BBB21: Por que Lumena apontou transfobia em episódio de homens maquiados? Mulheres trans comentam

Duas comunicadoras trans e uma psicóloga clínica ampliam a discussão iniciada pelos participantes Lumena e Caio no reality. Afinal, Por que o episódio dos homens com maquiagem foi classificado como violência de gênero?

Os participantes do BBB 21 protagonizaram uma discussão que vai muito além das paredes da casa, na última quarta-feira (27). Após alguns brothers, incluindo Caio, Fiuk, Rodolffo e Projota desfilarem e posarem para fotos com maquiagem, imitando gestos femininos, a psicóloga Lumena criticou a postura dos rapazes, lembrando que a aparente “brincadeira” deles era sinônimo de violência para travestis e mulheres trans.

O Verso convidou duas comunicadoras trans cearenses e uma psicóloga clínica com atuação em questões de gênero para debater o assunto. Afinal, o que revela o comportamento dos brothers no Reality?

Para a jornalista trans Alí Nacif, a discussão não é sobre homens usarem ou não a maquiagem, pois é sabido que existem os cosméticos específicos para corpos masculinos.

“Torna-se um problema quando isso é usado de forma generalizada ou apenas caricata. É violenta e mega agressora a forma que foi usada, vindo homens ‘querendo demonstrar’ uma feminilidade que naquele momento realmente não precisa, é banalizar as questões que a maquiagem nos impõe como corpos marginalizados”, observa.

Segundo Alí, para ela e outras tantas mulheres trans, a maquiagem funciona como forma de se relacionar com todo o universo feminino que lhes foi negado antes da nova transição, uma forma eloquente de buscar a afirmação ou aceitação da sociedade. E lembra ainda que atitudes como a dos brothers no Reality podem ser observadas com frequência em festas como o Carnaval, por exemplo.

“Hoje digo com toda sinceridade que me privo sim, de curtir festas carnavalescas apenas para não me deparar com tais situações. É tão revoltante ver meu corpo e minha identidade ser usada como fantasia. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, ano passado tivemos 176 casos ‘mapeados’ de violência contra pessoas trans, e aí? Isso não é piada, entende?", reflete. 

"Ao contrário, essa ‘fantasia’ que eles usam é basicamente uma forma transfóbica de demonstrar que você não entende e nem respeita meu corpo”, pontua.

Imaginários e visibilidade

A comunicadora e multiartista trans Ella Monstra ressalta que, quando acontece alguma situação semelhante a essa do BBB 21, é preciso discutir, primeiramente, sobre imaginários.

“Estamos falando de reforçar a ideia de que figuras e comportamentos que são tomados como desviantes são  motivo de piadas e escárnio. Estamos falando sobre reforçar que algumas vivências são menos dignas que outras. Por que, em vinte e uma edições de um programa que já contou com mais de trezentos participantes, tivemos apenas uma participante trans? Apesar de estarmos falando sobre imaginários, isso tem um reflexo direto em nossa realidade”, critica.

No mês da visibilidade trans, cujo dia é celebrado nesta sexta, 29 de janeiro, Ella Monstra reflete sobre o quão o direito de ser visível e ocupar espaços é básico e ainda assim tem que ser uma das principais pautas da comunidade. 

> Veja como outras artistas LGBTQIA+ brasileiras se posicionaram sobre o ocorrido nas redes sociais: 

Linn da Quebrada: "Lumena foi corajosa e cirúrgica" 

Raquel Virgínia: "O mundo do entretenimento nos renega"

Duda Dello Russo: "O incômodo da Lumena não foi com homens se maquiando" 

“Não consigo afirmar que as piadas que aconteceram eram direcionadas especificamente para pessoas trans e travestis, mas já imaginou como essa situação teria se dado se tivéssemos a oportunidade de ter uma pessoa trans ali dentro? De poder escutar da boca dela sua opinião sobre esse assunto? Será que se tivéssemos mais pessoas trans ocupando cargos públicos não teríamos mais políticas públicas de qualidade para uma das comunidades que mais sobre violência no Brasil? Apesar de ser piada, discurso, imaginário, tudo isso é diretamente realidade”, aponta.

Marginalização e violência de gênero

A psicóloga clínica Lia Baquit trabalhou durante nove anos no sistema prisional do Estado do Ceará e facilitava grupos reflexivos com a população trans. Segundo ela, a marginalização acontecia em todos os espaços, públicos e privados, e em diversas relações, familiares, afetivas e dentro do próprio presídio, tanto pelos outros internos como pelos profissionais que lá trabalhavam. 

