Como a produção de hidrogênio verde no Ceará pode contribuir para o desenvolvimento da aviação

Projetos que pesquisam a aplicação da tecnologia na aviação planejam lançar aviões movidos a hidrogênio verde até 2035

O Ceará está no caminho para se tornar um dos maiores produtores mundiais de hidrogênio verde (H2V), já tendo 24 memorandos de entendimento assinados com investidores. Essa produção no Estado pode servir de insumo para a descarbonização do setor aéreo, que estuda projetos para a utilização do H2V em substituição do querosene de aviação (QAV). 

A mudança do combustível é interessante para a aviação no contexto das metas mundiais de descarbonização. De acordo com cálculos da Airbus - fabricante europeia de aeronaves -, o hidrogênio verde tem potencial de diminuir em pelo menos 50% as emissões de gás carbônico na aviação.   

Além disso, o hidrogênio verde tem a vantagem de um poder calorífico maior por quilo, o que em tese faria com que as aeronaves pudessem transportar mais passageiros no lugar da carga de QAV que precisa ser carregada hoje. A aplicação na prática, contudo, esbarra em mudanças logísticas e tecnológicas que ainda precisam ocorrer.  

Empresas do setor já estão realizando pesquisas e testes para a utilização do H2V na aviação. A Airbus pretende lançar até 2035 a primeira aeronave comercial movida 100% a hidrogênio verde.  

Hidrogênio verde na aviação 

O hidrogênio verde pode ser utilizado de três formas na aviação: como combustível direto para queima, como célula de combustível para produzir eletricidade e de forma indireta, na produção de combustíveis sustentáveis, os SAF (Combustível Sustentável de Aviação, na tradução da sigla). 

A utilização do H2V para combustão encontra como obstáculo o transporte da substância em forma líquida. De acordo com a professora de engenharia química da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria Valderez Ponte Rocha, o hidrogênio verde precisa estar em baixíssimas temperaturas e sob uma alta pressão para estar líquido.  

No caso do hidrogênio, o grande gargalo é o armazenamento. Ele é gás em temperatura ambiente, então para poder ser utilizado como combustível é interessante que ele esteja líquido. Para deixá-lo como líquido, precisa de alta pressão e baixas temperaturas, abaixo de 250ºC. Vai precisar de um tanque adequado”.
Maria Valderez Ponte Rocha
Professora de engenharia química da UFC

Outra linha de pesquisa pretende utilizar o hidrogênio verde em células de combustível para gerar eletricidade, que será usada nos motores do avião, por meio de propulsão elétrica. Nesse caso, o H2V poderia ser utilizado em forma gasosa.  

Nesses dois casos, será necessária uma adaptação no visual dos aviões hoje existentes, até para proporcionar uma maior segurança no transporte do hidrogênio verde. No caso da utilização do H2V para a produção de SAFs, a estrutura dos aviões atuais poderia ser mantida. 

Para consultor de energia da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Jurandir Picanço, essa deve ser a utilização mais rápida da tecnologia na aviação. 

“Já tem empresas que estão utilizando combustível de baixo carbono, mas o processo tecnológico não é a partir do hidrogênio verde, é através de óleos vegetais e gordura animal. Do hidrogênio verde em si ainda está em desenvolvimento. Se tem a expectativa que a opção com hidrogênio verde seja melhor e mais competitiva, mas ainda está em desenvolvimento”, diz.  

Algumas aeronaves já estão utilizando SAFs de forma integral. A Boeing, fabricante norte-americana de aeronaves, planeja que todos os aviões comerciais da empresa serão capazes e certificados para voar com combustíveis de aviação 100% sustentáveis até 2030. 

Em nota, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) reiterou que iniciativas sustentáveis, como a produção H2V e SAFs, são essenciais para contribuir com a transição energética na aviação. 

“A produção de H2V, mesmo embrionária no país, terá papel importante para vários setores produtivos. O Brasil possui grande potencial para liderar o desenvolvimento de biocombustíveis devido à facilidade de acesso a diferentes matérias primas e ao aumento da demanda por todos os países, podendo assumir a liderança global na produção do SAF em larga escala”, considera.  

Vantagens do hidrogênio verde 

Durante a queima do querosene de aviação, é emitido CO2 na atmosfera. O hidrogênio, por outro lado, libera apenas vapor de água no seu processo de combustão.  

