Uma escola de 74 anos, no interior do Ceará, que há 4 anos passou por uma grande mudança: saiu do tradicional modelo regular para o integral. Nessa mesma unidade, a situação socioeconômica dos alunos exemplifica as desigualdades tão evidentes no Brasil e escancaradas na pandemia de Covid. Lá, conforme o Indicador de Nível Socioeconômico (Inse) de 2021 (dado mais recente) do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 72,73% dos alunos estão nos níveis I e II, os mais baixos na escala que mede a condição financeira deles e das famílias, além da escolaridade dos pais.
A unidade é a Escola de Ensino Médio de Tempo Integral São José, uma tradicional instituição na cidade de Granja que, quando criada na década de 1940, era particular, e desde a década de 1960, integra a rede pública estadual.
A escola de tempo integral que tem proporcionalmente os alunos mais pobres no Ceará, segundo dados do Inse de 2021, em paralelo, alcançou nas duas últimas edições, de 2019 e 2021, notas acima do esperado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), - indicador que mede a qualidade educacional no país a partir de dois fatores: o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações.
Esta matéria faz parte da segunda edição do projeto série de reportagens especiais, "Terra de Sabidos - escola de todos os tempos", que conta a história de estudantes, professores e gestores de unidades estaduais do tempo integral, discutindo o impacto desse modelo de ensino na vida dos alunos e de toda a comunidade escolar, assim como de cidades inteiras.
Atualmente, 1.100 alunos estão matriculados na instituição. Eles estão distribuídos no prédio da sede da cidade (em Granja) e em outros 4 anexos localizados em pequenos distritos na zona rural do município. O tempo integral atende aos alunos da sede.
Na escola, em 2019, o Ideb projetado - que varia de 0 a 10 - era 3,2, a unidade alcançou 4,2. Já em 2021, a projeção era de 3,4 e o contabilizado foi de 4,3. Um resultado de qualidade acima do que era previsto sobre um indicador que junta dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e das médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Equidade no sistema educacional
A situação evidencia um processo debatido na área da educação e que ganha força com a efetivação de determinadas políticas públicas: a possibilidade de evolução da equidade no sistema educacional público no Estado.
A estruturação de escolas de tempo integral em áreas vulneráveis e o acesso a estruturas que garantam chances mais equilibradas aos estudantes de diferentes condições sociais são elementos que compõem esse caminho.
Na Escola São José, onde os alunos entram às 7h15 e saem às 16h30, o momento é de adaptação ao modelo que teve início em 2019. Antes disso, o funcionamento era manhã, tarde e noite com turmas regulares.
A mudança começou a ser vivenciada pouco antes da pandemia de Covid, crise sanitária que comprometeu também os processos educacionais. Mas, ainda assim, felizmente, na escola os índices de aprendizado seguem em evolução.
Em outubro (de 2018), fomos convocados para uma reunião na CREDE e repassaram que havia uma intenção do Estado de transformar a escola em tempo integral. Respondi que a estrutura não era a desejável, mas por acreditar que a escola podia mudar a vida dos alunos, a gente ia aceitar o desafio.
Diante da necessidade de adequação à jornada estendida, a escola passa constantemente por reformas, conta a diretora. Piso trocado, revestimento das paredes e climatização são alguns pontos de melhoria já assegurados. Outros incrementos são os laboratórios: de informática, de ciência, de matemática e de física.
Na rotina escolar, outra estrutura característica da cidade de Granja foi incorporada, a sala de música. Esse é o espaço preferido dos componentes da banda de Fanfarra. As aulas de música são uma das atividades realizadas no tempo integral e resulta em apresentações artísticas dos estudantes em alguns espaços, como no tradicional desfile de 7 de setembro na cidade.
“A população espera a banda da escola passar. Nós vamos tentando identificar o que os alunos gostam para trazer eles para a escola. Quando a gente percebe as afinidades, os dons, vamos explorando”, completa a diretora.
Estudantes vulneráveis e em áreas remotas
Um ponto que ainda é desafiador na escola é a situação dos estudantes que moram na zona rural em distritos muito distantes. Nessas áreas, relata a diretora, há conversas permanentes para fazer com que os alunos matriculados lá, tenham as mesmas oportunidades que os que estão na sede do município.
Nas comunidades mais remotas, conta Leididaiane, há também um diferencial: a participação dos pais e responsáveis na relação com a escola. “são muito presentes. Lá, você marca uma reunião de pais, aparece 100. Aqui na sede aparecia 20”, destaca a diretora.
“Essas localidades ficam muito longe. Não tem condições nenhuma de um transporte sair do distrito de Ibuguaçu, por exemplo. Os meninos teriam que sair de lá 2 horas da manhã. No Enem, os meninos fazem isso, pois tem localidade que fica distante até do centro dos distritos. Como é um polo de aplicação eles saem muito cedo até sem café da manhã. No dia que termina a prova, por volta de 17h30 eles chegam em casa por volta de 23h30”.
De modo geral, conta a diretora, o perfil socioeconômico dos alunos da São José é “muito baixo” e acrescenta “tanto socioeconômico como socioemocional. Muito baixo. Muito crítico. Aqui na escola são pouquíssimos os alunos que têm uma base familiar estruturada ou que você sabe que ele tem no mínimo três refeições diárias”.
O que os alunos pensam?
Entre os alunos, a experiência de estudar em uma escola na qual outros membros da família já estudaram é recorrente. “Meus irmãos não estudaram nessa escola. Mas o resto da minha família toda estudou aqui. Meu pai, minha mãe. Então, já tinha essa bagagem que eles contavam das história deles aqui e eles são 100% confiantes comigo aqui”, relata Jessica Maria Fontenele Pereira, 17 anos, aluna do 2º ano.
