Direitos Humanos: qual parcela da população, de fato, sabe o que significa isso e sua relevância na rotina diária? Diante das disputas de narrativas que têm, há alguns anos, colocado o termo Direitos Humanos como o foco de discursos de ódio, incentivar iniciativas que façam a população compreender o que representa o termo, objetivamente, fez com que o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, Silvio Almeida, pensasse numa forma de, em menos de 30 segundos, definir o que significa o tema central da pasta hoje por ele comandada: “Cuidado, respeito, dignidade”.
Além de refletir sobre como a população precisa entender o que são direitos humanos, em entrevista ao Diário do Nordeste, o professor, advogado, jurista, filósofo e escritor Silvio Almeida listou uma série de iniciativas que tem gerenciado no ministério para atender às pessoas de forma prática, ligando pastas que tratam de direitos básicos como Educação, Saúde e Segurança, mas citou uma que, segundo ele, é a sua “menina dos olhos”, uma Rede Nacional de Direitos Humanos. “Num tem o SUS? Não tem o sistema da cultura? Por que a gente não pode ter um Sistema Nacional de Direitos Humanos?”.
Ao longo da entrevista, o ministro lamentou a tentativa de chacina que vitimou uma mulher, uma criança e deixou mais 8 crianças e adolescentes baleados em Fortaleza e afirmou que o "Brasil é um país em que não se respeitam os direitos humanos, por isso a necessidade de você ter uma Política Nacional de Direitos Humanos". Para ele, um dos grandes desafios do Brasil é retomar o controle do território nacional que vive em constante disputas muito além do tráfico de drogas, passando também por questões como o garimpo e a extração de madeira.
Silvio Almeida, autor do livro Racismo Estrutural, falou sobre a necessidade de se pensar o combate ao racismo no processo educacional dos estudantes, lembrando que o tema não interessa apenas às pessoas negras, mas à sociedade inteira. “Se a gente quer transformar o Brasil, se a gente quer construir as bases para uma educação nacional voltada ao desenvolvimento social, então precisamos agora pensar em como transformar as pessoas e, portanto, o combate ao racismo é elemento que tem que transformar as pessoas no Brasil. O racismo tem que ser inadmissível para nós, ele tem que ser algo que mereça todo o nosso repúdio. O racismo é algo que nos impede, inclusive, de nos desenvolver”.
Confira a entrevista:
JÉSSICA WELMA: O senhor está cumprindo agenda no Ceará desde quarta-feira (3), e uma dessas agendas foi o título de cidadania cearense que recebeu na Assembleia Legislativa. Para além do trabalho que desempenha, a contribuição que tem para o País, que ultrapassa limites de Estados, qual a sua relação com o Ceará?
Venho ao Ceará há muitos anos, tenho grandes amigos aqui, e um deles, que foi fundamental para que essa cidadania me fosse concedida honrosamente pelo povo do Ceará, por meio da Assembleia Legislativa, é Preto Zezé, que é um dos dirigentes máximos da Central Única das Favelas (Cufa), com que eu já trabalho há muitos anos e que tem também propiciado, nos últimos tempos, as minhas vindas ao Ceará — para dar aula, para fazer palestras, para, enfim, poder aprender com o povo cearense. Esses fatores e a generosidade, que só posso atribuir à generosidade do povo cearense de me permitir fazer parte desse povo tão combativo.
Falei ontem uma coisa no meu discurso, porque eu fiz questão de preparar um discurso de agradecimento que dialogasse diretamente com aquilo que o Ceará significa para o Brasil. E me lembrei muito de uma música do Fagner, do Belchior, dois cearenses dos mais ilustres, em que eles falam sobre como o Ceará é o "lado de dentro" e o "lado de fora" do Brasil. O "lado de dentro" porque ele significa o enraizamento da nacionalidade brasileira a partir das suas entranhas do sertão, e como a gente aprendeu sobre o Brasil olhando para o Ceará e como os cearenses nos ensinaram, por meio da sua luta, por meio da sua arte, por meio dos seus escritores — os escritores cearenses, a arte cearense, além da música —,estão na linha de frente daquilo que o Brasil teve que aprender sobre si e, ao mesmo tempo, é o "lado de fora", porque também dialoga com aquilo que o Brasil tem no que tange às suas mazelas, à exclusão social.
