Como se define o fim de uma pandemia e o que precisa ser feito no caso da Covid-19?

Com o avanço da vacinação e a queda nos óbitos, há esperanças sobre o fim do problema. Mas a situação é complexa e obstáculos reais afetam os planos de controle da doença

Desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia de Covid, em 11 de março de 2020, já são 589 dias. O enfrentamento aos diversos danos da crise sanitária é contínuo. No Brasil, com mais de 603 mil mortes devido à doença, a realidade tem mudado nos últimos períodos.

No Ceará, dados do Integrasus evidenciam  que casos, internações e óbitos seguem em queda. Mas quais metas é preciso atingir para dizer que uma pandemia chega ao fim? Quem define como e quando ocorre? O que precisa ser feito nas cidades e nos estados?

As respostas a essas perguntas, no que diz respeito à Covid, ainda intrigam cientistas, governantes e autoridades sanitárias. De modo genérico, a OMS indica que uma pandemia acaba quando a doença for controlada em diferentes regiões do mundo. 

Um dos impulsionadores de melhora do cenário é a vacinação. Contudo, além de situações em que ainda há um número elevado de pessoas não imunizadas, como no caso do Brasil, outro obstáculo é que ainda não se sabe precisamente quanto tempo dura a imunidade gerada pela vacina

Além disso, investiga-se o efeito das vacinas diante das variantes do vírus. Esse conjunto de fatos é entrave real na conta sobre quanto tempo falta para que a pandemia tenha fim. 

No Ceará, conforme dados do Integrasus, plataforma da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), até o momento, foram mais de 942 mil casos confirmados da doença, com 24,3 mil mortes. Mas, desde o pico da segunda onda, em abril, os índices recuam.

No auge da segunda onda, o Estado teve mais de 136 mil novos casos em apenas um mês. Agora, em outubro, até esta quarta-feira (20) foram 1,5 mil novos registros. As mortes por Covid também seguem caindo, com 29 óbitos confirmados este mês. No pico, foram 3,7 mil em um único mês. 

O Diário do Nordeste ouviu especialistas (a médica e epidemiologista Ligia Kerr; o médico infectologista Keny Colares; e o professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC, Carlos Henrique Alencar), colheu informações em sites oficiais das gestões municipais e estadual, e traz argumentos a serem considerados para definir “quando a pandemia finalmente acabará?”

Quando é possível definir que uma pandemia chegou ao fim? 

A médica epidemiologista, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Lígia Kerr, explica que, para isso, “os níveis da doença devem estar bem baixos”.  

“Toda epidemia tem um enorme aumento, depois cai, e quando esses casos param de ocorrer completamente ou ficam em níveis muito pequenos, podemos dizer que a epidemia teria acabado.”
Ligia Kerr
Médica e epidemiologista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

Mas, pondera Ligia, “no caso da Covid, a situação é um pouco mais delicada”. “Muitos pesquisadores pensam, e eu também, que dificilmente vamos controlar a pandemia de Covid em um tempo muito curto. O que pode estar acontecendo? Uma das alternativas é nós permitirmos que países com pouca vacinação desenvolvam a doença lá e retornem com variantes que 'vençam a vacina', voltando a picos mais altos. Isso é uma chance de ocorrer, mas esperamos que não ocorra”, completa. 

Outra questão já identificada, ressalta a epidemiologista, “é que os níveis necessários de vacinação tem que ser muito mais altos do que a gente imaginava. O contingente de pessoas que são suscetíveis é alto e isso é muito perigoso”. 

O médico e consultor em infectologia da Escola de Saúde Pública do Ceará, Keny Colares, acrescenta que no caso de uma doença nova, “não temos como comparar com um padrão anterior. É preciso que, com o passar dos anos, se crie esse padrão”.

É necessário, reforça ele, observar as curvas (óbitos, internações, mortes) para decretar que a epidemia acabou. Contudo, no caso da Covid esse referencial não está estabelecido ainda tão claramente pelas autoridades de saúde. 

O professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC, Carlos Henrique Alencar, ressalta que cada pandemia tem um mesmo indicador para medir seus valores: o coeficiente de incidência.

“Os valores deste indicador variam de acordo com a magnitude da doença e assim, não há como dizer que há um número mágico que pode ser usado para definir que uma epidemia/pandemia chegou ao fim, ou que ela se tornou endêmica. Isso somente será alcançado com a avaliação desta doença ao longo do tempo”.
Carlos Henrique Alencar
Professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC

No Ceará, há alguma cidade sem registro de novos casos e óbitos por Covid?

No Estado, conforme dados do Integrasus, cruzados pelo Diário do Nordeste com informações divulgadas pelas prefeituras nos sites oficiais, ao menos 3 cidades não registram óbitos por Covid há mais de 3 meses, são elas: 

  • São João do Jaguaribe
    Último registro de óbito: dia 8 de junho de 2021
    Total de óbitos: 9
     
  • Guaramiranga
    Último registro de óbito: 18 de junho de 2021
    Total de óbitos: 5
     
  • Barroquinha
    Último registro de óbito: 24 de junho de 2021
    Total de óbitos: 25
     

Em Fortaleza, conforme o mais recente boletim epidemiológico divulgado pela Prefeitura no dia 15 de outubro, nas duas últimas quinzenas (16 de setembro a 14 de outubro), a cidade teve 17 dias sem registro de óbitos pela doença.