É por isso que o H2V é visto como um potencial aliado para a descarbonização do setor aéreo. Mas, para além do viés sustentável, o combustível também pode ser mais rentável que o querosene de aviação. 

O poder calorífico inferior do hidrogênio verde é de 120 kJ/kg, o que indica o tanto de energia que pode ser gerada por quilo da substância na combustão. Enquanto isso, o mínimo que exigido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para o QAV é 42,8 kJ/kg, quase um terço do potencial do H2V. 

O engenheiro aeronáutico especialista em controles de voo fly-by-wire e voo autônomo, Lucas Fontoura, relaciona que na troca do querosene pelo hidrogênio verde seria necessário carregar três vezes menos combustível na aeronave, o que traria ganhos de eficiência no transporte de pessoas e cargas.

“Porém, o volume desse combustível, embora mais leve, seria 4 vezes maior para o hidrogênio líquido ou 50 vezes maior considerando o estado gasoso. Hoje os jatos de linha aérea levam o combustível no interior das asas, o volume é limitado ao volume das asas. Então, usando um projeto de avião parecido com os atuais, teríamos provavelmente um alcance menor, mas não poluente”, coloca.  

Ele explica que para conter o volume de hidrogênio verde as empresas terão ou que fazer design de aviões maiores – ainda que menos pesados – ou manter o mesmo tamanho transportando menos combustível, focando em voos regionais.  

Segundo ele, contudo, essas inovações ainda devem demorar para chegar no setor aéreo. 

A aviação é um meio realmente meio lento de evolução, como tem muitos processos de certificação para manter a aviação segura, a evolução tecnológica é mais lenta que em outros setores. Mas ela tem muito a se beneficiar do hidrogênio pela densidade energética, como eu disse, eu acho que ele vai acabar permitindo modais diferentes de projetos, como aeronaves menores que jatos regionais, mas maiores que as que levam só quatro pessoas”.
Lucas Fontoura
Engenheiro aeronáutico

Potencial do Ceará 

Um desafio apontado pelas empresas de aviação para substituir o querosene pelo hidrogênio verde é o custo. Como a produção do H2V no mundo ainda é muito inicial, a substância ainda é cara e pouco disponível. 

O hidrogênio verde é nada mais que o hidrogênio obtido por meio de fontes de energia limpa, como a eólica e a solar. E o Ceará tem potencial de sobra na produção desse tipo de energia, com fortes ventos e sol quase o ano inteiro. 

“São poucos lugares no mundo que têm uma geração boa de energia elétrica e potencial de gerar energia limpa e, portanto, hidrogênio verde. E o Ceará é um deles, então como tem muita energia eólica e solar, é um lugar interessante de se gerar hidrogênio”, afirma Lucas Fontoura. 

A expectativa é que o hidrogênio verde gerado no Estado seja competitivo, chegando a ser um dos mais baratos do mundo. Diante disso, Jurandir Picanço acredita que o Ceará possa inclusive atrair indústrias para a produção de SAFs. 

“Como o Ceará vai produzir, segundo a expectativa, o hidrogênio mais barato do mundo, há um interesse de se produzir aqui esse combustível que poderia ser transportado até para outras regiões, porque vai ser um combustível líquido, de fácil transporte”, destaca. 

Produção cearense 

O Ceará já começou a produzir hidrogênio verde. A primeira molécula da substância foi gerada em dezembro do ano passado em uma planta da EDP, no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), em São Gonçalo do Amarante. O projeto inaugurado em janeiro deste ano já está em plena operação, com capacidade para produzir 250 Nm3/h do gás, sendo o mais avançado até o momento no Estado. 

De acordo com a EDP, o objetivo agora é aprimorar o processo de geração, avaliar modelos de negócio, expandir a produção e estabelecer parcerias estratégicas com diferentes segmentos da indústria que podem utilizar o gás, além de contribuir para viabilizar a regulamentação do mercado no país. A previsão de conclusão do projeto é junho de 2024. 

Além da EDP, a Fortescue já enviou para o governo do Estado os estudos de impacto ambiental para a implantação de uma planta de hidrogênio verde. Em pleno funcionamento, a usina terá capacidade de produzir quase 5 mil toneladas/dia de amônia verde, e 837 toneladas/dia de hidrogênio verde.  

A expectativa inicial é de que as obras se iniciem em 2025, com duração de 48 meses.