O Ceará carrega todas as potencialidades e também as mazelas que o Brasil tem que superar, e a gente não supera sem olhar para o Ceará. Estou muito feliz, muito honrado. Espero dignificar o povo cearense agora que faço parte dele.
DAHIANA ARAÚJO: O senhor esteve no bairro Barroso — a gente vai falar de um triste assunto também —, onde houve uma tentativa de chacina, com uma mulher morta, uma criança morta e mais oito crianças baleadas. A gente tem vivido no nosso Estado, na nossa Capital, uma grande disputa territorial ligada a esses grupos criminosos. Como o Ministério consegue acompanhar isso e tentar proteger essas crianças que vivem nesses territórios?
Em primeiro lugar, quero deixar minha solidariedade a todas as pessoas que foram atingidas por este evento trágico que, infelizmente, tem se tornado parte do cotidiano brasileiro. Mostra que o Brasil é um país que tem muito que caminhar no que concerne ao respeito aos direitos humanos. O Brasil — infelizmente eu falo na posição de ministro e falo com muita tristeza no coração —, é um país em que não se respeitam os direitos humanos e por isso a necessidade de você ter uma Política Nacional de Direitos Humanos.
O Ministério de Direitos Humanos é o ministério que tem a atribuição de estabelecer as bases de uma política nacional de respeito à vida, à dignidade; estabelecer as bases de um cuidado com as pessoas. Nesse sentido, o ministério tem que funcionar como uma espécie de catalisador, ou seja, de agregador das políticas que são feitas, tanto em nível federal, estadual e municipal, mas também pelos diversos órgãos que compõem o Estado Brasileiro. O Ministério de Direitos Humanos não é o único que cuida de questões relacionadas aos direitos humanos.
Qual é o nosso papel? Primeiro, é acompanhar esses casos, compreender o que pode e o que deve ser feito. Dialogar com as autoridades estaduais, com autoridades municipais, com os outros órgãos do Governo Federal - estou falando aqui do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, para que a gente possa estabelecer uma política nacional que possa proteger os adolescentes. Agora, vejam só, o que faz o Ministério dos Direitos Humanos? Primeiro, tem a atribuição de cuidar de crianças e adolescentes.
Então, nós fazemos as bases, criamos as bases nacionais de uma política de proteção para crianças e adolescentes. E uma coisa em que o Ministério dos Direitos Humanos tem que interferir — e aí é uma luta nossa que quero até colocar esse assunto para vocês - é que precisamos estabelecer uma nova tradição no Brasil de discutir segurança pública ao mesmo tempo que se discute direitos humanos. Nós estamos discutindo de maneira separada, e isso resulta nesse tipo de tragédia que nós estamos vendo agora. Estamos discutindo assuntos que têm que ser correlatos.
Vou dizer uma frase que eu tenho repetido à exaustão: não existe política de segurança pública sem direitos humanos, porque não é segurança pública, porque isso resulta nessas tragédias, resulta na morte de policiais, resulta no enlouquecimento e também no que a gente está vendo agora, que os policiais estão cometendo suicídio porque não aguentam viver num mundo desgraçado, provocado por uma violência que não tem controle e que muitas vezes é estimulada por governadores, por líderes políticos que são irresponsáveis e colocam os policiais nessa situação.