De acordo com ela, o ingresso na escola em 2022 “foi muito diferente”, pois ela nunca tinha estudado em tempo integral.“Quando eu entrei, no começo do ano passado eu sentia muito sono, tinha acordar cedo, passar o dia todo na escola e eu demorei um tempinho para me acostumar”.
Mas, os hábitos mudaram e com o passar do tempo, Jéssica aponta que a percepção de cansaço deu lugar ao proveito de uma rotina que é muito dinâmica.
A gente tem as aulas normais e tem as eletivas que são da nossa escolha, dos nossos gostos. Tem o Ser Jovem para o segundo ano, que é praticamente um curso de informática. Isso também é uma coisa diferente, para não ficar repetitivo as mesmas matérias o tempo todo na sala de aula.
Quanto ao perfil dos estudantes, ela avalia que é “bem diversificado” e completa: “tem gente que tem mais condições e tem gente que não tem condições nenhuma. Por exemplo, se tem uma sala que tem mais gente com menos condições e com menos facilidade de aprender, o Professor Diretor de Turma (iniciativa da Secretaria de Educação implantada na rede estadual) tá sempre lá ajudando, orientando. Sempre a gente tá se ajudando porque a gente vira meio que uma família. Até nessa realidade socioeconômica que não é tão legal para algumas pessoas, a gente tá sempre tentando ajudar”, conta.
Para Arilson Pereira da Paz, 19 anos, aluno do 3º ano, a experiência no tempo integral também demandou um esforço de adaptação, sobretudo, porque o ingresso ocorreu na pandemia de Covid. Mas, posteriormente, com a volta das aulas presenciais, logo, a rotina “foi se ajustando”.
Meu primeiro ano foi todo remoto. Naquela época, era pelo celular que a gente estudava em casa. No segundo ano teve o tempo integral. Tentei me adaptar à rotina de acordar cedo, dormir no horário certo. Na aula em casa, devido à minha deficiência (visual), eu ouvia os vídeos e tinha tarefas. Nesse caso, a Professora Diretora da Turma ia até minha casa para eu poder fazer as tarefas e avaliações.
Arilson destaca que no cotidiano o revezamento entre aulas práticas e teóricas ajuda na jornada que é de 9h diária. “Tem eletivas, tem clubes, tem campeonatos. A escola pra mim é uma família. A gente convive todo santo dia. Todo mundo que fala comigo eu reconheço a voz. Tenho familiares aqui, primos, primas. A escola sempre tenta levar o aluno para um potencial de destaque, que o aluno se inspire, se identifique”, reforça.
Sobre acessibilidade e inclusão, o estudante relata que “os professores não me deixam de fora. Sempre que colocam no quadro, eles ditam o que estão escrevendo, a imagem que está passando para que eu venha entender o que tem ali. Por ser o primeiro ano que o colégio recebe um deficiente visual, ainda precisa melhorar a estrutura, mas o colégio me acolheu como se fosse um filho. A diretora pediu a CREDE um funcionário para me auxiliar, me ajudar a me locomover, me guiar. Mas eu já conheço o colégio e tem momentos que eu já ando só”.
Nas salas, Arilson usa um reglete (instrumento criado para a escrita Braille) nos processo de aprendizagem. Ele também ostenta a medalha recebida no primeiro semestre de 2023 por ser considerado um dos melhores músicos da escola. “O que botar eu tô tocando, é bateria, é caixa, é instrumento de sopro, é tuba”.
O que garante os bons índices?
O professor José Lira Dutra, que ingressou na escola em 2019, no ano da implementação do tempo integral, e é um dos professores diretor de turma, destaca que na jornada estendida “Tudo é potencializado, tanto as coisas boas, como também as realidades culturais, socioeconômicas, psicossociais dos alunos”.
Uma das possibilidades que a gente procura dentro da escola é o aluno chegar, muitas vezes, sem nenhuma perspectiva de cursar uma faculdade e a gente trabalhar e dizer você é capaz, você não só é capaz, como você deve ir para o ensino superior porque o mundo atual pede isso.
Ele explica que o município de Granja é um dos que têm baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Ceará e que na escola há “várias realidades”.
“Temos famílias em bairros que não têm água. O básico. Nós temos alunos que acordam de madrugada para esperar água na torneira. A escola é um espaço não só do aprendizado teórico, é prático e é uma forma deles se encontrarem no mundo”, destaca o professor.
Para a professora Ana Paula Peixoto da Silva, que trabalha na instituição há 18 anos, uma das dimensões que ajuda no alcance das metas é a conexão da comunidade escolar, com o envolvimento dos pais, e a ênfase na prática pedagógica. “Quem avalia aluno é avaliação externa, professor se preocupa com a prática pedagógica”, completa.
Ela acompanhou o processo de mudança do formato regular para o integral e destaca que, na transição, logo foi detectado que “era muito mais do que dar uma aula, entraram as questões socioemocionais”, relembra.
Um dos pontos que garante o diferencial, relata, é a acolhida no início de cada ingresso. “No começo do ano a gente faz uma acolhida e ela é muito importante para o aluno que vem do 9º ano entenda que a partir do momento que entrou ali, ele tem que ter um projeto de vida. Ele tem que saber o que ele vai fazer, se ele quer fazer o Enem, qual a área de conhecimento que ele mais se adequa. A gente já coloca isso no 1º ano. Não é interessante só o jovem entender isso, a família tem que entender também. Por isso, há uns 4 anos a gente vem superando nossas metas”.