Sem espaço no mercado formal, mães recorrem ao empreendedorismo como fonte alternativa de renda

Enfrentando dificuldades para permanecer no mercado formal após a maternidade, mães decidem criar negócios no Ceará

A partir do momento em que começam a gerar vida, as mulheres se transformam diante dos olhos da sociedade. Vistas como independentes e produtivas, elas começam a ser lidas como extensões de outros seres humanos, como se, em uma questão de meses, sua única utilidade se tornasse exercer o papel de mãe.

No mercado de trabalho, profissionais anteriormente descritas de forma positiva, como eficazes e comprometidas, começam a ser rotuladas como improdutivas e indisponíveis, transformando uma fase que deveria ser especial em momentos de insegurança e apreensão.

A situação piora quando a mulher precisa retornar ao ambiente de trabalho após a licença-maternidade, tendo que enfrentar cenários de descredibilização profissional, como explicou ao Diário do Nordeste Juliane Ciríaco, doutora em economia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em mercado de trabalho.

“Depois de se tornarem mães, as mulheres enfrentam uma série de desafios expressivos ao retornar ao mercado de trabalho. Além das questões óbvias ligadas ao equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, é comum muitas delas se depararem com problemas associados a discriminação e estigma no ambiente profissional”, afirmou a economista.

Desvalorização no mercado de trabalho

A fala da especialista foi sentida por Tayele de Lima, de 29 anos. Moradora do Parque Santana, na região do Grande Mondubim, em Fortaleza, ela atuava, de carteira assinada, como modelista em uma fábrica de roupas, onde se sentia valorizada profissionalmente. A percepção mudou quando Tayele voltou à empresa, após o período de licença, e descobriu que havia sido substituída

Quando eu fui tirar minha licença-maternidade, ficou uma pessoa no meu lugar, para me substituir enquanto eu estava fora, fazendo a minha função. Mas, quando eu voltei, essa pessoa continuou no meu lugar e eu não pude mais ocupar o meu cargo. Eu fiquei em outro local, com a função de acabamento, como auxiliar, e [antes] eu era a modelista do lugar. Eu senti que isso era uma forma de querer me colocar para escanteio, isso mexeu comigo demais”, relatou ela. 

Além de sofrer com a desvalorização, a modelista ainda precisou enfrentar a repreensão dos superiores durante momentos em que teve de equilibrar os papeis de funcionária e mãe.

“Quando a criança é pequena, ela ainda não tem muita imunidade, né? Aí ele [o filho] adoecia e eu tinha que ficar alguns dias com ele. E a gente percebe que os patrões não querem entender [a situação]. Tem essa cobrança”, explicou.

O desafio aumentou após Tayele perder a mãe, que a ajudava nos cuidados com o filho de 6 anos, em novembro do ano passado. Sem conseguir conciliar a área profissional e a materna, ela abdicou da carreira na produção de roupas e decidiu recorrer ao empreendedorismo.

Empreendedorismo como fonte alternativa de renda

Sentindo-se perdida no início da nova empreitada, a modelista encontrou apoio no Movimento Orquídeas. Criada em 2010, a iniciativa é formada por mulheres da região do Grande Mondubim, e tem, como principais objetivos, combater a violência contra a mulher e estimular a autonomia financeira de moradoras da localidade através do empreendedorismo.

“A gente trabalha muito essa questão [do empreendedorismo] para elas entenderem que a economia não só é aquela economia formal, que a gente também pode agregar dentro da economia solidária”, afirmou Silvânia Vieira, líder comunitária e uma das mulheres à frente do movimento.

Entre as ações promovidas pela iniciativa, está a formação “Incubadora de Gigantes”, que atende cerca de 45 mulheres e realiza oficinas e capacitações relacionadas ao mundo profissional. “A gente tem aulas específicas onlines e presenciais. Nessas aulas, a gente fala sobre gestão de trabalho, carreira, direitos da mulher e empreendedorismo”, explicou a moradora Airla Vieira, coordenadora do projeto.