Estamos fazendo o seguinte: primeiro, dialogando com Ministério da Justiça e Segurança Pública. Concordo com o ministro (Ricardo) Levandowski: a questão do crime organizado tem que ser tratada mais de perto pelo Governo Federal. Quem disser que defensor de direitos humanos defende crime organizado está mentindo, porque o crime organizado na forma de milícias, de facções, são inimigos dos direitos humanos, ameaçam as comunidades, fazem esse tipo de coisa (tentativa de chacina). Tem que haver um debate. Quem defende direitos humanos tem que defender um combate sério, um combate duro, um combate sistemático ao crime organizado. Ponto.
Dito isso, o combate ao crime organizado tem que ser feito ao lado de outras políticas públicas, como, por exemplo, políticas de educação, de assistência social, de cultura, para que a gente possa — e você usou o termo perfeito aqui —, para que a gente possa retomar os territórios, porque o fundo das grandes disputas que envolvem crime organizado, violação de direitos humanos, é a disputa territorial.
Eu não diria nem que é disputa. Existem pessoas que querem se apropriar do território brasileiro para cometer crimes. Eu estava na Assembleia Legislativa, ontem, aqui, no Ceará, e o deputado Renato Roseno estava nos mostrando os resultados da parceria do Ministério dos Direitos Humanos com a Assembleia Legislativa do Ceará. Nesse mapa, que mostra os homicídios no Brasil, você percebe o seguinte: estão acontecendo nos lugares em que há uma disputa do crime organizado pelo controle da saída de drogas nos portos, aeroportos.
Você tem o conhecimento litorâneo do número de homicídios, são essas disputas entre facções. Você tem um crescimento acentuado também do número de homicídios, do número de crimes, onde você tem também disputas territoriais, que envolvem a extração de madeira ilegal, garimpo. O Brasil precisa retomar o controle do seu território, e a retomada do controle do território nacional se dá por meio de políticas de direitos humanos. Olha só que contradição!
A gente precisa fazer no Brasil reforma agrária. Não estou inventando nada. Isso não é uma conspiração "esquerdista-comunista", como diriam as pessoas. Está na Constituição, no artigo 175. Reforma Agrária é o quê? É a racionalização do uso da terra para a produção voltar aos brasileiros. Segundo, tem que ter reforma urbana. Olhe o que foi o assassinato, segundo as investigações da Polícia Federal, da Marielle Franco. É isso, o crime organizado está tomando os territórios urbanos, onde era pra ser feito moradia, creche, escola das pessoas. A gente precisa retoma isso. Outra (ação), demarcação de terra indígena, terra indígena é terra da União.
A partir do momento em que se demarca terras indígenas, se protege as populações indígenas, significa que a União, o Governo Federal, assume a responsabilidade por ordenar aquele território. Tem que tirar garimpo, tem que tirar extração de madeira ilegal.
Titulação de terra quilombola: tudo isso que as pessoas acham que de alguma forma é beneficiar certos grupos, na verdade, o que é? É a organização do território brasileiro para que o Estado brasileiro retome o território. Retomar o território não é só fazer a ocupação das forças de segurança, é você levar educação, se você leva serviço público, se você leva meios de comunicação, como a internet, depois, a milícia e o crime organizado não ficam suprindo a necessidade da população, porque o Estado brasileiro já fez. A ausência de políticas públicas, do elemento público, não apenas estatal; dentro desses territórios, tem provocado esse tipo de coisa. E o Ministério dos Direitos Humanos está absolutamente pronto a fazer essa discussão. Nós estamos preparando agora um Plano Nacional de Direitos Humanos para Agentes de Segurança, junto com Ministério da Justiça, junto com a Assembleia Legislativa do Ceará, para todo o Brasil. Olha só como o Ceará contribui com o Brasil inteiro. Vamos construir também uma forma de tentar diminuir o número de homicídios nas cidades.
JÉSSICA WELMA: No Ceará, temos algumas denúncias, que órgãos de direitos humanos já formalizaram, falando de torturas, de violações de direitos básicos nesses espaços de presídios, de socioeducativos, e o senhor já ressaltou que o ministério está acompanhando e que essa é uma preocupação. O que já tem de avanço dessas discussões e que o ministério vai poder entrar e atuar junto aos estados para tentar resolver esse problema?
