Ex-alunos do tempo integral no Ceará se formam e voltam como professores às escolas onde estudaram

Nascer em famílias pobres, em cidades com poucos recursos, e desde cedo “precisar entender” os limites impostos por essa condição. Mas, apesar das baixas expectativas, manter um caminho como referencial: o da educação. No interior do Ceará, há cerca de 10 anos, alunos da rede pública estadual começaram a alterar as rotas “pré-determinadas” agarrando-se a essa possibilidade.

Não sozinhos, tampouco sem estrutura ou incentivos. Pelo contrário, precisaram de um conjunto de políticas públicas para, inclusos em escolas de tempo integral com ensino técnico, finalmente, acessarem chances. Concluíram o Ensino Médio e entraram na universidade. Mais ainda, após formados, voltaram às unidades onde estudaram, agora, com uma profissão: são professores nesses locais.  

A história de três jovens cearenses, ex-alunos da rede pública e hoje professores dela, integra a série de reportagens especiais do Diário do Nordeste, "Terra de Sabidos - escola de todos os tempos". Naturais de distintas regiões do Estado, Fernanda Laís Bastos, de Itapajé; Rydleily Albuquerque, moradora de Aurora; e Renato Moreira, residente de Pedra Branca, têm trajetórias cheias de semelhanças.

O elo que os conecta é: ter a educação como ponto de partida e chegada para as realizações profissionais e pessoais, com impactos nos trajetos individuais, mas também em que os cerca. 

Nos percursos, os egressos da rede pública estadual compartilham experiências. Por exemplo, terem, em plena a infância e juventude, tido apreço e entusiasmo pelo aprendizado, mas estarem em contextos de escassez de oportunidades em pequenas cidades do interior.  

Os três, há cerca de uma década, vislumbraram na grande novidade apresentada na área educacional do Ceará, à época, as escolas de tempo integral com ensino técnico, uma perspectiva de transformação para o próprio rumo. Usufruíram desse acesso, se formaram e hoje motivam aqueles que estão nos lugares nos quais um dia eles já estiveram.  

Esta matéria faz parte da segunda edição da série de reportagens especiais, "Terra de Sabidos - escola de todos os tempos", que conta a história de estudantes, professores e gestores de unidades estaduais do tempo integral, discutindo o impacto desse modelo de ensino na vida dos alunos e de toda a comunidade escolar, assim como de cidades inteiras.

Interesse pela área da saúde 

Em Itapajé, o espaço de oportunidade foi a Escola Estadual de Educação Profissionalizante Adriano Nobre. Naquele 2011, quando há 2 anos a unidade havia estendido a jornada e se tornado profissionalizante, Fernanda Laís Bastos ingressou no Ensino Médio.

A instituição que há anos se mantém no topo da lista estadual e também nacional com as melhores notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) - indicador que mede a qualidade educacional no país - integra a rede pública estadual e fica no bairro Esmerino Gomes, de alta vulnerabilidade social na cidade do interior.

Foi lá que Fernanda nasceu e aprendeu cedo sobre a condição financeira da sua família e dos vizinhos. “A chegada da Adriano Nobre foi algo inovador. Foi uma grande oportunidade para todos os jovens porque, além do Ensino Médio, ter o ensino técnico foi algo que nossos pais não tiveram”, relembra. Em 2011, interessada pela área da saúde, optou pelo curso técnico de Enfermagem. 

Percebo hoje o quanto a escola agregou coisas boas e não somente no sentido da cognição. Mas no sentido emocional. Com o apoio dos professores, com o incentivo, com as disciplinas extras, com o Projeto de Vida. Porque a partir do momento que você sabe para onde você quer ir, você sabe as estratégias.
Fernanda Laís Bastos
Ex-aluna de escola pública e professora do curso técnico de Enfermagem

No processo, na qual a jornada escolar ampliada ainda era encarada com uma certa objeção pela população, Fernanda relata que encontrou na escola “espaço para desabrochar”.  

A conclusão do Ensino Médio foi em 2013. No mesmo ano ela realizou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguiu nota suficiente para ingressar no curso de Enfermagem na Universidade Federal do Ceará (UFC). Aos 17 anos, relata ela, “sem saber como pegar um ônibus”, partiu rumo à Fortaleza. 

“Apesar de não saber de algumas coisas, eu vinha com aquela bagagem da escola, aquela responsabilidade, pontualidade. Lembro de frases dos professores, conselhos e eles ecoavam na minha cabeça”, completa. 

Para se sustentar, Fernanda utilizou a formação assegurada na escola. Passou a trabalhar como técnica de enfermagem em um hospital particular na Capital. Aos 18 anos, era universitária e plantonista noturna no setor clínico da unidade. “Trabalhei por 5 anos como técnica de enfermagem até me formar. E aí, o mesmo hospital em que eu trabalhei me oportunizou como enfermeira. Me chamaram para trabalhar como enfermeira”. 

