Aos 2 anos de idade, Augusto já sabia ler. Ninguém o ensinou. Na escola, aos 3 anos, leu de forma fluída no Dia das Mães e teve um vídeo gravado. Com Ruan Kilian, a experiência foi parecida. Aos 3 anos, a leitura também aconteceu, sem orientação alguma.
Depois, outras semelhanças: o aprendizado em ritmo acelerado, a capacidade diferenciada para resolver problemas e as inquietações diversas e extremamente evoluídas para a idade. Augusto hoje tem 5 anos; Ruan, 12 anos. Ambos moram em Fortaleza e são superdotados.
A superdotação é um fenômeno multidimensional e, de modo amplo, é caracterizada pelo desenvolvimento de habilidades significativamente superior à da média da população em alguma das áreas do conhecimento.
Na atualidade, o diagnóstico da superdotação leva em conta as diversas inteligências e não apenas a dimensão mensurada pelos testes de Quociente de Inteligência (QI).
Nos trajetos de Augusto e Ruan, marcados por similaridades, ao contrário do que os mitos e o imaginário, muitas vezes, projetam sobre o assunto, eles, e as respectivas famílias, não usufruem de um vasto mundo de vantagens, bônus e conquistas, somente por estarem enquadrados nesta condição.
Em seus percursos, assim como outras crianças e adultos superdotados, carregam os triunfos frutos do próprio desenvolvimento, sobretudo, quando são acolhidos e estimulados considerando as características específicas.
Assim como outras dezenas de estudantes identificados com superdotação ou altas habilidades nas escolas do Ceará, sejam da rede pública ou privada, Augusto e Ruan já foram, e em várias situações continuam sendo, "invisíveis e solitários" nas jornadas escolares.
Esses locais de aprendizado também acumulam lacunas de acolhimento e ações efetivas de inclusão com foco nas necessidades específicas deste público.
Frente às reduzidas discussões sobre o assunto, o Diário do Nordeste veicula, a partir desta quarta-feira (19), uma série de matérias acerca de pessoas superdotadas/com altas habilidades e os processos, necessidades e dilemas dessa população.
Histórias de crianças e famílias; a identificação nas escolas; o diagnóstico, os direitos, e os alertas sobre o descompasso entre aceleração cognitiva e falta de amadurecimento emocional são alguns dos temas abordados.
Demora na identificação formal
As histórias de Augusto e Ruan se confundem em alguns aspectos, como: a ausência de orientação e informação que por efeito acabou gerando “demora” para os pais identificarem a superdotação dos filhos; a falta de preparo das escolas é um obstáculo recorrente; e processo de desenvolvimento e a batalha pela inclusão de ambos têm as famílias na dianteira, em um movimento, por vezes, isolado.
Quando Ruan já estava na escola, vivendo os efeitos da incompreensão; da ausência de interesse pelos estudos, apesar da alta capacidade intelectual; da rejeição diante do descompasso com os colegas de turma, Augusto estreava na jornada. Ele também não foi poupado dos percalços que o despreparo das unidades escolares em lidar com as especificidades dos alunos gera.
Logo, potencialidades de ambos, em distintos momento, já foram desperdiçadas.
Os dois alunos estudam em escolas privadas da Capital. Conforme o Decreto Federal 10.502 que, em 2020, instituiu a Política Nacional de Educação Especial, ambos, por serem superdotados ou terem altas habilidades, são público-alvo da política de educação especial.
A educação especial engloba também os estudantes:
- com deficiência;
- com transtornos globais do desenvolvimento, incluídos os com transtorno do espectro autista;
Pela lei, os estudantes com altas habilidades ou superdotação são aqueles que apresentam desenvolvimento ou potencial elevado em qualquer área de domínio, isolada ou combinada, criatividade e envolvimento com as atividades escolares.
Em busca do diagnóstico
“É normal que os primogênitos os pais demorem a perceber, porque não têm comparativo com outros filhos. No nosso caso, a gente não tinha como comparar. Então, com 1 ano e 9 meses, ele já identificava todas as letras do alfabeto, os números. A gente achava aquilo interessante. Mas não sabia que estava tão fora da curva do esperado”, relata a fotógrafa, Vaneuda Almeida de Paula, mãe de Augusto.
Na pandemia, com 2 anos, a criança começou a ler. Quando entrou na escola, no Infantil 3, diz a mãe, “a professora identificou que ele sabia ler, enquanto as outras crianças estavam aprendendo o alfabeto. A professora já trazia outras tarefas completas e específicas para ele”.
Aos 4 anos, por questões de logística da família, Augusto precisou deixar a primeira escola. O emocional pesou. Ele seguiu para a segunda instituição.
“Ele tinha um tédio imenso dentro da sala de aula, a leitura dele já estava muito avançada, com nível de 4º ano e ele no Infantil 4, e também a cabecinha dos amigos, que não acompanhavam. Ele passou a não ter paciência, a não querer mais estar no ambiente escolar”.