Desde o ano passado, estamos conversando com os estados, porque é uma preocupação, e o presidente Lula tem essa percepção, de que o sistema prisional brasileiro tem produzido um manancial de energias para o crime organizado, para a violação de direitos humanos no Brasil. Desde o ano passado, estamos fazendo gestões para mudar — inclusive criar uma nova tradição, como diz no ministério —, de atuação também nas questões relacionadas ao sistema prisional, num diálogo permanente com o Ministério da Justiça e Segurança Pública ao nível nacional. Só que a gente tem que cuidar dos estados. E por que isso? (...) Se a gente pegar quais são as piores unidades, a gente vai ter que olhar para as condenações ou então para as medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que são objetos de denúncias. A situação nesses lugares é tão ruim que a sociedade civil vai lá e denuncia o Brasil por violação sistemática de direitos humanos nas unidades prisionais. Quero lembrar para as pessoas que a prisão é legal, torturar as pessoas na prisão é legal, matar as pessoas de fome nas prisões, de sede nas prisões.
Quero lembrar para as pessoas que toda pessoa presa, ela está sob a guarda do Estado brasileiro para cumprir a sua pena, conforme aquilo que a lei prevê. A lei não prevê pena de morte, principalmente por meio cruel, por meio de tortura. Independentemente do crime que tenha sido cometido, isso aí está na lei, está na Constituição, nos tratados internacionais que o Brasil assinou, e é a prática dos países em que você tem esse problema equacionado.
A gente percebe que essas unidades estão nos estados — e não é que não aconteçam violações no sistema federal, porque acontecem. É uma realidade que atravessa todo sistema prisional brasileiro, a violação de direitos humanos, isso aí gente não pode deixar de dizer. Só que agora a Corte Interamericana aponta algumas unidades nos estados. O socioeducativo, por exemplo, do Ceará, está lá. Desde o ano passado, tenho ido até os estados para conversar com os governadores, com as governadoras. Visito as unidades prisionais, falo com os agentes, dialogo com os mecanismos de combate e prevenção à tortura, com o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que está albergado no Ministério dos Direitos Humanos. Conversamos com a sociedade civil, com os peticionários na Corte, para tentar criar um plano de ação para que o Brasil tenha as medidas levantadas e que aponte essas violações.
Mês passado tive uma reunião do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e eles aprovaram uma parceria com o Ministério dos Direitos Humanos para que, junto do comitê, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, possamos olhar justamente para essas unidades e criar um plano de ação naquilo que a gente tem chamado de Projeto Mandela — levar as regras de (Nelson) Mandela, que falam sobre como as prisões devem tratar as pessoas aprisionadas, e levar isso para que nós possamos levantar as medidas da Corte Interamericana. O Ministério de Direitos Humanos está criando uma tradição, uma metodologia, uma tecnologia para lidar com isso, entendendo que fosse crucial para a gente falar de segurança pública, como tem sido falado.
Como eu disse, não existe política de segurança pública sem direitos humanos. Mas eu também quero dizer que o contrário é verdadeiro: se não houver uma política de segurança pública, não há como existir direitos humanos.A gente precisa proteger as pessoas e, por isso, o combate ao crime organizado é fundamental.
Nós, que queremos um mundo civilizado, um mundo que as pessoas sejam respeitadas e cuidadas, não podemos deixar de lado também o discurso, a gramática e a prática política que diz o seguinte: vamos cuidar das pessoas, não pode haver tortura, não pode haver violação. Só que do outro lado a gente tem que dizer o seguinte: para que isso exista, temos que ter um combate à criminalidade, principalmente da forma organizada, porque não é possível deixar as pessoas à mercê de criminosos que vão, inclusive, ameaçando crianças, torturando crianças.
