“Sou mãe, enfermeira, professora e cozinheira, sem falar na limpeza, organização e no lazer das crianças”. As tarefas listadas pela cearense Débora Gonçalves, de 25 anos, ilustram a rotina de muitas mulheres. Não à toa, esse acúmulo de funções atribuídas a elas equivale a 11% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
O percentual foi calculado pela organização não governamental Think Olga. Apesar dessa importante contribuição econômica, donas de casa como a Débora não são remuneradas pelo trabalho de cuidado no Brasil.
Todos os dias, meninas e mulheres dedicam 12,5 bilhões de horas a essas múltiplas atividades, gerando contribuição de, pelo menos, US$ 10,8 trilhões por ano à economia global, segundo o comitê de Oxford para o Alívio da Fome (Oxfam Brasil).
Essa sobrecarga de afazeres pode interromper a trajetória delas no mercado de trabalho, agravando a desigualdade de gênero.
“O trabalho do cuidado não remunerado gera três vezes mais do que o valor global da indústria de tecnologia. Estamos falando sobre dinheiro, mas quem paga essa conta novamente são as mulheres e as negras pagam mais”, avalia a coordenadora de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil, Tauá Pires.
Mas como essa demanda se relaciona com a tributação, tema dessa reportagem especial? Tauá explica que um conjunto de medidas fiscais deve considerá-la para a efetivação de políticas públicas de gênero e cor ou raça.
Um exemplo, aponta, é o Bolsa Família, programa já pensado para transferir os recursos, prioritariamente, para mulheres.
“É o estado as reconhecendo como chefes de família e que o planejamento financeiro familiar é de responsabilidade delas. Então, tudo que acontece na renda e na tributação da mulher aperta para as crianças e para as famílias como um todo. Quando ela recebe o recurso, maior parte vai para a alimentação, medicamento.”, observa.
Portanto, considerar essas questões ajuda a elaborar políticas fiscais para compensar a atávica divisão sexual do trabalho doméstico na atualidade e também reparar a contribuição não remunerada de gerações de mães e avós, as quais dedicaram a vida aos outros.
Dentre as medidas, estariam incentivos para empresas empregarem mais essas chefes de famílias, investimento em creches, lavanderias públicas e aposentadoria especial.
No Brasil, as donas de casa podem contribuir voluntariamente para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas muitas não têm informações suficientes e/ou condições financeiras para isso. Essas mulheres acabam ficando desprotegidas financeiramente quando chegam na terceira idade.
Na Argentina, essa realidade mudou em 2021, quando o país reconheceu a dedicação das mães com seus filhos como tempo de serviço para ter direito à aposentadoria.
Tuá Pires lembra sobre essas tarefas recaírem sobre as pessoas do gênero feminino como se fosse algo natural. “O estado precisa pensar mais como política pública e menos como algo do papel da mulher na sociedade, porque isso a gente sabe que não existe. O cuidado precisa ser trazido para o estado como um tema econômico”, enfatiza.
A doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora do Grupo de Tributação e Gênero da FGV/SP, Anna Priscylla Prado, acrescenta já haver uma discussão sobre os critérios econômicos e sociais para remunerar essas mulheres.
“Quem sabe a partir de um crédito fiscal, mas isso ainda está em investigação no nosso grupo de pesquisa”, sugere. Dentre as possibilidades estudadas, está seguir o exemplo da Argentina.
Prado lembra ser necessário cautela para não incentivar o trabalho doméstico, mas também garantir a liberdade de escolha da população feminina. Contudo, é preciso compensar as mulheres que precisam ficar em casa cuidando da família, além discutir sobre a divisão sexual dessa responsabilidade na sociedade.
“O trabalho doméstico é trabalho. Não é amor. Estamos cansadas. As mulheres ganham menos e trabalham mais nessa terceira jornada invisibilizada e desvalorizada, além de pagarem mais no Imposto de Renda, por exemplo”, frisa.
A precarização do ofício remunerado também entra no bojo. A legislação que regulamenta os direitos das empregadas domésticas possui 10 anos, mas ainda há muita exploração dessa categoria, composta por uma maioria negra.
Segundo a Oxfam Brasil, apenas 10% dessas profissionais estão protegidas por leis trabalhistas gerais como as demais áreas. Além disso, muitas ainda são obrigadas a permanecer na labuta, sem controle da carga horária.
Estima-se que US$ 8 bilhões sejam tirados todos os anos dessa 3,4 milhões de trabalhadoras em situação de trabalho forçado no mundo, totalizando 60% dos seus salários devidos.
Planos adiados
Mãe de quatro filhos, a dona de casa Débora Gonçalves, de 25 anos, citada no início dessa reportagem, foi mãe pela primeira vez aos 18 anos, logo após concluir o Ensino Médio. O tempo tomado pela maternidade e pelos afazeres domésticos a fez adiar os planos de entrar em uma universidade.
“Pegou-me de surpresa e não consegui ir para o mercado. Tive de optar ficar cuidando dos filhos e da casa, já que não consigo um emprego fora devido à demanda de horários e cuidados com as crianças. Elas precisam de atenção, adoecem”, lista.
Além das funções domésticas, quando pode, a jovem auxilia o marido, vendedor autônomo, com atendimentos de clientes e nas redes sociais.
Ela, que acompanhou a avó voltar a trabalhar somente após cuidar dos filhos, deve seguir o mesmo caminho. “Hoje, vejo que poderei voltar a estudar no futuro, quando eles crescerem um pouco mais”, projeta, informando ter planos de cursar Educação Física.