Eu que venho de origem humilde digo para eles: se eu consegui, vocês vão conseguir. Conto sempre o exemplo da cerâmica que coloquei na minha casa. Era algo tão simples, mas que para mim, que venho do bairro, que fui para Fortaleza, que trabalhei, é um sonho. Eu ter a casa da minha mãe, ter minha casa. Essas realizações só foram possíveis por meio do estudo, da disciplina.
Fernanda Laís Bastos
Ex-aluna de escola pública e professora do curso técnico de Enfermagem

Anos depois, motivos pessoais a fizeram regressar a Itapajé. Em 2019, ela trabalhou em hospitais da região. Já em 2021, fez a seleção do Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), e em setembro daquele ano começou a trabalhar como professora das disciplinas técnicas de enfermagem na escola onde cursou o Ensino Médio. E assim permanece. 

A primeira atitude na unidade, relata, foi contar a própria história. “Cheguei de forma carinhosa”, acrescenta. Para ela, tem sido prazeroso “convencer as pessoas através do seu exemplo”. A experiência é uma oportunidade de retorno literal. Devolver aquilo que lhe foi proporcionado. E fazer com que estudantes da mesma origem possam vislumbrar chances de futuro. 

Enfrentar o medo da matemática

No Cariri, Rydleily Albuquerque, professora de matemática da Escola Estadual de Educação Profissionalizante Leopoldina Gonçalves, em Aurora, vivencia um processo parecido. Nascida na zona rural do município, filha de agricultores, precisava enfrentar 20km transportada em “pau de arara” (espécie de improviso feito em caminhões para transportar passageiros) para chegar na escola em que cursava o Ensino Médio. 

Não tinha transporte público para trazer os estudantes. Minha mãe falou com o motorista do transporte - carro de linha - que transporta as pessoas para a cidade. Minha mãe pagava por mês. Vinha pendurada nos carros. Depois, no 3º ano, meus pais se mudaram para a sede da cidade.
Rydleily Albuquerque
Ex-aluna de escola pública e professora de matemática

Rydleily, em 2012, foi estudante da primeira turma de ensino profissionalizante da história da escola. Entrava cedo e passava o dia na unidade que hoje tem 474 alunos. “Quando eu vim para cá, me deparei com uma realidade totalmente diferente da que eu vivia. Eu passava o dia inteiro na escola. Tinha muitos professores. Comecei a conviver com pessoas diferentes. Percebi que o mundo ia além do que eu imaginava. Ia além daquela caixa que eu vivia no sítio. Comecei a me inspirar nos meus professores”, destaca. 

Para garantir renda, ela começou a dar aulas de reforço em casa nos finais de semana. A futura profissão já ganhava evidências naquela experiência cuja finalidade objetiva era apurar dinheiro para ajudar nas despesas de casa. Na escola a opção foi pelo curso técnico de Agrimensura.

Em 2014, fez o Enem e na época optou pelo curso de tecnóloga em Saneamento Ambiental. Para isso, se mudou para Juazeiro do Norte. Na maior cidade do Cariri, distante  76 km de sua terra natal, morou por 3 anos. 

Fiz a faculdade e consegui concluir. Com muita dificuldade, consegui. Fiz uma Pós-Graduação em Engenharia Ambiental e surgiu uma vaga para professora de ciência em uma escola particular em Aurora. Aí entreguei meu currículo nessa escola e fui contratada. Eu ia para a faculdade de manhã em Juazeiro e voltava para dar aula à tarde em Aurora. 
Rydleily Albuquerque
Ex-aluna de escola pública e professora de matemática

Ao encerrar a faculdade, Rydleily escolheu fazer uma licenciatura em matemática. “Sempre fui muito boa com número, meu curso tinha muito cálculo. Terminei a faculdade e comecei a ensinar o dia inteiro”.

Em 2022, por incentivo da mãe, ela se inscreveu no processo que selecionaria o novo professor da escola onde estudou.  Disputou com 13 pessoas e foi aprovada. No mesmo ano, ingressou como professora na antiga escola e passou a atuar junto com os professores de química, informática e filosofia que a ensinaram. Já a professora de matemática da época se tornou coordenadora na escola. 

“O perfil dos alunos mudou muito. Cada vez mais, os alunos estão criando vínculo com a escola. Do jeito que meus professores me inspiraram na época, eu quero fazer isso pelos meus alunos. É uma cidade muito pequena, a maioria é da zona rural. Eu sei como é difícil. Os pais são agricultores e fazem de tudo para dar uma vida melhor, mas infelizmente não tem como”, relata. 

A matemática é vista como se fosse o terror. Sempre passo para eles que eles precisam compreender e não ter medo. Quando você tem medo, você quer se afastar. Mas se você se aproximar e começar a conhecer, se torna mais fácil. Se a gente for só de conteúdo, fica pesado e o aluno não consegue aprender. Eu transformo as aulas. Saímos de sala, pego régua, trena. Trago slide, filme, utilizo jogos matemáticos.
Rydleily Albuquerque
Ex-aluna de escola pública e professora de matemática

Na avaliação da ex-aluna e agora professora, a escola de tempo integral altera realidades. “Muitas vezes, tem alguns alunos que não se sentem confortáveis no âmbito familiar. Por problemas, não só financeiros, mas familiares e eles acham um acolhimento aqui”. Outra perspectiva, ressalta, é a formação técnica que ajuda na sustentabilidade financeira. 