Tem uma coisa no ministério que as pessoas ficam horrorizadas ao saber que existe. Olha só o nível a que nós chegamos, no ministério temos um programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte. O Estado brasileiro precisou criar um programa de proteção para crianças e adolescentes que são ameaçados de morte. Tem estudos que mostram o seguinte: o sujeito, a criança, o adolescente, na verdade, quando vai para o sistema socioeducativo, como você não tem uma política de egresso, para você pegar e trazer aquele adolescente para possibilidade de uma vida digna, de uma vida decente, fora daquele ambiente de criminalidade que ameaça a sua vida e que o levou inclusive ao sistema socioeducativo; essa pessoa volta no mesmo lugar, e o tempo de vida dela depois que volta é curtíssimo. Um ano e meio, dois anos depois, essa criança, que volta, esse adolescente que volta, ele é assassinado.
DAHIANA ARAÚJO: Falamos de violência, violações, mas tem uma ferramenta, que é nacional, o Disque 100, pela qual a gente consegue fazer vários tipos de denúncias, está disponível para a população, e o Ministério disse que poderia ter algum tipo de mudança, de melhoria. Essa ferramenta é, inclusive, uma ferramenta de transparência, a gente consegue ter acesso a esses dados que servem para embasar políticas públicas, para a imprensa também, e queria saber o que está por vir sobre isso.
O Disque 100 é uma das coisas mais incríveis que nós temos no Brasil. O que a gente costuma pensar não é intuitivo, a gente tem uma dificuldade em ter um pensamento sistêmico. Informação, comunicação, educação são elementos fundamentais para qualquer política de direitos humanos. Estabeleci no Ministério que toda política tem que ter quatro elementos: primeiro, essa política é de proteção, de promoção dos direitos humanos? É efetivamente capaz de proteger o público para o qual ela se destina? Criança, adolescente, pessoa em situação de rua, pessoa LGBTqia+, pessoa com deficiência, pessoa idosa: a gente está protegendo essas pessoas? Dois, essa política tem um componente educacional que forma as pessoas para que elas possam exercer os seus direitos? Três, é uma política de cidadania? A gente vai entregar alguma coisa, tem um equipamento e a gente vai capilarizar essa política? E o quarto: essa política comunica? O que está sendo previsto nessa política que vai ajudar as pessoas a se comunicar?
(...) A gente está preparando agora nova licitação, porque eu quero o seguinte: a gente vai receber a denúncia, mas eu quero saber também a qualidade desse atendimento e que haja um acompanhamento da denúncia, porque temos de ser capazes de dizer o que aconteceu — obviamente, respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados, respeitando a privacidade das pessoas, a intimidade. Quero saber como essa denúncia foi encaminhada. Não é só pegar, receber a denúncia e mandar para autoridades. Quero saber qual o fluxo, o que aconteceu, qual o acompanhamento e qual foi a solução. Porque talvez a gente tenha no final um índice de encaminhamento e de resolução desses casos, dessas denúncias.
Quero saber isso até para a gente poder dar uma coisa que está faltando nas políticas de direitos humanos: na minha concepção, a gente precisa transformar política de direitos humanos em uma política de esperança.
Uma das coisas mais bonitas que criamos, o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, as pessoas podem entrar — está no site do ministério —, esta página traz ali uma série de temas (...). A gente tem um panorama. Criamos, no ministério, na Coordenação de Dados e Evidência, uma coisa que chama capacidade e índices de capacidade institucional, para dizer o seguinte: como aquele estado ou aquele município é capaz de dar conta da política de direitos humanos? Você tem orçamento para isso? Tem participação social, tem um Conselho de Direitos Humanos e tem equipamentos públicos?