Débora lamenta não ter alguma segurança previdênciária até conseguir a reinserção no mercado de trabalho. “Se nós, donas de casa, ficamos doentes ou temos um acidente, ficamos à mercê de Deus, a não ser quem consegue pagar a previdência”, diz.
Atualmente, só tem direito à aposentadoria do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) as donas de casa que contribuem com 5% do salário mínimo (R$ 1.212), ou seja, R$ 65,10. Para se aposentar por idade (mínima de 62), é necessário contribuir por, pelo menos, 15 anos.
E a reforma tributária?
Nos três primeiros episódios desta reportagem, o Diário do Nordeste mostrou como as mulheres são proporcionalmente mais oneradas do que os homens, provocando a corrosão de seus rendimentos já minguados. Corrigir essa distorção é um dos caminhos para a igualdade de renda no País.
Neste 4º e último episódio, falamos sobre a importância de repensar o sistema tributário para direcionar os recursos arrecadados de maneira mais justa a políticas públicas contra as desigualdades de gênero e cor ou raça.
Todavia, mudar essas realidades depende de articulação no Congresso, hoje formado majoritariamente por homens brancos. Apesar de avanços na composição das bancadas, hoje, apenas 17% das cadeiras da Câmara dos Deputado e do Senado são ocupadas por mulheres.
Mas a reforma tributária já está na pauta. Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pode sair do papel ainda no 1º semestre deste ano. Até o momento, não foi apresentado um desenho oficial. Dentre as propostas mais discutidas (PEC 45/2019 e a PEC 110/2019), nenhuma contempla perspectiva de gênero e cor ou raça.
A coordenadora de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil, Tauá Pires, salienta ser crucial ter cautela nesse redesenho. “Não é um tema novo, mas agora veio com mais força e o que temos ouvido do governo é uma fala de que o Brasil precisa de uma política fiscal mais ágil, simples e eficiente”, contextualiza.
“Na contramão, a discussão feita pelas organizações e pela sociedade civil é de uma reforma mais justa, solidária e sustentável. Uma grande preocupação é onde ficam as mulheres e a população negra dentro dessa nova reforma tributária”, questiona.
A economista e CEO da "NoFront - Empoderamento Financeiro", Gabriela Chaves, pondera, contudo, que a reorganização fiscal é um processo complexo e ainda não há um texto inicial para ser debatido.
“Tentar consertar o modelo tributário existente significa amarrar um monte de pontas soltas. Precisamos pensar num novo modelo, mas isso também envolve uma articulação e um debate com toda a sociedade civil. Há muitos setores e muitos interesses a serem representados”, reflete.
Gabriela destaca, porém, ser evidente a necessidade corrigir a regressividade para não penalizar os mais pobres.
“Mudar o padrão para uma tributação pela renda e não pelo consumo não vai reduzir o valor dos cofres públicos. Pelo contrário, a ideia é ter, inclusive, o maior benefício social”, sublinha, ponderando a importância de ações coordenadas para evitar a fuga de capitais.
Consciência e educação fiscal também são parte desse processo
Ao longo dessa reportagem, o Diário do Nordeste apontou os problemas do sistema atual e alguns caminhos para reparar as injustiças tributárias contra as mulheres brasileiras. Mas a sociedade também tem um papel importante nesse processo.
Debater sobre essa estrutura e buscar formas de mudá-la exige consciência fiscal para compreender que pagamento de impostos segue inegociável diante da sua função social, conforme especialistas.
O questionamento levantado até aqui não foi sobre deixar de pagá-los, mas como distribuir essa carga tributária de maneira justa, considerando a complexa realidade do Brasil.
Afinal, é a arrecadação desses tributos que garantirá caixa para investimentos em áreas prioritárias, como saúde, educação e a luta pela igualdade racial e de gênero. Para isso, cidadãs e cidadãos também devem acompanhar e fiscalizar a aplicação dos valores arrecadados.
Veja o resumo das medidas consideradas fundamentais para mudar essa realidade
Isenção de tributos federais (PIS/COFINS e IPI)
- Absorventes íntimos e assemelhados;
- Fraldas, infantis e geriátricas;
- Anticoncepcionais e medicação hormonal utilizada no tratamento de menopausa ou redesignação sexual.
Políticas tributárias voltadas a trabalhadores e trabalhadoras domésticas
Retorno da dedução do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física dos valores referentes à contribuição previdenciária paga aos trabalhadores e trabalhadoras domésticas, como forma de estimular a formalização desses postos de trabalho, ao lado da criação de um benefício direto à categoria.
Contratação de mulheres chefes de família e cargos de gestão para as mulheres
- Medidas que incentivem a contratação dessas trabalhadoras e sua inserção ou reinserção no mercado de trabalho, assim como a garantia de iguais remunerações entre homens e mulheres;
- Criação de incentivos fiscais no âmbito do imposto de renda da pessoa jurídica para as empresas que tiverem, em seus quadros, pelo menos 30% de mulheres e que mantenham ao menos 40% de mulheres nos últimos três níveis mais altos de cargos da empresa, ou equivalente, como diretoras ou gerentes;
- Contratação de mais de 25% de mulheres negras;
- Contratação de mulheres vítimas de violência;
- Criação de programas nacionais específicos com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de projetos de afroempreendedorismo feminino, incluindo linha de crédito diferenciada, com subsídios governamentais, desoneração de carga tributária e o oferecimento de cursos de planejamento e gestão direcionados para o afroempreendedorismo.