“Todo dia é um dia para eles de muita sobrevivência. Então, para mim, tá aqui é uma resistência. Tentando ajudar a manter a vida, principalmente desses adolescentes que estão em condições de vulnerabilidade social”. O público em questão são adolescentes de escolas públicas, moradores de áreas pobres e que, assim como parte da população, ainda vivenciam limitações ao buscar cuidar da saúde mental. O depoimento é da psicóloga Iana Maria Alves que, egressa da rede pública, está cada vez mais ciente da relevância da própria profissão e do quanto pode ser instrumento de ajuda e mudança.
Iana, que terminou o ensino médio em 2013, em uma unidade da rede estadual, Escola Patronato Sagrada Família, no bairro do Antônio Bezerra, em Fortaleza, naquela altura sequer pensava que poderia se formar e passar a “fazer diferença” na vida de pessoas que estão justamente nessa fase da vida. Naquela época, relata, as perspectivas de ingressar na universidade eram muito reduzidas.
Entre a conclusão do ensino médio e o ingresso da Universidade Estadual do Ceará (Uece) passaram-se 5 anos. Em 2018.1 teve início a formação em Psicologia. Iana, aos 28 anos, agora já formada, relembra que “a recepção do curso de Psicologia é muito linda, muito rica, porque os professores que acolhem a gente juntamente com os alunos. Então, desde o primeiro momento, a gente tem noção do que são as extensões universitárias e a importância do tripé ensino, pesquisa e extensão”.
O Diário do Nordeste publica em 2024 a terceira edição do projeto Terra de Sabidos e conta “histórias de vai e volta”. São experiências de alunos egressos de escolas públicas estaduais do Ceará que, ao saírem desse espaço, e ingressarem em novos campos de estudo, como o ensino superior, retornaram às suas regiões de origem, territórios, bairros, desenvolvendo alguma iniciativa de impacto social positivo e compartilhando benefícios.
E foi em um desses projetos que ela ingressou e segue de modo voluntário mesmo após formada. A iniciativa é o Núcleo Interdisciplinar de Intervenções e Pesquisas sobre a Saúde da Criança e do Adolescente (Nusca). Na prática, é um projeto de extensão que acolhe e atua com adolescentes em ações de apoio psicológico.
A extensão é coordenada pela psicóloga e professora doutora, Alessandra Xavier, que, acrescenta Iana, é também quem paga diversos custos das ações tendo em vista que o número de bolsas é reduzido e as intervenções nas escolas demandam, por exemplo, a compra de material.
A iniciativa, afirma, conta com 3 estudantes do Serviço Social e 15 da Psicologia, de diferentes semestres. Iana ajuda na supervisão do projeto e atua diretamente nas unidades escolares.
A ideia de ingressar nas escolas públicas para oferecer uma mínima garantia de ajuda psicológica surgiu em 2017. Hoje, a rede pública estadual tem 398 mil alunos e 62 psicólogos educacionais lotados nas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Credes), no interior; e na Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor), na Capital, segundo a Secretaria Estadual da Educação (Seduc).
Foi diante da alta demanda, do reduzido número de profissionais e das emergentes crises de ansiedade e sofrimentos mentais evidenciados por jovens, que o projeto nasceu. Em 2018, 15 escolas foram atendidas no projeto. O projeto teve uma interrupção e depois foi retomado. Hoje, são três unidades, e apesar da redução no número, segue resistente.
O acesso às unidades, destaca ela, também proporcionou o contato com outra situação grave, que precisa de atenção e atuação. “Em três meses de trabalho, mais de 60 tentativas de suicídio foram bloqueadas”, destaca. É um marco importante e muito preocupante ao mesmo tempo, ressalta Iana.
As escolas eram em bairros periféricos, como o próprio território no qual Iana mora Antônio Bezerra,e outros como Bom Jardim e Jangurussu. Hoje, o projeto segue no Pirambu e no Álvaro Weyne.
O público é composto por estudantes que têm algum envolvimento com grêmios estudantis e já têm mais envolvimento com as ações nas escolas, mas também aqueles que têm ansiedades e outros transtornos, relata Iana, e acrescenta: “É a possibilidade de você estar ali de frente com a realidade”.
Como é realizado o trabalho?
A iniciativa hoje segue se materializando no “chão das escolas” e uma vez por semana há encontro com os estudantes que dura cerca de 50 minutos. Esses alunos, explica, são selecionados pela própria unidade. Em algumas instituições, professores diretores.
A metodologia empregada nos encontros é “própria”, aponta Iana. E, por vezes, os próprios estudantes conduzem as atividades num processo de autogestão.