A gente consegue, inclusive, medir a capacidade funcional, porque não adianta fazer política de direitos humanos se não tem orçamento, se não tem estrutura. A gente vai integrar com o Disque 100 e com outro projeto que a gente tem lá, que chama a Rede Nacional dos Direitos Humanos. A Rede Nacional é um sonho de muitos que me antecederam. Tomara que eu possa pelo menos colocar pedra fundamental nisso. (...)
Além do Disque 100, a gente vai criar também criar políticas itinerantes, fazer um Disque 100 itinerante, rodar o Brasil para fazer isso. Agora, voltando para a Rede, criei um grupo de trabalho para fazer isso, que é presidido por uma professora competentíssima da Fundação Getúlio Vargas - onde eu sou professor também - chamada Gabriela Lotta. Nós começamos os estudos sob a liderança dela para criar um Sistema Nacional de Direitos Humanos no Brasil.
Não tem o SUS? Não tem o SUAS (Sistema Único de Assistência Social)? Não tem o sistema da cultura? Por que a gente não pode ter um sistema nacional de direitos humanos agora, que integre todos esforços de estados, municípios, sociedade civil para criar um sistema de proteção de criança e adolescente? O sistema de proteção para pessoa idosa, para pessoas em situação de rua? A gente quer criar um sistema, estudando o que funciona, o que não funciona, por que alguns sistemas não deram certo, comparando também com iniciativas que foram feitas em outros países.
DAHIANA ARAÚJO: Inclusive para que as pessoas também entendam o que são direitos humanos e para que elas entendam todos os direitos que elas têm acesso, porque muitas vezes falta isso, não é?
Exato! Então, vamos fazer uma coisa aqui: se me perguntassem assim: ‘Silvio, se você tivesse que explicar, em 30 segundos, o que é direitos humanos para uma pessoa que inclusive está contaminada pelo discurso de ódio?’ (...) Eu diria o seguinte, três palavrinhas só: cuidado, respeito, dignidade. É isso. Se você acha que uma pessoa tem que ter os cuidados do Estado brasileiro — e todos nós temos que ter cuidado do Estado brasileiro, ou seja, se não tem saneamento básico, se você não tem a saúde pública. Se existe vacinação pública, se existe cuidado sanitário com a comida que você come é por causa do Sistema Único de Saúde.
Tem coisa que a assistência privada não dá conta. É só o Estado brasileiro que pode dar conta. Se você acha que o teu filho ou tua filha, e você mesmo, tem direito a estudar, a ir na escola, se você acha que um dia você pode ter um problema que vai te impedir de trabalhar, que vai te impedir de ter uma vida com todas as potencialidades e que o estado brasileiro tem o dever de ajudar você. Se você acha que você não pode ser torturado, que o seu filho não pode ser torturado, que a sua filha não pode ser vítima de nenhum tipo de violência por ser mulher, eu queria dizer uma coisa: você está do meu lado.
JÉSSICA WELMA: Essa agenda aqui no Ceará também marca a adesão do Estado ao Programa Novo Viver Sem Limite, que tem justamente o objetivo de promover os direitos das pessoas com deficiência. O Ceará é o quinto Estado a aderir. O senhor está nessa mobilização no País para garantir essa adesão. Gostaria de saber o que está previsto dentro desse programa.
Esse plano nacional, lançado pelo presidente Lula no final do ano passado, o Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, se chama “Novo Viver sem Limite”. Por que “novo”? Porque ele é uma retomada, é uma atualização do programa “Viver Sem Limite”, lançado no governo da presidenta Dilma Rousseff, descontinuado nos governos posteriores, e retomado agora pelo presidente Lula.
Esse plano contém 95 ações. Participam 21 ministérios, todos eles com ações integradas. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania coordena essas ações, além de participar com algumas ações também específicas. Mas é um plano do governo federal, do governo do presidente Lula. E esse plano tem eixos que vão desde políticas de trabalho, emprego e renda para as pessoas com deficiência, direitos econômicos, sociais, tecnologia assistida, combate ao capacitismo e à violência também, que envolve segurança.
