Políticas públicas são, em resumo, o que garante os direitos dos cidadãos na prática. Para serem eficazes, é preciso que se conheça a realidade – sobretudo das “minorias”, como negros, pessoas com deficiência, em situação de rua e LGBTI+. Sem dados, isso não é possível.
Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste são unânimes: se não houver levantamentos oficiais e atualizados, essas populações se tornam invisíveis, e os direitos previstos na Constituição Federal não as alcançam. O problema, porém, é crônico: o País sucumbe a uma defasagem de números em várias áreas.
Um exemplo é a contagem do número de pessoas em situação de rua em Fortaleza: o único censo sobre o assunto data de 2014. Sete anos depois, o segundo estudo foi elaborado, mas ainda aguarda audiência pública para divulgação.
A pesquisadora Verônica Ximenes, professora e coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), é categórica ao definir os impactos da subnotificação: “se um grupo ou problema social não tem dados, ele é invisível às políticas públicas.”
A demanda em relação às pessoas em situação de rua, aliás, é histórica: o Censo oficial da população brasileira, a ser feito pelo IBGE em 2022, deveria incluí-las, mas isso não será concretizado. “Aí os municípios precisam separar recursos próprios para fazer”, pontua Verônica.
O problema se repete em todas as regiões do País, segundo a pesquisadora. Ela cita que capitais como Teresina, São Paulo e Belo Horizonte possuem levantamentos oficiais atualizados, mas em Florianópolis e Curitiba, por exemplo, a contagem das pessoas que vivem nas ruas foi produzida por ONGs.
Ter dados não é a solução, mas é um instrumento para questionar por que não há políticas públicas para uma população que só vem aumentando – principalmente depois da pandemia.
“Não podemos pensar políticas baseadas em suposições”
Outro grupo cujos levantamentos oficiais têm sido ampliados, nos últimos anos, é a população LGBTI+. Silvia Cavalleire, coordenadora do Centro Estadual de Referência LGBT Thina Rodrigues, recém-inaugurado, traduz a necessidade de diagnósticos quantitativos e qualitativos das realidades de minorias.
“É exatamente para que nós tenhamos parâmetros para elaborar as políticas públicas com mais precisão, porque não podemos pensá-las baseados em suposições. Essa construção perpassa debates históricos, culturais e aspectos sociais que nos ajudam a formular com base nos dados”, afirma.
A Secretaria de Proteção Social do Ceará (SPS), aliás, está realizando a primeira Pesquisa Estadual sobre a população LGBT+, para "conhecê-la, atualizar contatos e fomentar a construção de uma grande rede de apoio". Para participar, basta preencher um formulário online. Os resultados devem ser divulgados em junho de 2022.
Silvia destaca que as demandas das pessoas LGBTI+ já são apresentadas ao setor público “há muito tempo, mas eram esquecidas”; daí a importância da criação de órgãos e serviços especializados, que produzam informação e abracem as solicitações com o olhar adequado.
Hoje, porém, os dados que mais repercutem em relação a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e pessoas de outras sexualidades e identidades de gênero, e que sempre estão atuais, são os de violência – sobretudo as mortes.
Dados não rompem preconceito
Mais de 17,3 milhões de brasileiros tinham algum tipo de deficiência, em 2019, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Do total, cerca de 60% eram mulheres. São os números oficiais mais atualizados sobre pessoas com deficiência (PCD) no Brasil.
Os dados mais robustos sobre esse grupo vieram no Censo de 2010, “embora muito falhos”, como relembra Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa da PCD da OAB/CE e coordenador municipal da PCD da Prefeitura de Fortaleza.
O impacto na ausência de levantamentos precisos é direto, porque para que se formule políticas de educação inclusiva, de saúde e de assistência social, é preciso um número. PCD e demais minorias lutam contra a invisibilidade.
Emerson aponta que, apesar da adoção de um método controverso, o censo do IBGE mostrou que “pessoas com deficiência representavam um número muito maior que o estimado”. O Ceará, aliás, por meio da Secretaria da Saúde (Sesa), está realizando um censo próprio sobre PCD, que deve ser concretizado em 2022.
Apesar da importância, estatísticas não são suficientes para garantir direitos: romper o preconceito ainda é necessidade básica. “O capacitismo estrutural no Brasil é talvez a forma mais importante de irmos além dos dados. Embora a gente vá ganhando números mais precisos, a sociedade é responsável pela eliminação dessas barreiras”, sentencia Emerson.
Para muitos, o respaldo para falar do óbvio e do básico vem justamente dos números. São os dígitos que provam que no Ceará tem, sim, gente negra. Mais de 70% da população é preta ou parda. Cai o discurso da invisibilidade, como observa Zelma Madeira, socióloga, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e colunista do Diário do Nordeste.
Para a população negra do Brasil e do Ceará, ela pontua, são os mapeamentos sobre a própria existência que impõem a demanda por políticas afirmativas, de equidade. “Em 2000, éramos só 2% dos estudantes dentro da universidade. Aí propusemos a Lei de Cotas”, exemplifica.
O que vale não são só os dados: eles servem para iluminar. Não é só constatar que temos desemprego e analfabetismo maiores entre os negros. Há que se ter uma dimensão propositiva. E aí é preciso haver vontade política.
A pesquisadora cita ainda como exemplo o mapeamento das comunidades quilombolas do Ceará, realizado em 2018, que identificou mais de 80 delas.
No Ceará, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE) realiza o 1° Censo Étnico-Racial da Advocacia Cearense. O objetivo é "coletar informações acerca do perfil da advocacia negra cearense e subsidiar estatisticamente ações práticas para a redução da desigualdade racial".
Para participar da pesquisa, disponível em formulário online, é preciso ser advogado ou advogada com inscrição na OAB/CE.
Como ir além dos dados?
A reportagem fez o mesmo questionamento a todos os entrevistados: números são importantes, sim, mas como ir além deles? O que é preciso fazer para traduzi-los em transformações concretas?
Dados precisam se transformar em ações, e elas têm de envolver várias políticas e instituições para atender à complexidade das pessoas em situação de rua e desmistificar os preconceitos. Quando vejo batendo no vidro do meu carro, não tenho dimensão.
O que é necessário para ir além dos dados é pensar quem deve coletá-los. A saúde precisa coletar seus dados sobre pessoas LGBTI+, bem como a segurança pública e a educação. Vários serviços devem atender demandas específicas.
Lidamos com várias barreiras no dia a dia: atitudinais, urbanísticas, arquitetônicas, de transporte, tecnológicas. E as atitudes, além dos dados, ainda são nosso principal problema.
A primeira coisa é superar o racismo estrutural, institucional. As instituições que fazem os levantamentos nos mostram a seriedade que é a situação de desvantagem em que se encontra a população negra, a necessidade urgente de políticas públicas a partir da realidade concreta, da análise de situação.