Já em relação aos casos, as cidades do Ceará, de modo geral, ainda não conseguem sustentar intervalos, como mais de um mês, sem novas ocorrências da doença, embora o número de confirmações, no decorrer do tempo, seja cada vez menor. 

Quando todas as pessoas estiverem vacinadas, a pandemia acaba?

No Ceará, passados 9 meses do início da campanha de vacinação contra a Covid, dos 9,2 milhões de habitantes, até esta quarta-feira (20), 4,3 milhões receberam as duas doses da vacina, ou seja, 46% dos residentes. Na conta consta o número total de habitantes, contudo, a população menor de 12 anos ainda não está sendo vacinada no Brasil. 

Além da quantidade de pessoas já vacinadas é preciso considerar que nenhuma vacina é capaz de assegurar 100% de proteção contra as doenças. Com a Covid, os imunizantes servem como redutor de risco, evitando as formas graves da doença, mas, mesmo após a imunização, independentemente de qual fabricante é a vacina, é possível haver contaminação, internação e até óbito, isso com frequência muito menor do que entre não vacinados.

A médica e epidemiologista Ligia Kerr também ressalta que, “a pandemia requer níveis extremamente elevados de vacinação. Países que não controlaram a vacinação acabaram gerando variantes. Essas variantes passam parcialmente por cima da vacinação”. Outra situação é que quando as pessoas deixam de se vacinar geram as “falhas vacinais” e, assim, doenças cuja prevalência foi reduzida podem voltar.

“A vacinação é um parâmetro indireto. É bom saber que tem 60%, 70%, 80% da população vacinada, mas não é o fundamental. Temos visto que mesmo pessoas vacinadas tem tido doença. O mais importante é o número de casos, internações e óbitos. Não tem uma proporção de pacientes vacinados que a gente possa dizer que vai nos levar à situação normal. Então, nosso parâmetro é o comportamento da doença e não a população vacinada”.
Keny Colares
Médico e consultor em infectologia da Escola de Saúde Pública do Ceará

Como foi definido o fim da pandemia de H1N1?

No caso da pandemia causada pelo vírus H1N1, decretada oficialmente pela OMS em 11 de junho de 2009, o fim dela também foi estabelecido pela OMS em 10 de agosto de 2010. Mas isso não significou o fim da circulação do vírus. Ele continua em transmissão no mundo, junto com outros vírus sazonais, e em cada país tem incidência diferente, mas não com expressivos número de contaminações.  

Outro ponto é que, quando foi decretado o fim daquela pandemia, à época, 2,1 mil pessoas haviam morrido de H1N1 na crise sanitária no Brasil. No caso da Covid, para se ter dimensão, somente no Ceará já foram 24 mil óbitos. 

Quando uma doença epidêmica passa a ser endêmica?

O professor do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC, Carlos Henrique Alencar, explica que é preciso compreender as diferenças entre alguns conceitos que ele descreve da seguinte forma:  

  • Surto: aumento repentino no número de casos de uma doença, mas esse aumento tem uma limitação geográfica, por exemplo, o surto de peste suína que ocorreu em municípios da região Norte do Ceará há alguns anos. 
     
  • Endemia: o número de casos de uma doença está dentro de um padrão esperado para um local e período de tempo. Um exemplo de doença endêmica é a dengue, que está presente em todos os anos no Ceará em padrões já esperados. 
     
  • Epidemia: aumento não esperado no número de casos de uma doença endêmica. Ocorrem períodos de tempo em que o número de casos aumenta de forma muito além do valor esperado, fazendo com que a doença, antes endêmica, apresenta momentos de epidemia. Uma epidemia pode surgir também a partir de um surto.
     
  • Pandemia: tem uma dispersão geográfica muito maior, e a doença pode ser identificada em vários países do mundo. Isso ocorreu não só com a Covid, mas com outras doenças, como a AIDS, a Gripe por H1N1, dentre outras.


Segundo Ligia Kerr, “patamares endêmicos são níveis mais baixos que podem aumentar em alguns períodos. Quando ela (doença) cai e permanece com a prevalência bem mais baixa. Mas não desaparece”, explica. 

O médico Keny ressalta que, no caso da Covid, “a expectativa é que ela continue entre nós, e que a gente precise coabitar com esse vírus, claro que não ele causando tanto problema como foi em 2020 e 2021”. Contudo,  reforça, “quando vão bater o martelo de que não é mais epidemia, talvez seja preciso passar alguns meses ou anos”. 

Os estados e as cidades podem definir que a pandemia acabou naquela região?

Em geral, a OMS monitora as ocorrências nos países e diz quando uma pandemia/epidemia foi controlada, mas, segundo avalia a epidemiologista Lígia Kerr, sendo a Covid um cenário completamente atípico, o que “vai provavelmente acontecer é que cada país vai decidir com que nível quer lidar com sua epidemia, quantas mortes vai aceitar ter”. 

De acordo com ela, uma das evidências dessa decisão de países, estados e cidades, é quando a gestão daquele lugar específico decide abolir o uso de máscara, mesmo com a pandemia ainda em curso. 

Keny acrescenta que “a voz da saúde no mundo é a OMS”, mas, pondera ele “estamos em um momento extremamente complicado da política internacional, então a OMS está com dificuldade de fazer com que as decisões sejam acatadas”. 

O professor Carlos Henrique reitera que a OMS tem a responsabilidade por definir o fim da pandemia, mas de acordo com as condições da doença em cada país. “Se a Covid persistir globalmente em níveis esperados ou normais de acordo com a OMS, a organização a classificará como uma doença endêmica”, completa.