Aprendendo noções de administração e negócios durante o curso, Tayele começou a vender dindins gourmet, negócio que se tornou sua principal fonte de renda: “Surgiu essa ideia de fazer dindim gourmet [...] e, graças a Deus, tem dado muito certo. Hoje em dia, é a maior parte da minha renda, eu até faço algumas modelagens em casa, mas não é a minha renda principal”.

Além da modelista, a dona de casa Angélica Barros utilizou os conhecimentos adquiridos na formação para montar um negócio no setor de alimentação. A moradora casou muito cedo e deixou os estudos de lado para se dedicar ao cuidado da filha, o que dificultou a conquista de uma vaga no mercado formal

“Eu nunca consegui realmente entrar no mercado de trabalho. Ainda fui atrás [de uma vaga] algumas vezes, mas muitas empresas não aceitam pessoas que têm filhos pequenos, né? Então, esse foi o maior motivo para eu entrar na área de doces e salgados”, relatou.

Apesar da venda das iguarias não ter assumido o posto de principal renda da casa, o negócio permitiu que Angélica conquistasse certa independência financeira, sem ter que depender totalmente dos rendimentos do esposo. 

O desejo de possuir autonomia também incentivou a jovem Vanessa Cassiano, de 21 anos, a frequentar as formações do Incubadora de Gigantes: “Graças a Deus, o pai dele dá tudo a ele [o filho], mas eu quero ter o meu, entendeu? Eu não gosto daquele negócio de ‘ah, tem que pagar isso’, ‘ah, manda dinheiro para aquilo”.

Mãe, esteticista e estudante de Administração Pública, a coordenadora Airla Vieira reforçou a importância do projeto na vida dessas mães.

“Voltar para o mercado de trabalho após ser mãe foi uma coisa muito árdua para mim, esse reestruturar da minha vida após a maternidade. E uma coisa que a gente vê aqui das meninas que estão no curso é que [assim como eu] muitas, após a maternidade, também estão reformulando a vida, e o curso é um pontapé inicial para elas poderem fazer essa reformulação”, ressaltou ela.

Iniciativas de empreendedorismo feminino no Ceará

Be.Labs

Fora de Fortaleza, outra iniciativa focada em empreendedorismo feminino tem  ajudado mulheres a conquistarem independência financeira em todo o Nordeste. Fundada pelos empreendedores Marcela e Christian Fujiy, a Be.Labs é uma empresa aceleradora de negócios geridos por mulheres, que promove a equidade de gênero e de poder econômico.

“Eu sempre falo que não é uma questão de ‘ah, se você é a favor ou contra o empreendedorismo’, ele existe e é muito necessário para o desenvolvimento econômico”, afirmou Marcela.

Na iniciativa, empreendedoras participam de encontros coletivos durante 10 semanas, com direito a quatro mentorias individuais. Parte da chamada “Metodologia Furacão”, as atividades abordam tópicos como planos de negócio, marketing e conhecimentos jurídicos, além de incentivarem discussões sobre empatia e sororidade. 

Da criação do projeto, em 2018, até abril de 2024, a iniciativa prestou consultoria a cerca de 2.500 negócios femininos em toda região nordestina. No Ceará, até novembro do ano passado, pelo menos, 260 empreendedoras foram impactadas pela empresa.

“Eu tenho o privilégio de transformar a vida de milhares de mulheres, mas não é fácil, é muito difícil, na verdade. A gente precisa sempre de parceiros para subsidiar os programas, porque essa mulher não tira do bolso para poder se capacitar, né? Muitas delas estão vendendo o almoço para pagar o jantar. Então, para mim, é uma honra imensa poder lidar com tantas mulheres e transformar a vida de tantas pessoas”, declarou a fundadora.

