Padre Cícero, em termos estritamente religiosos é uma aberração, embora eles estejam próximos no uso da credulidade popular para conseguirem poder político, para defenderem pautas conservadoras e reacionárias. Se o Padre Cícero usou a força da religião para colocar os pobres para lutar numa revolta que só beneficiou aos coronéis, as oligarquias, inclusive a si mesmo; Bolsonaro usou e continua usando a credulidade popular, inclusive suas carências materiais, afetivas, emocionais, de que também sempre fazem uso as religiões, para tentar se passar por um homem humilde e popular, um homem cristão e temente a Deus, um enviado com uma missão divina.
Assim como o Padre Cícero acreditava ter recebido uma missão especial de Deus, a eleição de Bolsonaro, em 2018, principalmente depois de “escapar da facada”, foi tomada como o cumprimento de dadas profecias que circulavam em meios evangélicos. Em uma República precisamos de cidadãos, não de mitos, profetas, patriarcas, padroeiros ou santos.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.