Rydleily se tornou professora da temida disciplina de matemática. No Ceará, essa é uma das áreas que carece de avanços, conforme demonstram as avaliações externas. 

No ciclo de retorno, conta ela, se tornou professora da filha de um ex-professor. “Então, eu posso continuar esse ciclo. Porque eu não posso voltar e dar o melhor para a minha cidade, para o meu povo? Eu estou aqui como professora por conta dessa escola”, defende.

Cientista apaixonado pela química

Em Pedra Branca, no Sertão Central, o morador do distrito de Mineirolândia, Renato Moreira, fez o Ensino Fundamental e o Médio em escolas públicas. No 9º ano ouviu falar, em 2012, de uma grande novidade: o ensino de tempo integral. No ano seguinte, ingressou no modelo ao chegar ao Ensino Médio.  

A unidade onde ele vivenciou a nova experiência é a Escola Estadual de Educação Profissionalizante Antonio Rodrigues de Oliveira, localizada na sede de Pedra Branca. Lá ele entrou como aluno em 2013 e saiu em 2015. No processo, ingressou no curso técnico em Redes de Computadores, mas, se descobriu “apaixonado pela química”. 

Sempre estudei em escola pública. Venho de uma família pobre e minha mãe sempre falou que a educação ia mudar minha vida. E eu tomei isso como uma verdade. Minha mãe era diarista e meu pai pedreiro e fazia bicos na agricultura. Nunca tinha ouvido falar em tempo integral. Quando cheguei na escola era muito concorrido na época. Minha mãe ficou muito preocupada como era que eu ia todo dia percorrer 18 km do meu distrito para a sede da cidade.
Renato Moreira
Ex-aluno de escola pública e professor de química

Nessa etapa, já havia identificado que a influencia dos professores é capaz de mobilizar sentimentos e ações. “Tive 2 grandes professoras e comecei a desenvolver pesquisa. Desenvolvi o primeiro sistema de tratamento de água”, acrescenta.

No mesmo ano em que concluiu o Ensino Médio, fez o Enem e obteve nota para ingressar na Universidade Federal do Ceará (UFC) no bacharelado em Química. Ali, as limitações financeiras o impediram de seguir no curso. Renato regressou os 253 km que separam sua terra natal de Fortaleza. 

No ano seguinte, ele novamente conseguiu entrar no Ensino Superior. Dessa vez, no Instituto Federal de Educação do Ceará (IFCE), em Quixadá, cidade também do Sertão Central. A distância entre a casa e a sede da nova instituição de ensino caiu para 124 km. De mudança para lá, ele cursou a licenciatura em química. 

“A formação técnica da escola profissionalizante me ajudou na faculdade porque eu tinha uma disciplina de química computacional, por exemplo, na qual a gente analisava moléculas só pelo computador. E foi graças ao técnico em redes que eu me destaquei nessa área”, conta. 

Em 2017, Renato já atuava dando aulas na rede particular de Senador Pompeu, cidade também do Sertão Central. Nessa experiência passou 2 anos. Em 2019, veio a oportunidade que lhe faria completar um ciclo de retorno não só à terra natal, mas como ao espaço de formação que o impulsionou: uma vaga de professor de química na Escola Estadual de Educação Profissionalizante Antonio Rodrigues de Oliveira. 

Moro com minha família ainda. E quanto à questão financeira, eu usei a educação profissional de tempo integral para mudar minha vida e isso afetou minha família. Minha mãe não é mais diarista. Nós não somos ricos, mas temos uma condição mais estável, comparada à época que ela tinha que ir para a casa das pessoas, sair cinco horas da manhã para poder me dar um óculos”. 
Renato Moreira
Ex-aluno de escola pública e professor de química

Renato conta que fez a seleção e foi aprovado. Desde 2019, leciona a disciplina de química, coordena as Olimpíadas da Escola; incluindo o acompanhamento dos alunos que participam das mais diversas competições científicas; e orienta alguns grupos de pesquisa.

Na escola em que estudou, Renato, hoje, com 24 anos, “devolve” um pouco dos benefícios que os envolveram. A unidade que tem 499 alunos. Para ele, o local deve ser um espaço de acolhimento, orientação e formação, além de ser favorecido pela possibilidade de ampliar vínculos na jornada estendida. 

“O contato com o curso técnico, com professores que têm, muitas vezes, uma história muito parecida com a deles, faz, de fato, os alunos terem desejo. Primeiro eu tive vontade de ser cientista, e na escola profissional, eu virei químico. Um cientista químico. Então, a escola profissional vai mostrar que o indivíduo pode ser o que ele quer ser, mas que, muitas vezes, ele acha que não é capaz”, defende.