Augusto derrubava cadeiras, se jogava no chão. Chegou a agredir colegas. A escola ainda não havia identificado formalmente a superdotação. Os pais “corriam atrás” de informações. Em paralelo, a criança, diz a mãe, sofria a rejeição dos colegas de turma.
“Quando a professora começava a colocar a palavra, ele já respondia. Porque ele já sabia ler. E as crianças diziam: ‘tia, o Augusto não vale, porque ele já sabe. Então, ele não pode entrar na brincadeira’”.
“Mamãe, por que o ar é transparente? Por que nosso dedo consegue ultrapassar o ar? Por que o céu não pode ser colorido?”, são exemplos de perguntas feitas por Augusto nessa fase.
Na dianteira das tentativas de acolhimento do filho, Vaneuda descobriu que ele precisava de um Plano de Ensino Individualizado (PEI), a ser feito e executado pela escola.
O documento é um direito previsto na legislação brasileira para alunos com necessidades educacionais específicas, como superdotados, estudantes com deficiência, com autismo, dentre outros.
Mas, a escola não assegurou o PEI de Augusto e condicionou a tomada de qualquer atitude ao diagnóstico de superdotação.
Na busca, em Fortaleza, a mãe relata que ouviu de uma profissional que “só com 6 anos seria possível fazer o diagnóstico”. Mas, a mãe decidiu prosseguir e, em julho de 2022, a família viajou para Brasília, onde uma neuropsicopedagoga e uma neuropsicóloga, auxiliaram no diagnóstico. O parecer aponta Augusto como “profundamente superdotado”, e com superdotação intelectual.
Já para Ruan, que hoje está no 6º ano do fundamental, apesar das primeiras evidências da superdotação terem aparecido com menos de 2 anos, foi somente na pandemia de Covid que o diagnóstico foi formalizado. Com 1 ano e meio, conta a mãe de Ruan, servidora pública, Kelyne Rodrigues, ele “aprendeu o alfabeto sozinho”. Com 3 anos, já sabia ler.
“Eu não achava estranho porque era o primeiro filho. Ele sempre foi ‘muito pra frente’. Na escola ele começou a ter problemas porque com 3 anos, ele já lia e a professora estava querendo ensinar as letras. Aí quando chamava para brincadeira ele ia, e quando era pra aprender, ele não queria mais”.
Nessa época, relembra Kelyne, ela não tinha conhecimento sobre alta habilidade. “Eu precisava muito, mas não tinha nada na internet na época. No Ceará também a gente não encontrava muito material. Mas mesmo sem saber, na intuição, eu ia lá no colégio. Toda vez que ele mudava de série, era a mesma confusão”, acrescenta.
Diversos diagnósticos foram cogitados, destaca ela: “Autismo, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), mas nada se confirmava”, afirma. Com a pandemia, ela via redes sociais, começou a ter mais contato com informações de profissionais sobre superdotação.
Na pandemia, Ruan foi avaliado por uma psicóloga de Curitiba e o laudo constatando a superdotação foi emitido. “Eu lembro que eu chorei, porque eu disse, graças a Deus agora esse aqui é o meu filho de fato. Porque uma das coisas que a gente mais quer é conhecer o nosso filho, pra gente conseguir lidar com ele. Porque é muito difícil o lado emocional”, relata a mãe.
O laudo, segundo ela, foi entregue à escola para a criação do Plano Educacional Individualizado (PEI). “Para direcionar as tarefas, os aprendizados. Mas a escola nunca fez isso. E acho muito difícil alguma escola daqui do Ceará que faça isso”, completa a mãe.
No dia a dia, Kelyne Rodrigues e a família convivem com os vários indícios: “As fórmulas que ele faz, outra forma de pensar, de raciocinar. Outra coisa que marcava muito era o entendimento de algumas coisas do futuro. Os amigos dele não tinham maturidade pra isso mesmo. Essa sensibilidade de entender o que é consequência”.
A mãe de Ruan destaca ainda: “às vezes a gente esquecia que ele era criança e começava a tratar ele como adulto. E tem um efeito enorme”.
Aceleração escolar
No caso de Augusto, o laudo de superdotação orientou que a criança precisava avançar 3 anos na escola, o chamado processo de aceleração para que haja compatibilidade entre o desempenho e o ano cursado.
Em 2022, Augusto novamente mudou de instituição de ensino. Aos 5 anos, já são 3 escolas diferentes. Na nova unidade, ao invés de ir para Infantil 5, desde setembro de 2022, ele está no 2º ano do fundamental.
“Lá (nova escola) nós conseguimos todo o apoio. Mas isso é muito difícil dentro da luta dos pais de crianças com superdotação”, acrescenta a mãe de Augusto. Na escola, ele é acompanhado por um estudante de Psicologia.