O trabalho, relata Iana, é basicamente voluntário e os estudantes que não têm bolsa, destaca: “tiram o dinheiro da passagem no próprio bolso, e materiais que a gente leva como papel, lápis de cor é a professora Alessandra que compra”.
Nos encontros toda participação é voluntária e em muitos momentos os próprios adolescentes fazem a autogestão do espaço. Uma das observações é que não há proibições de uso de celular, mas, no momento do encontro, muitos abdicam dessa utilização. “Eles mesmo não usavam os celulares. Então, a gente nunca precisou impor nada, era tudo um acordo com esses adolescentes”, completa.
No Pirambu, a escola está localizada “em um território muito delicado”, aponta. Dentre as demandas estão as orientações e discussões sobre uso de álcool e outras drogas, de casos de desamparo dos adolescentes e racismo, por exemplo.
Desenvolvemos um livreto e nesse livreto temos algumas temáticas. Selecionamos essas temáticas para poder trabalhar com os adolescentes, mas elas podem sofrer alterações porque, às vezes, eles dizem que não querem trabalhar esse assunto, não querem conversar. E nós respeitamos.
No rol de assuntos, aponta ela, o racismo sempre rende muitos debates. “A questão do racismo é muito forte, de não poder ir ao shopping, de não poder ir a uma praia, de ser toda hora observado, de ser tratado como marginal, então, isso para eles tem um impacto muito grande. Então eles se identificaram muito mais com essa temática”.
O excessivo uso de telas e como minimizá-lo é outra urgência trazida pelos adolescentes. Nesse caso, Iana explica, “levamos muitos jogos lúdicos. Construímos tabuleiros, vamos adaptando para a temática aquela temática que vai ser trabalhada. Eles adoram”, e acrescenta até destacam ““São 50 minutos que eu juro para a senhora, que eu não pego no celular”.
Os meninos passam o dia todo na escola, mas depois das escolas, eles vão para a sociedade, vão para a família. As demandas lá de fora atravessam a escola, então, não posso falar somente de problemas relacionados ao ensino e a aprendizagem propriamente dita, é muito mais do que isso. Também falamos sobre questão social, territorial, porque isso atravessa a vivência e impacta o ensino e a aprendizagem.
Iana lembra que temas como autoestima, autocuidado e possibilidade de transformar trajetórias, perpassam e mobilizam os encontros. E no aspecto que demanda ainda mais atenção, no desenvolvimento do projeto muitas tentativas de suicídio foram bloqueadas.
No processo, durante a pandemia de Covid, o trabalho do Nusca também foi realizado de modo virtual com grupos distintos de cerca de 30 adolescentes se reunindo durante a semana. Jovens de Iporanga, Milhã, Pedra Branca, Piquet Carneiro, dentre outros municípios do interior chegaram a participar das atividades.
Por que voltar?
Em janeiro de 2024, Iana colou grau e poderia ter deixado o projeto. Mas, decidiu voltar. “Porque aqui eu digo que a minha segunda casa”, destaca. Regressar para perto dos adolescentes foi uma escolha, de vida até, tendo em vista quão intensas são algumas questões e sofrimentos apresentados pelos jovens.
Só de estar ali com eles e eles falarem, eu to aqui hoje porque eu tenho a senhora já é uma recompensa. Estou aqui, realmente, porque eu amo estar aqui. Eu amo fazer parte da extensão, eu amo estar com os adolescentes.
No retorno, a psicóloga assumiu a supervisão do projeto que se divide em três grupos para contemplar as unidades atendidas.
Retornar, aponta, foi uma forma de desenvolver a própria profissão e ofertar saúde mental a uma população tão vulnerável e que ainda depende significativamente da execução de políticas públicas.
“Então, para mim, voltar e cuidar é muito mais valioso. O meu retorno é de gratidão. E é para oferecer porque eles não têm condições realmente de ter acesso. Não têm conhecimento de equipamentos que podem cuidar e os equipamentos que cuidam estão superlotados. Então o meu retorno é justamente isso, é incentivar os estudantes que estão na instituição, é ajudá-los também”, destaca.
Outro ponto é que o contato com os psicólogos e estudantes de psicologia no projeto, na grande maioria dos casos, é o único momento de possibilidade de alguma terapia para os adolescentes.
Iana vai além. Destaca que embora pareça uma entrega de via única, na qual estudantes são amparados por esse cuidado, ela persiste na iniciativa porque cada possibilidade de ajuda, cada rota alterada, cada adolescente que emerge das dores e se reconstrói, a faz ter contato com pessoas reais e com a complexidade que elas trazem. E o sentido de sua formação é justamente melhorar esses espaços e essas vivências.