O bairro Siqueira, em Fortaleza, tem ao menos 37 mil moradores. O território na periferia da Capital é uma das áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em meio aos inúmeros desafios sociais, o lugar abriga preciosos habitantes: pequenos estudantes que nas escolas encontram portas de contato com outros tantos mundos possíveis. Uma delas, Flávia Alexandra Cavalcante da Silva que, aos 11 anos, no 5º ano, faz do saber possibilidade de crescimento.
Na rotina, das 7h às 11h, o endereço de Flávia é a Escola Municipal Professor José Cirio. Na unidade erguida em área de grande vulnerabilidade social, conforme dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), de 2019, somente 9% das mães dos alunos têm Ensino Superior.
Realidade que se impõe. E é nessa instituição que Flávia persiste descobrindo saberes, afinidades e competências.
No rol de preferências já identificadas, a aluna da rede pública aponta português, matemática e história. Mas as curiosidades são vastas e, nesta fase de ensino, o campo da ciência também impulsiona sua dedicação.
Em 2022, Flávia foi medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA).
Esta matéria integra a série “Terra de Sabidos", publicada pelo Diário do Nordeste com patrocínio da Assembleia Legislativa do Ceará e cujo foco é contar histórias de estudantes da rede pública estadual do Ceará e da rede municipal de Fortaleza, que, via educação, tiveram as trajetórias alteradas, conquistado oportunidades, e reconhecimentos local, estadual e nacional.
“Antes da inscrição (na OBA), a professora explicou sobre a olimpíada. Indicou sites para a gente estudar. Eu vi vídeos na internet, pesquisei como seria. Fiz 166 questões do simulado. Tinha algumas palavras que eu não entendi e fui procurando para poder entender. No simulado parecia ser mais difícil. Confesso que fiquei com muito medo de não tirar nota boa”.
Reconhecimento do desempenho
Na escola, em que Flávia estuda desde a metade de 2021, advinda de outra unidade da rede pública, quando o resultado foi informado, o sentimento, diz ela, foi um misto de alegria e surpresa. “A minha antiga professora falou sobre o resultado. Ela falou: Flávia tenho uma notícia para te dar. Você ‘fechou a prova’. Nesse dia, eu também tirei 10 em ciências e matemática”, afirma orgulhosa.
“Eu nem sabia que a gente ia receber uma medalha. Quando me falaram, eu já fiquei mordendo as unhas e nem acreditava. Muitas pessoas me falaram que eu tenho notas boas, me elogiaram, parabenizaram. Me deram até abraços”.
A prova da OBA, diz ela, trata de “astronomia, planeta terra, sistema solar e estrelas”. É a forma encontrada para descrever assuntos que tanto aguçam a própria curiosidade. Tais temas, assim como outros interesses, a fazem ter motivação para estudar por conta própria, para além da escola.
O relato da estudante é reiterado pela mãe, Rosimeire Mendes, que acrescenta: “Flávia é muito dedicada em tudo que faz. Ela é praticamente autodidata. Ela vai lá. Ela não precisa que eu fique em cima cobrando. Quando eu pergunto: tem tarefa de casa? Ela diz: já fiz. Isso me deixa muito feliz e creio que ela vai ter um futuro bom”.
Em 2023, Flávia deverá mudar de escola, pois a atual tem séries iniciais do ensino fundamental e ela irá avançar para o 6º ano. O objetivo, explica a mãe da estudante, “era ir para uma escola de tempo integral. Mas não foi possível”.
Limitações da rotina familiar - conciliação de atividade, trabalho e localização das escolas - acabaram definindo a próxima unidade escolar da estudante, que será uma unidade regular, tal qual a que ela estuda atualmente.
Em casa, o celular simples é uma das ferramentas para estudo. “Não tem o nível de pesquisa que ela gosta de fazer, mas ela usa”, completa a mãe. O lamento é também por não poder fazer nenhum investimento na formação de Flávia.
“Agora não tenho como colocar em um curso, reforço, atividade que possa aproveitar a inteligência e a dedicação dela”, lamenta a mãe.
Expectativas
As limitações pressionam. Mas não a paralisam. A conquista da medalha da OBA foi um dos impulsos para reverter determinismos, como os estigmas atrelados aos alunos da rede pública. Na trajetória, Flávia, embora não tenha absoluta clareza, de algum modo, percebe que “não depende somente de si” para manter-se firme na trajetória escolar.
No colégio anterior, lembra ela, já tinha sido reconhecida por boas notas em matemática e história. Com o bom desempenho na OBA, o estímulo é incrementado.
No horizonte desejado, Flávia ainda permanecerá alguns anos na escola até avançar rumo ao ensino superior. Nos planos da pequena aluna, um dia será médica cirurgiã. Até lá, ela deseja que na escola tenha mais contato com computadores, laboratórios. Um sonho mais próximo é aprender outro idioma: "quero falar inglês”.
No contexto de Flávia, aprender conteúdos guarda dificuldades, mas é uma dimensão bem mais simples que outros aprendizados. Nesse trajeto, é preciso se educar para confiar em si. Não sem apoios. E ser reconhecido é um passo dessa lição.