Há dados que demonstram que as pessoas com deficiência são vítimas constantes de violência. Há casos que aparecem com frequência nos jornais, de pessoas, por exemplo, que estão dentro do espectro autista e que são vítimas de violência. Temos casos que são, inclusive, bastante emblemáticos no Brasil. É uma política de segurança, de combate ao capacitismo, à discriminação e da violência que envolve aspectos educacionais. Isso também é uma novidade. São quatro eixos.
O eixo número um é da participação social e popular no rumo das políticas para pessoas com deficiência. O que a gente faz? A gente leva isso para os estados e prevê o fortalecimento das policlínicas, a criação de centros de referência para as pessoas com deficiência, com co-participação de estados e municípios. A gente vai fortalecer esses centros. O governo federal disponibilizou R$ 6,5 bilhões para, junto com estados e municípios, criar esses equipamentos. Tem ações no campo da saúde também. Mudanças, inclusive, de regras de como tratar as pessoas com deficiência. São 95 ações que a gente espera executar até o final do mandato do presidente Lula.
Esse plano é talvez o mais completo que já se teve no Brasil. A gente quer levar para todos os estados do País. Vamos fazer essa força. Fechamos com cinco (estados), mas a gente tem vários em negociação, porque tem que haver um alinhamento entre aquilo que propõe o governo federal e aquilo que propõe os governos dos Estados. (...)
DAHIANA ARAÚJO: A gente tem o Ceará com vários avanços nos índices de educação, que tem se destacado nacionalmente, mas acredito que tanto no Ceará, como em outros estados do Brasil, existe um tema que precisa ainda ser difundido dentro das escolas, que é a questão do racismo. Como é que o ministro vê esse tema dentro das escolas e como essas escolas podem tentar trabalhar esse tema de forma efetiva, inclusive por meio de iniciativas nacionais, como o Plano Nacional de Educação (PNE), que está em discussão agora?
O Ceará é um exemplo de como você cria uma política educacional que de fato transforma a vida das pessoas. Só é possível você fazer esse tipo de transformação que fez o Ceará, se você tiver alguns elementos. O primeiro deles é o compromisso político. Quando você fica demonizando a política, dizendo que a política não serve para nada, você abre mão da transformação social. O que muda nossa relação com o mundo dentro das limitações que nós temos — que nós somos seres limitados pelo tempo, pelas condições físicas, biológicas, enfim —, o que muda a nossa vida é a política, é esse fazer político. Então tem que ter um compromisso.
No Ceará se firmou, há alguns anos, um compromisso de que a educação ia ser a base da transformação desse Estado. E foi feito. Mas não basta só vontade política. Tem que ter o quê? O apuro técnico, tem que ter uma coisa chamada planejamento. O planejamento, portanto, é fundamental, porque ele organiza as tecnologias e toda essa força, energia social para a consecução de objetivos que foram muito bem traçados e muito inteligentemente traçados pelos governos do Ceará. E, por fim, precisa haver um compromisso de permanência dessas políticas, independentemente de quem vai assumir isso.
Ou seja, a educação virou uma bandeira do povo cearense e é muito difícil que alguém consiga fazer um retrocesso. E quando alguém quiser fazer um negócio desse, o povo vai se levantar. Você tem uma dimensão ideológica que vai fazendo com que o Ceará, com todas as coisas que fazem com que o cearense — e agora eu sou cearense —, tenham orgulho de ser cearense, a educação é um elemento fundamental. O cearense tem orgulho da educação, assim como nós deveríamos ter muito orgulho, como brasileiro, do Sistema Único de Saúde, e a gente tem que ter orgulho da educação do Ceará.
Eu, como cearense agora, mas brasileiro, antes de ser cearense, tenho muito orgulho da educação do Ceará, e o presidente Lula entendeu isso rapidamente. Tanto que o ministro Camilo Santana, que foi um dos que participou ativamente desse processo, hoje é ministro da Educação. A Izolda Cela (ex-governadora do Ceará) foi secretária executiva do Ministério da Educação também.