“Na época, lembro de ter conversado com a direção para liberar o uso de maquiagem e foi algo super polêmico e negado. A pessoa ali não tinha o direito de ser quem se é. O impacto da maquiagem, do cabelo e das roupas na autoestima das pessoas trans e/ou travestis é gigante, pois é dessa forma que muitas conseguem se reconhecer e se afirmar para si e para a sociedade”, afirma.

E completa a reflexão com outros questionamentos: “Qual o problema nisso? Por que nos incomodamos tanto com esses corpos diversos? Precisamos discutir mais sobre esse controle dos corpos, que age de forma disciplinadora e padronizada, considerado como uma das fórmulas gerais de dominação", observa.

"Não sou eu nem você quem tem que dizer como o outro deve ser. Vivemos em tempos de pluralidade onde a empatia se faz urgente, principalmente no país que continua matando mais LGBTQIA+ no mundo”, desabafa.

De volta a discussão do BBB 21, Lia afirma que o debate revela muita coisa e uma delas é que quem não tem a vivência de conviver, trabalhar ou ser uma pessoa LGBTQIA+, principalmente transexuais ou travestis, dificilmente se coloca nesse lugar.

“Existem 20 pessoas participando do BBB 21 e apenas uma sentiu a violência de gênero acontecendo ali, para milhões de brasileiros assistirem a dita ‘brincadeira’. É preciso muito cuidado com essa palavra. Você não sabe sobre a dor do outro. Quando eu brinco com uma realidade que não é a minha, eu estou fazendo piada, diminuindo e me colocando em um lugar de superioridade. A discussão não é sobre usar ou não usar maquiagem, mas sim sobre a ridicularização dos corpos de minorias sociais”, afirma, em sintonia com a fala inicial de Alí Nacif.

A violência de gênero, conceitua Lia, se define como qualquer categoria de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra alguém em situação de vulnerabilidade devido a sua identidade de gênero ou orientação sexual.

“Ela exclui, segrega e afeta a autoestima de suas vítimas. Muitas vezes precisamos furar a nossa bolha para entendermos a dimensão de tudo isso”, expressa.

Comportamento questionável

A psicóloga analisa ainda a reação de Caio, um dos brothers envolvidos na questão, que cogitou até sair da casa após o ocorrido. “Do ponto de vista feminista, a reação de Caio é muito comum em diversos homens cisgêneros, heterossexuais, brancos e de classe média, que fogem do debate, pois não é confortável sair da posição de poder que sempre ocuparam. Reconhecer que errou, pedir desculpas e não repetir as ações preconceituosas é algo esperado quando ofendemos alguém, mesmo que tenha sido sem a intenção”, destaca.  

“Podemos também observar um comportamento de se colocar no lugar de vítima, que procura culpados e se retira da situação que ele mesmo provocou. A exposição em participar de um programa desse é imensa e vale lembrar que hoje em dia as pessoas têm muito medo de serem canceladas nas redes sociais”, completa Lia.

Na visão da comunicadora Alí Nacif, precisamos nos abrir mais ao debate e saber que estamos todos num processo constante de desconstrução.

“Ou abraçamos isso e seguimos juntos ou realmente iremos ver essas ‘desistência’. Desistir é simplesmente assumir que não entende”.

Ella Monstra também evoca uma transformação social a partir desse e de outros  fatos ligados à questão. “Que no mês da visibilidade possamos discutir não somente as pessoas trans, mas as pessoas que todos os dias nos invisibilizam, invalidam e inviabilizam nossas vidas. Desejo que daqui a alguns poucos anos estejamos não só em espaços como o BBB, mas cada vez mais em cargos públicos, nas direções de escolas, de hospitais, e até mesmo como nos profetiza Ventura Profana (cantora, escritora, compositora, performer e artista visual), tomando a faixa presidencial”, conclui.

Serviço

Atendimento de saúde especializado para pessoas trans em Fortaleza:

Sertrans (Rua Vicente Nobre Macêdo, S/n - Messejana). Contato: (85) 3101-4350. Aberto 24h

Centro de Referência Janaína Dutra (Rua Guilherme Rocha, 1469, Jacarecanga) Contatos: (85) 3452.2047/ 98970.4621. Funcionamento: De segunda a sexta, de 8h às 17h