Em território cearense, as atividades são realizadas em esquema híbrido e de forma gratuita. Segundo Marcela, a Be.Labs realizará formações presenciais nas cidades de Juazeiro do Norte, Camocim, Quixeramobim e Sobral ainda neste ano, em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Sebrae Delas

As atividades da Metodologia Furacão fazem parte das trilhas de capacitação femininas desenvolvidas no território cearense pelo projeto Sebrae Delas, gerido pela entidade. A iniciativa promove a aceleração de negócios administrados por mulheres a partir de cursos, oficinas, feiras e conteúdos virtuais.

De acordo com Mônica Arruda, coordenadora estadual da iniciativa, a previsão é que cerca de 3 mil mulheres sejam atendidas em ações do projeto.

“No perfil dessas mulheres empreendedoras, existe o público de mulheres que buscam empreender após a maternidade porque, algumas vezes, não conseguem conciliar trabalho com o cuidado da família e a opção de empreender, sobretudo com as novas formas de vendas digitais torna-se uma possibilidade de geração de renda”, relatou a gestora.

Ambientes inclusivos para mães no mercado formal

Apesar do empreendedorismo servir como uma fonte de renda para mães, é necessário combater a desvalorização dessas mulheres no mercado formal, já que a descredibilização dessas profissionais fortalece outras desigualdades de gênero no setor, de acordo com a especialista Juliane Ciríaco.

Mulheres com filhos muitas vezes enfrentam disparidades salariais significativas em comparação com colegas homens e mulheres sem filhos, mesmo com qualificações e experiências semelhantes em uma mesma empresa. Essa disparidade salarial é muitas vezes justificada por estereótipos de gênero, como a suposição de que as mães são menos comprometidas ou disponíveis para o trabalho devido às responsabilidades familiares”, explicou a economista.

Em entrevista para o Diário do Nordeste, o secretário de Trabalho do Ceará, Vladyson Viana, reforçou o pensamento, destacando a importância do retorno dessas mulheres para o mercado formal: “O ideal é que ela retorne a sua atividade de trabalho. Essa mulher tem uma capacidade produtiva, ela tem uma referência profissional, então, [o retorno] é a primeira coisa que estimulamos”.

O secretário ainda pontuou o desenvolvimento de ambientes profissionais mais acolhedores para mulheres com filhos como uma forma de combater a desvalorização dessas funcionárias, citando a criação de locais para amamentação e creches nas empresas como medidas que podem proporcionar maior bem-estar a essas profissionais.

“Esse papel assistencial é fundamental para que a mulher, essa profissional que já contribuiu com a empresa, que tem uma trajetória da empresa, que tem um local naquela empresa, continue exercendo a sua profissão”, afirmou.

Incentivar a criação de ações acolhedoras para mães é justamente um dos objetivos da Think Eva, consultoria especializada em equidade de gênero no mercado corporativo, que promove ações relacionadas à parentalidade em empresas.

“A Think Eva ajuda nas reflexões e nas estruturações de políticas em torno de espaços de amamentação, creches ou outros tipos de benefícios que a empresa possa vir a oferecer para os seus colaboradores e colaboradoras”, explicou a assessoria do projeto ao Diário do Nordeste.

A iniciativa ainda levanta discussões, dentro dos empreendimentos, sobre a importância de apoiar funcionários que sejam mães solo e garantir a segurança profissional das mulheres no retorno ao trabalho após a licença-maternidade.

Outra consultoria que estimula a criação de ambientes de bem-estar para pais e mães em empresas é a Filhos no Currículo. A iniciativa é especialista em construir programas de parentalidade corporativos, através de políticas internas inclusivas para funcionários que precisam conciliar vida profissional e familiar.

Fundada pela especialista em equidade de gênero Michelle Terni e pela especialista em parentalidade Camila Antunes, a iniciativa realiza ações relacionadas à inteligência emocional, equidade de gênero e parentalidade.

* Estagiária sob supervisão de Hugo R. Nascimento