“Eles prepararam a turma dele, as crianças do 2º ano para receber esse aluno de 4 anos. A psicóloga explicou que ele é mais novo, mas ele tinha que ser tratado por igual. As crianças amam ele, receberam ele de todo coração. É muito bonita a relação dele com os amiguinhos, ele com 5 anos (Augusto fez 5 anos em outubro) e os coleguinhas com 8 anos”.
A aceleração escolar é uma possibilidade prevista no Brasil na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei Federal 9.304/1996 - para as crianças e adolescentes identificadas como superdotadas.
No caso de Ruan, estudante de 12 anos, a opção da família foi, apesar da superdotação, não acelerar o processo. “Nunca pedi para acelerar porque eu tinha medo de saber como ficaria a questão emocional com as crianças mais velhas”, argumenta a mãe. O adolescente sempre estudou na mesma escola.
“As escolas estão perdendo muitas crianças. Primeiro, o colégio não identifica. Segundo, quando a gente pode pagar (para fazer o laudo), né? Porque não é barato. Quando a mãe que pode pagar faz um laudo desse, entrega para escola explicando quem é a criança, a escola, em geral, não faz nada”.
“Não poder” falar sobre o próprio filho
Batalha por identificação, inclusão, acolhimento e ainda buscar ter preparo para lidar com os desafios emocionais da convivência com crianças e adolescentes superdotados. Aos pais e responsáveis, é essa a equação.
Um dos impasses da complexa situação é achar a “medida certa” para evidenciar as características e condições dos filhos sem que seja uma exposição cheia de efeitos negativos.
“Chegou o ponto de querer falar para Júnior (Raimundo Bezerra Lima Júnior, pai de Augusto): não vamos mais ensinar nada a ele. Não vamos mais porque a gente começou a ver que ele sabia fazer conta de cabeça, somando. Júnior perguntando multiplicação e eu dizia: para. Eu com o pensamento limitante”, relata a fotógrafa, Vaneuda, mãe de Augusto.
O pai, Raimundo Bezerra Lima Júnior, publicitário e professor universitário, acrescenta: “É muito solitário para os pais de pessoas com altas habilidades. Porque você quando é pai, gosta de postar coisas dos filhos. Se a gente posta, é porque a gente está querendo aparecer. Entendeu? É muito complicado e muito solitário”.
Já a mãe de Ruan, Kelyne Rodrigues, destaca que há muitos mitos sobre superdotação. Um deles, relembra, é a ideia de que só há benefícios.
“O maior desafio que eu já tive na minha vida é ser mãe de um superdotado. Pelo lado emocional, pelo lado cognitivo, por você não saber lidar, para você tentar entender a cabeça dele é diferente das outras”.
Outra ideia equivocada, ressalta ela, é a de que os superdotados são “bons em tudo”. “Há um mito que elas são sociáveis. São crianças solitárias e, consequentemente, as mães são solitárias. Porque até para falar do seu filho pra outro, vai dizer que você está se gabando. A sociedade precisa ter conhecimento da existência dessas crianças que não são poucas”.
O que é a superdotação?
A superdotação é um fenômeno multidimensional estudado há décadas e está em constante evolução. De modo genérico, a superdotação é a habilidade acima da média em alguma área do conhecimento. No Brasil, normas da década de 2000 estabeleciam a classificação de tipos de superdotação em:
- Intelectual
- Acadêmico
- Criativo
- Social
- Talento especial e;
- Psicomotor
O doutor em educação e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Igor Paim, pesquisa o fenômeno da superdotação e explica que, ao longo dos anos, foram desenvolvidas mundo afora inúmeras propostas para avaliação e diagnóstico da superdotação.
Mas, boa parte delas concentradas na dimensão intelectual, na qual se sobressaem a aplicação de testes padronizados de inteligência ou de Quociente de Inteligência (QI) como forma de identificar pessoas superdotadas.
“Hoje existe uma mudança de percepção. Primeiro que você não deve considerar apenas uma forma de identificação das altas habilidades. Hoje o método mais importante é o método das portas giratórias. Pois, o teste psicométrico mede bem as habilidades acadêmicas: linguístico-verbal, lógico- matemático e viso-espacial. Então, se um teste de inteligência disser que você é superdotada, você é. Se disser que você não é, você ainda pode ser, no que o teste não pode medir. Por exemplo, uma habilidade social”.
Logo, as limitações próprias dos testes de inteligência, ao longo do tempo, vêm sendo reconhecidas, pois, explica ele, o teste de QI embora seja capaz de garantir a existência de superdotação na área linguística ou lógico-matemática, em paralelo, não identifica alto potencial criativo, o envolvimento com as tarefas, e o desenvolvimento de habilidades em outros campos do fazer humano.
Portanto, a identificação passou a ser considerada mais complexa, requerendo múltiplos critérios, os quais podem ser os testes padronizados, a avaliação de equipes multidisciplinar (com psicólogos, psicopedagogos), a observação e entrevista com professores, pais/responsáveis e avaliações do trabalho escolar desenvolvido pelo aluno no decorrer dos histórico escolar.