A gente só consegue mudar realmente a face desse país se a questão racial for colocada como um elemento fundamental nos processos educacionais. O racismo não única e tão somente um elemento que interessa às pessoas que são negras no Brasil. O combate ao racismo é um ponto que tem que ser visto com muita atenção para todo o processo educacional.
A educação serve para transformar as pessoas e, como diz o Paulo Freire, a educação transforma as pessoas e as pessoas transformam o mundo. Se a gente quer transformar o Brasil, se a gente quer construir as bases para uma educação nacional voltada ao desenvolvimento social, então precisamos agora pensar em como transformar as pessoas e, portanto, o combate ao racismo é elemento que tem que transformar as pessoas no Brasil.
O racismo tem que ser inadmissível para nós, ele tem que ser algo que mereça todo o nosso repúdio. O racismo é algo que nos impede, inclusive, de nos desenvolver. Pensem em um país que conseguiu se desenvolver discriminando mais de 50% da população? Isso não existe. (...) O Brasil não consegue se desenvolver se não tiver um plano antirracista, se não tiver uma política antirracista, porque nós somos a maioria no País. O combate ao racismo é um dos elementos centrais na formação subjetiva de um povo que quer superar as suas mazelas históricas.
JÉSSICA WELMA: Ministro, falando em mazela histórica, eu não poderia também deixar de inserir uma pergunta que é de um assunto do dia. O Governo Federal publicou hoje, nesta quinta-feira, no Diário Oficial, a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Houve muita resistência nos últimos anos à retomada dessa comissão. Qual a importância dessa recriação e qual o objetivo do Ministério dos Direitos Humanos nessa nova empreitada, em discutir agora esse assunto?
Com a retomada da comissão, duas coisas acontecem. A primeira delas é a seguinte: eu diria que nós completamos agora a reconstrução do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que foi destruído nos últimos anos. Nós, oficialmente, hoje, sob a liderança do presidente Lula, refizemos todo o sistema de participação social do ministério, reconstruímos todos os colegiados e fortalecemos todos eles. Todos, todos os colegiados. Esse era o que restava. O presidente Lula, com a sua sabedoria, com o seu compromisso com a democracia, deixou muito evidenciado o seu compromisso com a democracia, com a memória, com a verdade. E isso se estabelece hoje nesse ato.
Vai ser muito importante, porque, como já disse, uma das bases do que a gente chama de democracia se revela no nosso compromisso também com as violações de direitos humanos que ocorreram no passado, porque elas alimentam as violações do tempo presente. A gente começou falando sobre essas chacinas. As chacinas estão ligadas, muitas vezes, com um descontrole do Poder Público. Quando a gente diz o seguinte: 'olha o Estado brasileiro, primeiro, é responsável pela morte e pelo desaparecimento de pessoas e nós, agora, assumimos um novo compromisso, um novo pacto, uma nova aliança com o povo brasileiro de que nós vamos procurar essas pessoas.
Vamos procurar essas pessoas, ainda que nós não as encontremos, é dever do Estado brasileiro continuar procurando, para dar um alento para as famílias, para dar um recado para as pessoas no futuro, dizendo o seguinte: 'nós não vamos deixar isso impune'.
A memória e a verdade, elas vão prevalecer sobre qualquer coisa. Hoje é um dia muito importante. Primeiro, lembrar o seguinte: a comissão — e o presidente Lula reconhece isso no seu despacho e também no ato de reconstrução —, foi indevidamente, ilegalmente, extinta pelo governo anterior. Foi um ato ilegal, além de um ato imoral. E o presidente Lula restabeleceu a verdade e nos permitiu agora uma política de memória que vai ser muito importante para que a gente retome o sonho de um país democrático e um país republicano.
*Colaborou o repórter Bruno Leite.